sábado, janeiro 22, 2011

Cromos da minha caderneta (I) – Os bombardeiros

Nos meus dezasseis anos, a cena aventureira em mais alto grau, equivalente a uma missão de exploração à Antártida ou a um serviço de reportagem junto da guerrilha afegã, era uma ida ao dois.

O dois, ou dois mil, ou dois mil e um de seu nome completo, abrigava-se debaixo de uma bancada do autódromo do Estoril e para mim, para nós, no sectarismo próprio dessas idades, era A DISCOTECA ponto. Entrar no dois marcava a passagem à idade adulta. Os judeus têm o “bar mitzvah”, na América Latina celebram a “Quinceañera”, os japoneses ouvem as recomendações dos mais velhos no “seijin shiki”, as meninas de sociedade debutam no baile da especialidade. Eu entrei no dois e tornei-me este belo rapaz, assim, de repente.

Ir ao dois não era coisa fácil. Como qualquer projecto, começava por um licenciamento: havia que convencer a autoridade paterna das vantagens pedagógicas do passeio. Usávamos duas linhas de argumentação principais: a compensatória, que implicava apresentar boas notas na semana anterior e a psico-preventiva, que recorria a argumentos como “só os parolos não vão; eu não quero ser parolo; ficaria deprimido se fosse parolo; por isso deixem-me ir”. Esta última lógica leibniziana nunca colou bem lá em casa. Assim sendo, tive que me socorrer da via compensatória, fazendo pela vida durante a semana. Deste modo oblíquo contribuiu o dois para a minha formação.

A seguir ao licenciamento, passávamos ao financiamento. O objectivo consistia em financiar o projecto de ir ao dois mil e um só com capitais alheios, sem recurso ao nosso balanço – o qual andava sempre a roçar a falência técnica. Aprendi mais tarde que a isto se chamava um “project finance”. Só que neste caso a entidade financiadora coincidia com a licenciadora, já muito batida neste género de negociações. Tal como ocorre com as receitas fiscais dos governos mais recentes, o dinheiro sacado acabava sempre por ficar muito abaixo do orçamento previsto, obrigando à contingência de um rigoroso controlo de custos (como veremos), quando não ao impopular recurso a capitais próprios.

Reunidas as condições, vestidas as calças de ganga rasgadas no joelho e calçados os ténis Adidas (a marca das três riscas), eu apanhava o 15 até um tasco infecto na Rua do Alecrim onde, juntamente com o resto da malta, podíamos subir a alcoolémia a preços baratos. Dali descíamos em bando ao Cais do Sodré, onde o comboio nos esperava de portas abertas para nos conduzir em alegre pagode até ao Estoril. Aí, com algum jeito convencíamos um taxista a levar-nos em grupos de quatro até ao parque do autódromo.

A porta do dois estava barrada por um velho de cabelos grisalhos penteados com brilhantina, volumoso sem ser um Tarzan, alto sem ser um poste, severo sem ser antipático. De nome Sanches, era o porteiro. O Sanches detinha um poder de vida ou de morte sobre a nossa ida ao dois. Com um olhar e um gesto de mão, entrávamos. Com um pedido para ver o B.I., ficávamos fora. A passagem pelo porteiro era a provação final. No momento em que, na romaria da fila de entrada, nos aproximávamos do Sanches, sentíamos um temor reverencial. Para me fazer mais velho, esticava a coluna vertebral, estufava o peito, arvorava o meu ar mais imbecil, que eu tinha por sério. Com o tempo conclui que os patrões do Sanches queriam a casa cheia, e que o Sanches só não nos deixaria entrar se antevisse que podia haver fiscalização ou rusga. E com mais outro tempo o bilhete de identidade rodou para os dezoito e pude passar descontraído e sobranceiro por um Sanches que me parecia mais pequeno e menos poderoso.

Os bilhetes do dois permitiam, se bem me recordo, duas cervejas ou uma bebida, normalmente umas azurrapadas vodkas com laranja ou uns melosos runs com coca-cola. As jolas permitiam uma gestão mais criteriosa da liquidez – vide controlo de custos, parágrafo supra. A pista vibrava com o melhor rock, as luzes reflectiam nas gigantescas semi-esferas de espelhos. Dançava-se até às quatro da manhã, o limite à época para qualquer governo civil.

O regresso fazia-se a pé. Mais controlo de custos. Cinco quilómetros e meio, medidos hoje no Google Maps. De caminho recontávamos a noite que passara, discutíamos os amores que não duraram e forjávamos as amizades que continuam imperturbáveis. Chegávamos à estação do Estoril pelas cinco e meia, para o primeiro trem. Secos, se não chovesse. Ensopados, se chovesse. Estoirados mas eufóricos, com qualquer tempo. No Cais do Sodré, o primeiro autocarro que subisse a colina acartava com o nosso cansaço pelo preço das nossas últimas moedas. Deitávamo-nos às sete para uma santa manhã de um sono comatoso.


Noites memoráveis e memoradas muitas. Recordo uma ida ao dois mil precedida de jantar em Lisboa. Eu aprumara-me porque levava comigo uma menina chamada M em relação à qual eu nutria excelentes mas desonestas intenções. No restaurante, já sentado, vejo passar pela mão de um empregado uma sopa alentejana de muito boa pinta. Eu adoro sopa alentejana. Que fazer? A sopinha recendia, mas um prato de alho e coentro àquela hora iria reduzir dramaticamente as minhas hipóteses de sucesso junto da M. Não trouxera escova e pasta de dentes e ir ao hospital para uma lavagem de estômago não me parecia praticável. Que se lixe, pensei: no final, a gula falou mais alto e arrebentei com uma pratada de sopa alentejana. No caminho até ao dois tentei nunca virar a cara para a M e quando falava fazia-o de boca quase cerrada, o que me dava um ar ventríloquo e certamente pateta. A noite não começava bem. Mas mantinha uma esperança secreta que até ao Estoril o pifo se dissipasse, coisa que claro não aconteceu. O dois mil estava relativamente vazio e ficámos numa mesa no recesso que havia ao fundo do lado esquerdo. E lembro que no final consegui levar a minha avante, à custa de algum álcool, muito paleio e uma insistência que possivelmente roçou a violação. Roubei uns beijos à M que lhe devem ter sabido a açorda de coentrada, coitada. Claro que na segunda-feira, quando fui buscar a M à António Arroio e lhe peguei na mão, levei um par de patins que até desci a Alameda com eles.

Outra viva na lembrança passou-se no parque automóvel, ao baixo da escadaria de acesso, ao fim da noite. Já alguns de nós tinham carta de condução e carro do pai. Eu estava no banco de trás do carro do S, que pusera o motor a trabalhar, quando o F lhe pediu para abrir o vidro. Vinha tirar desforço de algo que se passara lá dentro, o que ocorria muitas vezes entre eles. O S baixou o vidro e a conversa foi azedando, num tom galaró. O F já discutia com a cabeça dentro do carro, encostada à cara do S. A dado momento o F meteu a mão para dentro da janela, para agarrar os colarinhos ao S, que decidiu nesse momento que melhor fazia em arrancar com o carro a toda a velocidade. Sabem aqueles desenhos animados em que o gato Silvestre, para escapar a um míssil, encolhe a cabeça para dentro do corpo? Pois foi assim que se passou. Eu quase juro que vi, naquela décima de segundo em que o S acelerou e desembraiou, a cabeça do F a recolher, penetrando a caixa torácica até ao diafragma, o coração e os pulmões em rebuliço perante a visita inesperada. Facto foi que o carro arrancou e o F contra toda a probabilidade não foi decapitado. E o S lá seguiu ao volante, a gola amarrotada e o orgulho vincado, rumo à Marginal.

No momento em que entrei pela primeira vez no dois mil e um estava a tocar o “There’s a moon in the sky (called the Moon)” dos B-52s. Muitas vezes injustamente considerada uma banda menor, os B-52s criaram um pop alegre, frenético e inovador, cheio de “non sense”, próprio para festa e para dança. O seu som é emblemático de uma época, mas ouvidos passados trinta anos a guitarra de Ricky Wilson, a batida de Keith Strickland e o “guy vs. gals” de Fred Schneider, Cindy Wilson e Kate Pierson ainda soam frescos que nem uma alface canora. Do seu primeiro álbum, o da esplêndida capa amarela, oiçam uma das minhas favoritas, “Rock Lobster”, sobre uma festa de praia em que acaba tudo meio apanhado. Em memória do dois mil e um.



(O primeiro vídeo que aqui pus deixou de funcionar porque o Youtube recebeu queixas de violação de direitos de autor. Este é um pouco mais "creepy", mas até tem melhor qualidade de som e imagem.)

1 comentário:

Alex disse...

Uma graça este teu post
Claro, eu não me lembro do 2000... era uma criança...