domingo, julho 24, 2011

Os do “Maracanazo”



“Ce que je sais de plus sûr sur la morale des hommes, c'est au sport que je le dois, c'est au RUA que je l'ai appris”

Albert Camus


Morei na Avenida do Uruguai, no bairro lisboeta com o nome infame de Benfica, de 1968 a 1990. Mas não será essa nostalgia que me fará estar hoje às oito da noite, poltronado em frente ao ecrã, a torcer pela República Oriental quando esta jogar a final da Copa América para o seu décimo-quinto título, ultrapassando assim em palmarés os colossos vizinhos Brasil e Argentina.

Também não será por a considerar uma das melhores equipas da actualidade, a que mais bonito futebol praticou no último mundial, com um guarda-redes elástico, laterais que marram em frente, centrais para quem a bola é para estar fora da área e um meio-campo operário a servir dois genuínos craques no ataque, Forlan e Suarez. E um todo muito composto, que troca a bola, que mete o pé no choque, que recupera, um mimo de relojoaria ou não apelidassem o Uruguai de “Suiça da América”.


Na verdade, o que mais me espanta no Uruguai está no modo como sempre se desembaraçou do peso das regras da estatística. Os países que ganharam o campeonato do mundo de futebol possuiam uma população de várias dezenas de milhões de habitantes. Com mais gente, resulta maior probabilidade de surgirem bons jogadores e logo melhores equipas. Explica-se assim, pela lei dos grandes números, a recorrência no topo de Itália e Alemanha, de Brasil e Argentina.

No meio destes grandes, exceptua-se o Uruguai. Um país de três milhões de habitantes, mais de metade na macrocéfala Montevideu, ganhou jogos olímpicos, dois campeonatos do mundo, catorze campeonatos sul-americanos, entre demais palmarés com a camisola azul de céu. 

Nesta anomalia da lógica matemática, neste intervalo de esperança de que nem sempre o mais forte vence, enraiza a minha condição de fã da “celeste olímpica”.

O ponto alto desta desfaçatez ocorreu no já longíquo “Maracanazo” de 1950, quando o Brasil perdeu a copa e as peneiras em casa, num Maracanã a arrebentar de duzentas e dez mil pessoas, contra o Uruguai capitaneado por Obdúlio Varela, “el Jefe Negro”, pela autoridade e pela cor da pele.

Varela é um personagem de um futebol de outros tempos, mais feito de suor e hombridade do que de milhões e “glamour”. Quando o seu clube, o Peñarol, passou a colocar publicidade nas camisolas, Varela recusou-se a usá-la. “Antes, nós, os negros, éramos puxados por uma argola no nariz. Esse tempo já passou”, disse a propósito. Por isso o Peñarol entrava em campo com dez jogadores anunciantes e Varela com a sua velha camisola. Talvez por este desprendimento orgulhoso tenha morrido pobre, reformado da função pública, morando sempre na mesma casa e conduzindo um Ford velho, “a única coisa que o futebol me deu”, dizia.

A final de 1950 estava feita para o Brasil, ao qual bastava o empate e que tinha goleado nos jogos anteriores a Espanha e a Suécia, contra as quais os uruguaios tinham penado. O Rio de Janeiro amanheceu coberto de faixas de “Brasil campeão”. O presidente da FIFA, Jules Rimet, preparara o discurso de felicitações em português. Tinham sido cunhadas medalhas de ouro com o nome de cada jogador brasileiro para entregar no fim aos inevitáveis ganhadores. A banda trazia ensaiada uma música intitulada “Brasil os vencedores”, composta especialmente para a ocasião.

Na manhã do encontro, o diário “O mundo” trazia já na primeira página uma fotografia do escrete com a manchete “estes são os novos campeões mundiais”. Obdulio Varela comprou vários desses jornais, atapetou o chão do balneário com a fotografia dos adversários e convidou os colegas a urinar-lhes em cima. Depois deste momento de catarse escatológica, proferiu um discurso emocionado sobre a necessidade de desafiar as probabilidades dentro de campo e de ignorar o peso intimidante da torcida brasileira. Terminou com um "Muchachos, los de afuera son de palo. Que comience la función". Entraram e ganharam dois a um com golos de Schiafino e Ghiggia. Celebraram com sanduíches e cerveja, que a vaquinha que fizeram não juntou dinheiro para mais.


Quando se lêem estas histórias de um futebol de outras eras, de homens que não de vedetas, personalizado e romântico, entende-se a frase em epígrafe de Camus, ele próprio futebolista amador, guarda-redes do RUA, o Racing Universitaire Algérois, de que nunca deixou de ser sócio pagante.

E este exemplo da República Oriental do Uruguai, desafiando a lógica fria dos números, anã agigantando-se entre gigantes, ciente de que os que de fora do campo mandam bocas são “de pau” e lá dentro é que as coisas se resolvem, pode bem servir-nos a nós, Portugal,  nos dias difíceis que vão correndo.

Sem comentários: