sábado, julho 30, 2011

Amor e ferrovia

It’s hard to tell
It´s hard to tell
When all your love’s in vain

In “Love in vain”, de Robert Johnson

Calhou calhar, numa das minhas deambulações pela zona antiquária do “youtube”, no magnífico “Love in Vain”, um blues de Robert Johnson interpretado pelos Rolling Stones, cujo vídeo encontrarão no final do texto.

Robert Leroy Johnson nasceu em 1911 e levou uma vida obscura de músico errante pelo Arkansas e pelo delta do seu Mississipi natal, tocando nas esquinas por esmola e em clubes por trocos, sem se dar muito a conhecer, coleccionando amantes de ocasião. Gravou pouco e ainda em 78 rpm mas, quando foi reeditado no início dos anos sessenta, influenciou uma nova geração de músicos ingleses como Mick Jagger e Keith Richards, John Mayall ou Eric Clapton.

Johnson morreu muito novo, com vinte e sete anos apenas, em circunstâncias nunca esclarecidas, aparentemente envenenado com estriquinina colocada numa garrafa de whisky por um marido ciumento. Existe também mistério à volta do seu enterro, podendo hoje ser visitadas três lápides diferentes que reclamam ter Johnson por baixo. A vida nebulosa, a morte trágica e a incerteza sobre onde repousa acabariam por criar a lenda: quando jovem, desejando ardentemente tornar-se um grande músico de “blues”, Johnson teria ido com a sua guitarra a um cruzamento de estradas à meia-noite, onde um homem enorme – na realidade o Diabo – lhe tomou a guitarra, afinou-a, tocou algumas músicas e devolveu-a, dando-lhe a mestria que ele almejava. Um Fausto guitarrista.

Talvez seja mesmo verdade, porque nesta interpretação dos Stones, que como se sabe tinham simpatia pelo Diabo, há algo que não é deste mundo. Neste “Love in vain”, Jagger, no auge da sua boca de sapo, serve-nos um “blues” de um azul profundo, uma tela de Klein sonora, com uma letra despretensiosa e clássica sobre o amor que não vinga e leva à separação.

Conta-nos sobre um homem que acompanha à estação a mulher que o vai deixar, levando-lhe a mala; o trem chega, ele olha-a nos olhos e chora; quando o comboio parte, levando-a, ele vê duas luzes na traseira da carruagem, uma vermelha que representa o seu pensamento e uma azul que simboliza a sua tristeza. Só isto: simples, suave e bonito como a penugem de um pintaínho.

Que isto se passe numa estação de combóios não será de estranhar. Por alguma razão que será essa sim de estranhar, o comboio, produto e símbolo da Revolução Industrial, amálgama de mecanismos estridentes e viscosos, objecto barulhento e poluidor, tornou-se símbolo romântico, tal como a azáfama dos cais das estações e o deslizar gémeo dos carris em direcção ao infinito.

Daí foi cantado, pintado, filmado. Quando chegava, simbolizava a alegria do reencontro, a cara que surgia na porta da carruagem desfazendo a dúvida sobre o regresso, a correria entre estranhos para o abraço há muito ansiado. Mais forte no entanto quando partia: o separar do que não se devia apartar, o aproveitar de cada segundo até ao apito de largada, os olhares que se acompanhavam até não serem mais do que pontos distantes e memórias vivas.

E isto não é teoria. Eu, que bati toda a Europa de comboio de mochila às costas, que dormi no chão dos corredores e nos bancos das salas de espera, que me deliciei horas a mirar o deslizar nervoso da paisagem pelos vidros da carruagem, também vivi as minhas tristezas de cais, os acenos de mão que pediam um regresso rápido ou que sabiam ser o final de um infinito momentâneo. Momentos ferroviários que mantenho em lugar privilegiado e de fácil acesso na minha memória, onde não dê trabalho sacá-los da prateleira e puxar-lhes o lustro de vez em quando.

Recordo outro instante, esse apenas presenciado, numa estação algures longe onde esperava uma ligação. Ela, nos seus vinte e poucos, elegante, bonita, o cabelo moreno apanhado, encostada à composição à beira do cais, trocando os pés num nervoso cheio de graça, como se de dança, olhando pra cima para ele e mordendo ligeiramente os lábios para segurar o sorriso que uma lágrima malandra pretendia desfazer. Ele, pela mesma idade, a cara de fora da janela alta, o braço pendente, não conseguindo chegar com os dedos, tinha uma revista enrolada na mão, com a qual lhe fazia uma carícia na face, nos cabelos, olhando-a com uma serenidade que não mentia e que jurava voltar. E assim se quedaram, longos minutos, vivendo o momento enquanto não chegou o momento de a composição rugir o aviso de partida e se arrastar, pesada, nos primeiros sacões da viagem.  Os passos ondeando, a revista volteando, os dentes de pérola mordiscando lábios onde o sorriso mentia por baixo de uns olhos jurando verdade.

Afinal, talvez o amor nem sempre seja em vão.

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