terça-feira, julho 12, 2011

Ocean's fourteen

Na semana que passou a Moody’s fez mais pelo discurso de esquerda em Portugal que dez mil arengas hirtas do Louçã ou do Fazenda no parlamento ou nos púlpitos televisivos.

De repente, banqueiros, editorialistas dos diários económicos, políticos dos partidos mais à direita, líderes das patronais e administradores de empresas descobriram que os mercados de capitais não correspondiam àquelas entidades virginais e omniscientes que a teoria descreve lá para o terceiro ou quarto capítulo dos livros de “corporate finance”. Afinal, parece que a informação não é assim tão perfeita como mandam os cânones. Na volta, os agentes de mercado, mal orientados, podem cometer a irracionalidade de seguir as patacoadas publicadas pelas agências de “rating” e de caminho lixar-nos a vida.

Vai daí, toda aquela boa gente se empertigou em frente ao primeiro microfone disponível para zurzir nas agências, utilizando um vocabulário que há uma semana seria considerado perfeitamente irresponsável, desde o “arrogante” ao “deplorável”, desde o “incompetente” ao “superficial”, chegando mesmo ao “terrorista”, palavra que na última década ganhou no mundo do politicamente correcto o estatuto de pior dos insultos, correspondendo aproximadamente em sentido ao “és mau” dos jardins de infância. Até o nosso Presidente Cavaco desceu das alturas para vir a terreiro chamar às agências “ignorantes” e, supremo insulto, “norte-americanas”.

Concordo que mais vale tarde que nunca, que só os burros não mudam de opinião e essas banalidades do costume. Mas que dá uma certa vontade de rir, dá, mau grado o trágico do momento.

 

Devo dizer que não fiquei particularmente surpreendido com o gesto da Moody’s. Já há tempos que venho comentando entre amigos e colegas que existe um padrão de comportamento das agências de “rating”que é peculiar (desigualdade no tratamento de realidades iguais, descida bruscas de vários níveis procurando a espectacularidade, “timings” que não podem ser coincidência, no nosso caso sistematicante mesmo antes de uma emissão de dívida pública). Qualquer explicação para esse padrão não consegue ser muito abonatória. Existem quatro possibilidades, por ordem crescente de maquiavelismo: pura incompetência, limpeza da trampa que fizeram em 2008, conflito de interesses e cabala montada contra o euro.

A pura incompetência tem sido invocada, mas parece-me curta como explicação. É verdade que se falarmos com pessoas do meio, que conhecem estas agências, descobriremos que quem nelas trabalha é tipicamente gente de segunda escolha: os craques vão para a Goldman Sachs e para a JP Morgan fazer negócio, não para a Moody’s ou para a S&P mandar papos. E consta que os seus modelos matemáticos pesam pouco nas suas decisões, que tendem a ser tomadas a níveis mais elevados com base em opiniões sobre receios que sejam receosamente opinados pela opinião pública. Mas isto não chega para perceber a actuação da Moody’s e companhia: um incompetente tem geralmente um comportamento errático na asneira e estes senhores parecem saber o que andam a fazer.

A tese da limpeza da trampa de 2008 parece razoável, mas soa demasiado piedosa. Segundo esta tese, as agências, depois de terem visto falir bancos e investimentos a quem tinham dado notações triplo-A com a mesma ligeireza com que a extinta Arthur Andersen credenciou os prodígios criativos das contas da Enron, teriam resvalado do oito para o oitenta, começando a ver riscos incontroláveis em tudo o que mexia. Comportar-se-iam como aqueles árbitros que após sancionar por engano um golo com a mão e em fora-de-jogo, vêem as imagens do seu erro ao intervalo e passam a segunda parte a perseguir a equipa marcadora. Pessoalmente, não acredito nesta hipótese. Se fosse verdade, não tolerariam como toleram a incerteza actual à volta do pagamento próximo da dívida pública americana e já lhe teriam arrochado com um bê qualquer coisa com “outlook” negativo.


A do conflito de interesses é a minha favorita, de tão evidente que parece. As agências são propriedade de investidores. A Standard and Poors é detida pela Capital Ventures, um fundo de investimento do tamanho do fundo de resgate da União Europeia. Intriga-me que os arautos da regulação independente, que acham que os estados não são capazes de supervisionar nada (porque são suspeitos) e devem entregar o seu papel a autoridades impolutas, não se ergam aos berros quando agentes de um mercado tão importante como o financeiro são simultaneamente jogadores e árbitros! Seria admissível que a PT fosse a dona da Anacom? Ou a EDP da ERSE? Basta um “statement” impessoal da Moody’s e os seus proprietários podem comprar acções mais baratas, obrigações de melhor juro, moeda mais em conta. E o que espanta é que perante esta evidência a União Europeia hesite em regular estes senhores, pressionada pelos ingleses que querem manter o seu negócio de serviços financeiros na City.

O conflito de interesses também explica bem a benevolência que têm na análise de investimentos americanos. As autoridades financeiras dos Estados Unidos garantiram à Moody’s, à S&P e à Fitch um exclusivo num gigantesco mercado de notação. Porque haveriam empresas privadas de zurzir o seu melhor cliente e o seu melhor mercado?

O conflito de interesses salta tão à vista que a quarta tese, a da cabala contra o euro, nem é necessária para explicar nada. Podemos pois dispensá-la, não porque não pareça, porque parecer parece. Quem escreve uma justificação como a da Moody’s para baixar o “rating” português, no momento em que o fez, está a pedir para levar com uma teoriazita da conspiração.

Como disse, não me admirei muito quando a Moody’s nos lixou. Fiquei humoradamente surpreendido com o tom bolchevique da indignação que por aí grassou à direita do espectro político. Agora o que me deixa realmente de boca aberta são aqueles que continuam a achar que nada se passa, que as agências se limitam ao seu angelical papel e que a culpa é todinha dos malandros dos países, dos malandros dos políticos, dos malandros dos gregos e dos portugueses que são tão diferentes deles que são sérios e trabalhadores. O que me espanta são os escolásticos do liberalismo que postos perante a evidência dos limites da sua teoria preferem desafivelar o cinto e expor-se a concluir que andaram enganados. Tal como dizia Cristo no Evangelho segundo São Mateus, não vêem a trave no próprio olho (e São Mateus não se importará que eu faça uma interpretação mais lata do seu versículo, que estes gajos justificam).
A União Europeia tem que entender que se quer sobreviver enquanto união de democracias tem que mandar uma porrada violentíssima nas agências de “rating”. Já não interessa a legitimidade da acção, neste momento é preciso algum sangue: regulá-las até ao tutano, proibi-las, extingui-las, processá-las, o que for pior. Porque quando as democracias são mais fracas que empresas privadas e se encolhem diante delas, as pessoas acabam por perceber que quem as governa não é quem elegeram mas quem se impôs aos eleitos. E nesse momento a revolta passa a justificar-se ou até, como recomendava Thomas Jefferson, a impor-se. A questão é pois política e não económica ou técnica. Faça-se, que até se vai descobrir que elas nem fazem falta.

E aos ingleses, que vão ficar rosadamente chateados, explique-se-lhes que é mais ou menos como fez o Cromwell no seu tempo. Ele convenceu-se que cortar o gasganete ao rei Carlos I era a melhor maneira de acabar com a guerra civil, por isso defendeu o indefensável contra todos os prudentes argumentos para não o fazer. E cortou. E embora a guerra ainda durasse mais uns tempos, a Inglaterra não desapareceu por isso.

Sem comentários: