quinta-feira, junho 09, 2011

A noite eleitoral vista do meu sofá

Duas da tarde

A noite eleitoral começa cedo nas têvês. Os telejornais vão repassando a xaropada usual, com o mesmo rigor metódico com que os pilotos aviadores percorrem (espero eu) o “check list” antes da partida.

Temos por isso:

a) O exemplar civismo com que o acto eleitoral está a decorrer

Contra todas as expectativas não há barricadas e forcas nas ruas de Portugal e o sangue não corre nas valetas.

b) O voto dos candidatos

O candidato votou antes do meio-dia na escola secundária cê mais esse D. Fuas Roupinho. Chegou acompanhado da mulher e esperou pela sua vez para exercer o seu dever cívico. Cumprimentou os membros da mesa. À saída, declarou que esperava que o acto eleitoral decorresse com normalidade e que a afluência às urnas fosse elevada. Entrou num café onde bebeu uma bica em frente às câmaras.

Ainda um dia hei-de dar o meu voto ao candidato que vá votar pela seis e meia da tarde, chegue acompanhado de uma gaja que conheceu na noite anterior, motivo desse voto tardio, passe à frente da fila porque está com pressa, mande bugiar os membros da mesa e declare que até podia andar tudo à porrada que para ele era o mesmo e que quanto menos forem às urnas menos papel se gasta. Finalmente, que entre no café onde os outros candidatos beberam as bicas e avie duas imperiais perante o “zoom” arregalado das câmaras.

Talvez quando o Vieira conseguir as assinaturas.

c) Os boicotes ao acto

Há sempre dois ou três cus-de-mundo em que dois ou três caciques locais conseguem um boicote fechando a corrente e cadeado, corajosamente pela calada da noite, o local onde a votação iria decorrer. Afirmam depois aos microfones sôfregos das cadeias televisivas que a população de A-dos-Caracóis está farta de não ter lá uma estação de lançamento de foguetões interplanetários ou outra infraestrutura igualmente fundamental. Os senhores jornalistas tomam a devida nota e esquecem-se sempre de perguntar porque é que se a população está assim tão unânime foi preciso trancar as portas.

Desta vez houve porém alguma originalidade. Num lugarejo obscuro largaram abelhas na sala das mesas de voto, o que permitiu ao presidente da junta confirmar o boicote, não fosse alguém ser picado e morrer com uma reacção alérgica. Noutro ermo qualquer, puseram cola nas fechaduras e uma esmerada selecção das mulheres mais feias de Portugal aos gritos em frente às portas, de permanentes ralas e brincos de minhota, cenário dantesco que desmotivou a GNR de agir com proporção na reposição da legalidade democrática.


Sete da tarde

No continente, porque nos Açores os micaelenses, as corvinas e os picarotos ainda enfiam nas urnas de voto, impedindo a divulgação no “cuuntiineente” de sondagens à boca das mesmas.

À falta de melhor tema, as televisões divulgam a previsão de 40% de abstenção, com mais ou menos casas decimais.

Procuram-se causas racionais. O afastamento dos jovens da política. O afastamento dos idosos da política. O afastamento da malta na força da idade, da política.

Se os vivos se afastam, já os mortos não arredam pé. Os cadernos eleitorais caminham para o milhão de eleitores-fantasma. Mesmo assim não é mau: li hoje que nove mil mortos na Grécia ainda estão a receber a reforma. Cá, pelo menos, os defuntos limitam-se a abster-se.

Na realidade a explicação é mais simples. Na Atenas clássica, a condição de cidadão implicava direitos (como o voto) e deveres (como o voto). Aos cidadãos que não se envolviam na política, os atenienses chamavam-lhes “idiotes”, termo grego que significava “indivíduo” ou “pessoa privada”, mas com um cunho pejorativo. Daí derivou a nossa palavra “idiota”.

Havendo 9,6 milhões de eleitores, os 40% que se abstiveram representam 3,8 milhões. Subtraiam-se os 0,7 milhões de mortos e sobram 3,1 milhões de idiotas. Para o que a gente vê por aí, até diríamos que deviam ser mais.


Oito horas e treze milésimos de segundo da tarde

Pedro Passos Coelho novo primeiro-ministro.

Assim não dá gosto. Quando eu era garoto, a noite eleitoral durava eternidades de incerteza e adrenalina, até altas horas da madrugada. Começavam a existir uns prognósticos lá para as dez, mas certezas só depois da meia-noite, senão mesmo na manhã seguinte.

Hoje no primeiro segundo fica-se a saber tudo, passados quinze minutos já estão contadas metade das freguesias, uma hora depois já se demitiram os derrotados e às onze está tudo a arrumar o estaminé.

Assim mal acomparado, passámos de um prolongado gozo tântrico ao “ejaculatio praecox” dos Romanos, no que a noites de eleições se refere.


Oito e um minuto

A RTP vai mostrando os homens da luta Jel e Falâncio, duas das maiores concentrações de sebo da galáxia, a aproveitar o momento para se publicitar, com megafone, cartaz e bombo, em frente ao hotel que serve de “quartel-general” ao PSD, enviando os parabéns assim que vêem um microfone disponível. Cheira a casaca virada.

O drama de se tentar ser engraçado é que convém ter graça.



Oito e qualquer coisa

Vou “zapando” entre canais. Embora tenham cada qual uma dúzia de comentadores arrebanhados para os prognósticos de fim de jogo, alguns dos quais até interessaria ouvir, as televisões preferem permanentes directos com o Sana, o Altis, o Vitória ou o Largo do Caldas, onde vão perguntando a militantes de base se estão a curtir ou se o galo é grande, consoante a cor.

Com tantos meios, tantos repórteres, tantos quadros digitais, tanta trampa, é completamente impossível ficar informado. Um caso típico de rendimentos marginais decrescentes.


Oito e muito

Um dos canais avança a hipótese do PAN, Partido dos Animais e da Natureza, vir a eleger um deputado por Lisboa. Animais no hemiciclo. Não propriamente uma novidade.


Nove e pouco

O primeiro-ministro desce para o discurso de derrota, cercado por uma camada de seguranças, por sua vez envolta numa capa de jornalistas de microfone em riste e câmaras erguidas em braços como se de halteres se tratassem. A mole ziguezagueia desordenadamente e acaba por arrebentar com uma porta de vidro, em directo. Sócrates sobe ao palanque, sacudindo os cacos de vidro da lapela do Armani.

Conforme os comentaristas haviam prognosticado meia hora antes, Sócrates demite-se, com um descurso de bom perdedor, diga-se.

Começa a caça ao candidato: as câmaras focam-se em Seguro, Assis e Costa, que afectam não ser nada com eles.

Confirma-se também o “vae victis”. Algumas das perguntas dos jornalistas, agora desempoeirados, assim o demonstram.


Não muito tempo depois

Ouço alguém entusiasmado falar de “inequívoca consolidação da expressão eleitoral”, “aumento da percentagem e número de deputados”, “sinal de inegável significado quanto a um mais alargado reconhecimento da acção, propostas e papel...”. Levanto a cabeça. Pelo tom ufano, podia ser o André Villas-Boas a falar do FCP, mas é apenas o Jerónimo de Sousa a rejubilar com a estrondosa vitória do PCP, com sensacionais 7,94% dos votos.

Nós, Sportinguistas, devíamos aprender com esta mentalidade. Festejaríamos convictos os quartos lugares invadindo o Marquês de Pombal, eufóricos.


Talvez pelas nove e meia

O melão da noite. Alongado e graúdo, verde por fora e sumarento por dentro, de talhada firme e semente solta. Saiu em brinde à esquerda Façonnable.

Louçã diz que os resultados significam um “recuo”. Sei que dada a etimologia da palavra “recuo”, talvez o Bloco a veja como mais politicamente correcta do que outras mais apropriadas para a ocasião, como sejam “coça”, “trepa” ou “cabazada”. Mas ainda assim: passaram em dois anos para metade dos votos e dos deputados. Isto não é um recuo, é uma viagem em marcha atrás de Lisboa a Bombaim.

Prevejo que o Bloco de Esquerda vai ser a partir de agora cada vez menos bloco e – se possível for – cada vez menos esquerda.


Ainda não passara meia hora da demissão do Sócrates

As televisões passam as emissões para o Altis porque António José Seguro vai fazer uma declaração. Os comentadores prevêem que ele vai declarar que não se candidata a líder do PS, com o piedoso raciocínio de que seria de muito mau gosto anunciar a candidatura praticamente em cima do cadáver fumegante do José. Mal sabem eles de que é capaz um homem que esteve à espera.

No Altis, abre-se a porta de um elevador e sai António José, demasiado seguro diante de quarenta microfones e vinte objectivas. Profere umas redondezas sobre a sua eventual candidatura, do género “não é o momento apropriado”, “estou disponível para dar o meu humilde contributo”, “não volto a cara ao meu partido e a Portugal”. Portugal, viram? Ganda pinta.

Resumindo: é candidato e a sua candidatura, tal como a pescada, antes de o ser já o foi.

Alguns jornalistas, daqueles para quem é preciso fazer um desenho, perguntam-lhe porque é que ele os convocou se não era para confirmar a candidatura. Seguro responde:

– Convocar, eu? Os senhores é que aqui estavam à minha espera.

Assim terminou em glória o momento sabujo da noite.


Não sei se antes se depois

Portas, um dos vencedores destas eleições, não escondia a tristeza no seu discurso de triunfo. Apesar de uma campanha em que ostentou mais de cem chapéus diferentes, só subiu 1,3%. Pouco para quem se queria tornar o mais pequeno dos grandes e continua apenas o maior dos pequenos. Apesar de tudo, com a chave do governo na mão.

Já dizia Pirro, rei do Épiro e da Macedónia, depois da difícil batalha de Ásculo: “Mais uma vitória destas e estou perdido.”


Já passava das dez

Passos Coelho sobe ao púlpito como novo primeiro-ministro de Portugal. Para gajo que acaba de ser contratado para um dos piores empregos do planeta nos próximos anos, parece contente. Discursa com fluência e preparação. Canta o hino nacional. Responde num inglês muito razoável a um jornalista estrangeiro. Neste aspecto, certamente, ficámos a ganhar.


Onze e tal

Os carros apitam na rua e agitam bandeiras laranjas. Afinal o PAN não elegeu nenhum deputado. Nos ecrans, os “pivots”, flutuando em cenários virtuais, vão repassando em tom cansado os números finais de Viseu e de Évora. Há algum clima de anti-clímax. Os comentadores de serviço cumprem serviço, largando as últimas tiradas. Desligo a televisão e vou enxotando os gatos para fora da sala.

Amanhã, continua a crise.

1 comentário:

Cristina Rodo disse...

Amigo Carlinhos, não faças caso do nosso amigo lançador de santolas, tu és brilhante, ABSOLUTAMENTE BRILHANTE!
Amei este post... caraças, o que eu me ri... estava a precisar. ;)