sexta-feira, junho 24, 2011

Aprender a ler

Descobri esta semana, na minha leitura vezeira de Pedro Lomba no Público, que Camilo Castelo Branco desapareceu do currículo do ensino secundário. Lomba parte deste mote para desenvolver uma interessante crónica sobre o ensino ou melhor o desensino da literatura. Coisa sobre o qual o próprio tem dúvidas fundamentais: refere ele que não tem a certeza se o gosto pela literatura se pode ensinar. Pois eu quase que tenho que pode. Nisto discordo dele.

Mas já concordo com ele que pelos serviços do ministério anda gente em demasia a cerebrar sobre temas bizarros, como seja a melhor maneira de ensinar a crianças de treze ou catorze anos a reconhecer nos Lusíadas metalepses e metáteses. Ora as metáteses estão para o desenvolvimento do gosto pela literatura como as metástases estão para a promoção da nossa saúde. Não me parece que tão erudito exercício induza nas mentes tenras o amor pela leitura. Será como querer promover o gosto pela culinária com cursos teóricos de química orgânica avançada.


(Aparte antes de prosseguir: para os que estão neste momentos extasiados com a minha sapiência, informo que há truque. Eu não sabia de cor, nem de outra forma qualquer, o significado de metalepse ou metátese. Fui ver a um dicionário de figuras de estilo que consta de uma edição dos Lusíadas que há cá por casa. Tem lá termos espectacularmente ininteligíveis, óptimos para tentar levar à loucura os adversários num jogo de “Pictionary”. Por exemplo, sabem o que é uma hendiádis ou um - ou será uma? - paragoge? E um polissíndeto ou uma tmese? Não? Bando de analfabetos! Mas um zeugma devem saber... Também não? Como é que conseguem ler um livro nessa vil escuridão?)

Quanda não está entretida a complicar, a mesma ministerial gente, apiedada perante as dificuldades daqueles que paternalisticamente vê como menos capazes, cai no outro extremo e facilita. Por exemplo, o programa de 10º ano de Português preocupa-se com que jovens de quinze anos saibam “reconhecer diversos tipos de texto” como sejam “textos informativos diversos e os seguintes dos domínios transaccional e educativo: artigos científicos e técnicos; verbetes de dicionários e enciclopédias; declaração; requerimento; contrato; relatório”. Ou então “textos dos media”, que podem ser até radiofónicos. E não aponta nenhuma leitura integral de um livro como obrigatória (só no 11º aparecem o Frei Luís de Sousa e um Eça à escolha, que por algum azar até pode calhar ser “O mandarim”).

Ora eu com essa saudosa idade andava no Liceu Francês a levar antiquadamente com Racine e Zola na tromba, para ler na íntegra, e nunca tive assim a oportunidade fresca de analisar verbetes de dicionários para os poder reconhecer quando os visse. Por razão misteriosa, apesar de não ter beneficiado do modernaço programa do 10º em língua pátria, consigo preencher um requerimento, utilizar um dicionário e até ouvir as notícias na TSF sem me baralhar todo e ficar a pensar que o entendimento a que chegaram Portas e Passos Coelho é sentimental e não político. Devo ser um autodidacta.

Quem arquitecta estes programas comporta-se como um condutor que só andasse ora pela berma esquerda ora pela berma direita, com o carro em zigue-zagues bruscos, nunca conseguindo assentar sossegado com os pneus no raio do alcatrão. O resultado de anos desta condução inebriada são os alunos que apanho no quinto ano do Técnico, à beira do mercado de trabalho, que “axam que puderiam usar uma equacão para calcular a inflaxão”. Já hoje uma larga maioria, infelizmente.

Mas desensinar é fácil, já sabemos. E ensinar? Ensinar a gostar de ler?

O sistema que apanhei no Liceu Francês parece-me a este propósito ter algumas virtudes, desde já com perdão pela pinta “no meu tempo é que era” desta reflexão.

Para começar, esse sistema mete livros. Do primeiro ao último ano do liceu, em cada Outubro, quase uma dezena. Sai-se no final da escolaridade com uma meia centena de títulos, o que acaba por constituir um razoável princípio de uma biblioteca pessoal. A escolha varia ao longo do tempo, mas mistura clássicos, literatura mais ligeira, teatro, poesia, originais e traduções. Fui ver a estante do meu mais novo, que está a meio percurso. Tem lá Molière, Voltaire, Balzac e Flaubert, mas também Pagnol. E tem Orwell, Golding e Primo Levi. E Esopo e a Odisseia e contos da mitologia grega. E teatro de Anouilh e poesia moderna. Para equilibrar, Agatha Christie, o Petit Nicolas de Sempé e Goscinny ou o Diário de Adrian Mole.

No quarto do mais velho, que já acabou, há uma prateleira inteira. Para além de alguns dos anteriores encontro entre outros Montaigne e Ronsard, Maupassant e Baudelaire, Le Clézio e Camus, Sófocles, Shakespeare e Puchkine, Racine e Ionesco, Sepúlveda e o planeta dos macacos. E até a Bíblia dada enquanto obra literária.

A isto chama-se diversidade e parece-me ser a lição número um. A literatura é uma janela aberta para um mundo variado e variável. Claro que numa cadeira de literatura francesa há que dar os grandes nomes, que construiram e dão brilho à língua deles. De igual modo, em Português deve-se ler uma boa selecção entre Eça, Camilo, Camões, Sá de Miranda, Pessoa, Herculano, Torga, Cardoso Pires, Nemésio, Miguéis ou Saramago ou Lobo Antunes, e com liberalidade. Mas há espaço para muito mais. Porque não boas traduções de boas obras estrangeiras ou escrita nacional mais contemporânea ou mais ligeira? Mais vale um Hamlet em português ou um romance do Rodrigues dos Santos do que qualquer “texto dos media” ou o que é que essa treta seja.


Depois, estes livros devem-se ler integralmente. Esta será a lição número dois. Claro que nem todos os alunos o fazem e claro que na sala de aula a análise tem que se focar em passagens seleccionadas. Mas os livros são como os paus, têm duas pontas, um princípio e um fim e o resto que está no meio. Um excerto pode quanto muito funcionar como um “teaser”, mas não dá a medida da grandeza de uma obra nem permite o sentimento de preenchimento e partilha que podemos ter quando viramos a última página de um bom livro. Seria como esperar que o “trailer” de um grande filme nos fizesse pensar, rir ou chorar do mesmo modo que as duas horas de visionamento em frente ao ecrã. Só aprendemos a gostar de ler lendo, e não brincando ao “toca e foge” com os livros.

E, finalmente, a terceira lição.

Tive no último ano do liceu um professor de francês que me ensinou como se lia um livro ou um poema: fazendo uso da nossa liberdade. Com ele descobri que uma obra não é uma, são milhares ou milhões. Há a que o autor escreveu e há todas aquelas que os leitores lêem e todas são igualmente verdadeiras e importantes. Com ele aprendi a ler com os meus olhos, com a minha cabeça e com os meus sentimentos. Era um homem calmo, reservado, com um ar quase severo na primeira abordagem, sempre de fato escuro numa escola que primava pela informalidade. Não me lembro de o ver a rir, apenas de sorrir contidamente diante de uma situação cómica. Perguntava-me, preparando-nos para o exame oral final, sobre uma palavra que um poeta usara num verso:

- Porque pensas que o autor escolheu exactamente esta palavra e não outra?
- ...
- Dá a tua opinião.
- Talvez porque “isto”.

- Então se achas “isto”, no dia da oral, di-lo.

- E se o examinador não concordar?
- Se o examinador não concordar diz-lhe que fui eu que te o ensinei.

E não é que ensinara mesmo? Ensinara-me que não somos meros receptáculos de uma narrativa, leitores inertes numa relação de um só sentido. Somos agentes, pares do autor, responsáveis com ele pela construção da obra lida. Por exemplo, Thomas Mann dizia que descrevera no seu “Os Buddenbrook” a decadência de uma família. Ora quando eu o li, esse aspecto pareceu-me meramente instrumental. Achei-o um grande livro sobre a riqueza, a diversidade e a fragilidade da vida. Não há azar, o livro que ele escreveu e aquele que eu li simplesmente não são o mesmo: entes próximos, ligeiramente diferentes e igualmente respeitáveis. Ler é um exercício de homens e mulheres livres. Por isso as ditaduras sempre proibiram e queimaram livros. Até a semelhança fonética das palavras “livro” e “livre” , uma feliz coincidência, reforça essa identidade.

Para ensinar o gosto pela literatura precisaremos sempre de professores capazes e alunos disponíveis, como em qualquer matéria. Se a esses ingredientes juntarmos, para horror da malta do ministério, alguns livros, lidos de fio a pavio e com espírito de liberdade, a aprendizagem pode ocorrer. Mesmo que no fim ignoremos o significado de “metátese” ou “zeugma”.

1 comentário:

NunoF disse...

Hmmm... no secundário fui obrigado a ler Viagens da Minha Terra, Amor de Perdição, Maias, Tragédia da Rua das Flores e não foi por isso que passei a gostar de ler literatura portuguesa. Aliás foi precisamente isso que me afastou da literatura portuguesa durante décadas e que fez como só descobrisse Fernando Pessoa aos 30 e muitos.

O que está na estante não significa muito sobre os gostos literários ou não. Diz-me quais foram os últimos 5 livros que os teus filhos compraram (não contam os que tu lhes ofereces) para ler por gosto (i.e. fora do currículo académico) e aí já podes argumentar algo...