domingo, setembro 13, 2009

O beto em férias (exercício de antropologia barata)


A tragédia mental do Portugal presente é que, como veremos, o nosso escol é estruturalmente provinciano.


Fernando Pessoa, in “O caso mental português”



Às vezes aparecem-me à frente na rua coisas tão surpreendentes que me fico a perguntar se o edulcorante que pus no café não seria um comprimido de LSD transviado.


Nestas férias, a banhos na costa do Vicente, deparei-me por duas vezes com famílias de ar veraneante a arrastar atrás uma criada de servir com farda preta, avental e gola branca, uma delas com touca e tudo. Após imagem tão jurássica, juro que se tivesse avistado um estegossauro a pastar a erva rala da valeta não ficaria mais admirado. Para enquadrar o leitor no irracional da situação, falta dizer que ferviam para cima de trinta graus à sombra e que mesmo uma “tee-shirt” de algodão sobre o pelo seria àquela hora suficiente para esbrasear qualquer vertebrado de sangue quente.


As coitadas das moças pareciam por isso afogueadas, seguindo com ar contrito as proprietárias famílias, estas frescas que nem alfaces nos seus preparos de verão. E pensei: que raio passará por dentro da corneta desta gente, para além de correntes de ar, que obrigam as desgraçadas a esta figura no pino do verão – e mesmo que fosse no Inverno! Julgava eu que estas manias se tinham extinto nos anos setenta do século passado. Depois olhei melhor e percebi: Ah! São betos e logo dos parvos.


O beto vem proliferando francamente, como uma pestilência, como a processionária do pinheiro ou o vidrinho à Cristiano Ronaldo na orelha da mitragem.


O beto define-se por parâmetros sócio-demográficos, como uma certa capacidade financeira ou o facto de se ter licenciado na Católica, mas mais por valores e atitudes. Uma segura necessidade de ostentação, a adesão a um código de aparências, a pretensão de gozar de uma visão prática da vida que voga acima da política ou da cultura, alguma falta desta última, um cheirinho de marialvismo, com o seu contraste entre um conservadorismo de fachada e a mania que são vivaços, uma proximidade a uma direita mais salazarenta que moderna, uma religiosidade de cerimónia, tudo isto, em proporções variáveis, compõe o beto. Quanto algum destes parâmetros passa das marcas, o beto torna-se parvo.


O beto, parvo ou não, já perturba um bom bocado em meio urbano ou laboral. Em férias tem um efeito devastador, podendo estragar a semana ao imprecatado que caia no meio. Ataca aos magotes, podendo infestar hectares inteiros de praia e campo só pelo mero contacto visual. Perguntará o já assustado leitor: como identificar, de modo a pôr umas milhas prudentes entre a praga e as nossas pessoas?


Analisemos os sinais exteriores.


Na praia vêem-se em bandos que incluem vários núcleos familiares cada qual com pai, mãe, filhos, sobrinhos a cargo, uma ou outra avó desgarrada, eventuais empregadas. Rapidamente a concentração atinge a centena e os trezentos metros quadrados, não incluindo aqui distância de sanidade. Trazem cães que podem ser mirrados do tipo cuidado não pise ou mastins do tipo cuidado não chegue, não sendo frequentes tamanhos intermédios. Os canídeos recebem ordem de soltura ao chegar ao areal e frequentam amiúde as toalhas alheias sob o sorriso despreocupado dos donos que preferem nitidamente que eles vão sujar para longe.


À chegada, os betos, em particular se forem parvos, arrumam os SUVs na duna e estabelecem um acampamento que depressa fica semeado de sombrinhas abertas, toalhas e caixas isotérmicas da “camping gaz”, modelo bisonte. Acartam cadeiras de praia que chegam a colocar na fímbria da água, para que os vejamos melhor. São ruidosos, comportamento normal em quem julga estar em casa.


O macho vem de pólo e mocassins sem meias e fica de calções às flores. Traz agarrado o saco do Expresso, ainda com aqueles quilos de suplementos sobre imobiliário ou com o relatório e contas da Dyrup, que as pessoas normais mandam logo para o papelão. Lê a primeira página. Se puder, usa o cabelo grisalho puxado para trás com pinta brilhantinada e uns caracolitos ao fundo do pescoço e na orla das patilhas. Começa a segunda página do jornal. Joga raquetes sem se mexer muito. Dobra o jornal no saco. Ajusta o elástico do calção à barriguinha sobressaliente. Por regra, é mais hirsuto que a média da população, podendo chegar ao síndrome Tony Ramos.


A fêmea usa mais ou menos o mesmo número de pulseiras e traquitanas que as mulheres Maasai em dia de casamento. A cabeleira é farta, em permanente, com cores que não existem na natureza e madeixas de um tom de liga metálica leve. Ostenta biquini ou fato de banho de corte moderado e motivos garridos. Senta a cultivar-se com a Caras e a Lux e a Hola. Pergunta às filhas se se viram umas às outras. Grita nomes ausentes à hora de ir embora.


Macho e fêmea nunca tiram os óculos escuros, alapados à penca como se colados com Araldite. Mais recentemente adoptaram ambos uns chapéus de palha quase branca, de recorte borsalino e fita negra, que lhes dão um ar patusco e permitem ao resto das pessoas identificá-los a uma distância segura.


As crias são muitas por cabeça, porque o beto procria em número. Os rapazes usam o mesmo calção dos pais e vão para o “body board”, desamparando a loja. As raparigas andam em grupinhos, dizem muitos ais e também arrojam com pulseiras Maasai até ao cotovelo, para além de tererés na cabeça. Frequentam escolas com nomes de santos onde aprendem a pensar como os pais. Avisam ameaçadores que andam nos Salesianos enquanto fogem de putos que lhes vão bater.


Munido desta descrição, pode o leitor desviar-se atempadamente, até porque já percebeu que o recato não é o forte deles. Mas, se ainda assim tiver dúvidas sobre se um grupo é ou não de betos, faça uma coisa: olhe-lhes para as caras e dificilmente se enganará.


Porque o beto e a beta, mau grado a sua pluralidade de formas, de tanto andarem uns com os outros acabam sempre por ter cara de beto. Fatal como o destino! Com aquela carinha tão distinta, poderiam ser facilmente reconhecidos até numa praia de nudistas ou em fotos do tipo passe.


Recordo que referi este facto a um amigo num almoço à beira-Tejo, logo após as férias e ele indignou-se: “Mas tu és parvo! Andas a ler muito Zola. Agora o meio influencia o aspecto físico?” Mas é verdade. É um fenómeno estranho, como as girafas do Lamarck que iam tendo pescoços maiores porque os esticavam para chegar às folhas mais altas e depois passavam essas características aos descendentes, coisa que Darwin demonstrou não acontecer nas girafas mas que parece acontecer nos betos: frequentam-se entre si, acabam por arvorar a mesma tromba e legam-na em herança aos betinhos.

3 comentários:

Mac disse...

Adorei este texto, mas posso dar só umas achegazinhas? Acho que ouvi um sim ; ))

Assim, à partida, aquilo que descreves como sendo betos, cheira-me a pseudo betos, mais ainda contrafacção de betos. Desconfio.

Não que tenha sido nomeada mandatária em defesa da espécie, não fui, mas porque conheço muitos, que são muito bem formados, óptimas pessoas e que em nada condizem com tais comportamentos descritos, gostava de esclarecer umas coisinhas.

Logo a começar, para que serve uma empregada na praia? A meu ver para nadinha, a não ser para teatros e exibições pouco dignas de falta de classe, ou ausência dela, desenquadradas de quaisquer parâmetros. A não ser que seja para tomar conta das crianças. Optando por arrastar a funcionária a acompanhar-nos em areais, a farda é ridícula e desnecessária. Só o será imprescindível, naqueles que têm medo que aos olhos dos outros se trate dum parente pobrezinho e que manchará a imagem que querem transmitir. Só que os betos normais, não têm estes receios, é-lhes completamente indiferente o que os outros pensam. Nas famílias, em que a empregada é uma figura de gerações, que nunca foi uma novidade, que até acaba por estar muitos anos na casa, existe o natural bom trato, porque acima de tudo tratam-se de pessoas e lá porque nos servem, não é sinónimo de humilhações ou maus-tratos.

Sim, as empregadas podem e devem andar fardadas, por questões meramente práticas e de higiene, mas não para serem distinguidas do agregado familiar, mas em casa. Depois, existem muitos tipos de fardas e a que exemplificas, no ambiente em questão, ainda é mais ridícula, porque é a farda de servir à mesa em jantares com visitas pouco próximas. Para os almoços e serviço de casa, são outras. Mas a existência desta empregada que serve só o jantar, também pressupõe a existência da figura da cozinheira e de uma segunda empregada.

Ou seja, aquilo que viste, é tudo desgarrado de uma realidade que existe, mas dentro de portas, jamais em locais públicos. Por tudo isso, essas famílias, copiaram muito mal um modelo que viram algures. São mal vistos aos olhos de todos, até dos betos genuínos, que os consideram qualquer coisa entre o novo-rico, a palhaçada e a humilhação a pessoas que são dignas de todo o respeito.

De resto, quanto aos betos à séria, poder-se-á gostar deles ou não, mas generalizar é sempre perigoso, como em tudo há bom e mau.

Beijos!

Cristina Rodo disse...

Chiçaaaa...
Vinha cá eu botar sentença, mas a loira (beta) chegou primeiro... olha, fiquei sem piu.
Muito divertido post... ;)

Alex disse...

Essa das fardas, humanamente insuportaveis a temperatura de verão, julgava-as inconstitucionais; tortura é coisa para a Convenção de Genebra.
A raça que descreves... está a proliferar por tudo quanto é sítio, deve ser da elevada capacidade de procriação.
À praia já desisti de ir no verão e, na maior parte dos sítios que esses clãs frequentam, já não me deixam entrar; digo eu, é que nem tento. A minha técnica quando me cruzo com eles? Sou muito mais seja o que for que eles sejam. Chateiam-se e "deslargam". Infalível.