domingo, setembro 20, 2009

O baile da tripeça


Acho que este texto não vai adicionar nadinha à minha popularidade, especialmente entre senhoras do sexo feminino de um certo escalão etário, que me guardo de revelar.


A ocorrência em causa foi um evento dançante promovido no “site” cujo “link” flutua aí à direita do texto, dedicado a antigos alunos do meu liceu, cônjuges em enésima núpcia com ene entre zero e ene, e outros acompanhantes e amigos.


O dito “site” congrega mais de três mil ex-estudantes, entre os dezassete e os setenta e sete anos de idade, que a escola já tem uns anitos. O facto notável esteve em que, apesar de a festa ser aberta a todo esse universo, os que apareceram também já tinham uns anitos. Regra geral, com o numeral das dezenas acabado em “enta”.


Nada que a organização não pressentisse, porque instruiu os dijéis para pôr música dos anos oitenta – Olha! Outro “enta”! E tenho a impressão que lá representado por uma ou duas convivas…


E eu que, embora não pareça por – dizem – estar bem conservado, já arrasto também um “enta” como uma canga ao pescoço, lá me dirigi ao Bar do Rio, ao Cais do Sodré, um espaço simpático entalado entre a velha estação e o marulhar do Tejo. À entrada, o porteiro, com o fato preto e o cabedal que caracterizam a classe, explicou-me que o bar estava aberto até às duas da madrugada e que a partir dessa hora deveria utilizar um cartão com dez casas para preencher e pagar à saída. Duplamente optimista, o rapaz. Tendo em conta o tal “enta”, às duas estava eu a contar ir fazer ó-ó e se algum dia bebesse sequer metade do cartão seria levado para casa numa furgoneta amarela com sirenes azuis.


De cartão em punho, penetrei o antro para constatar uma casa bem composta, mas longe das expectativas iniciais. No “site”, só antigos alunos de inscrição confirmada eram muito mais de cem, o que, com os previsíveis acompanhantes, levariam a assistência certamente acima dos duzentos. Na realidade, andaríamos nas oitenta pessoas. Mas ameaçar grandes números que depois não se cumprem na íntegra é outra característica dos “entas”, que as senhoras do sexo feminino de um certo escalão etário, que me guardo de revelar, por amarga experiência decerto saberão.


No entanto, há males que vêm por bem. O número de presentes era o ideal para o espaço e para as características do ar condicionado, permitindo respirar e circular à vontade. Circulei pois, e a outra coisa que logo verifiquei foi a tal predominância de zero vírgula cinco – ou mais – idade: quarentas, cinquentas, sessentas, seten… (acho que me estou a esticar). Via-se uma ou outra de vinte, mas fiquei com a impressão que vinham na condição de filhas, senão mesmo de enfermeiras.


A indumentária dos “entas” revelava duas estratégias diferentes. Eles, quase sem excepção, trajavam calça de ganga e camisa aberta no peito, muitas vezes com a fralda de fora, mocassins, ténis, ou sapatos de vela, para dar um ar casual de garoto, maldosamente contrariado pelas cãs e pelos volumes abdominais. Assim andava eu também, embora, como referi já, um pouco melhor conservado. Elas, mais realistas, aperaltaram-se em maioria como quem vai uma festa (e por acaso até era), com “toilettes” todas refinadas e esforços titânicos para encaixar aquilo tudo, naquela táctica de “entas, mas com muito ainda para dar ao futebol”. Nalguns casos, com certo sucesso.


Houve prodígios de engenharia. Uma amiga “enta”, cujo nome começado por cê não vou divulgar, conseguiu com “wonderbra”, botas pretas com um metro de cano, vigas de madeira, troços de armadura e uma saia que metade era o elástico da cintura, desencantar nela uma boazuda com umas trancas que eu, que já a vi na praia, não suspeitava que existissem.


O escurinho da pista de dança também ajudou um bocado a disfarçar as marcas do tempo. De noite, todos os gatos são pardos. O pior são aquelas luzes estroboscópicas que, potentíssimas, alumiavam as dançantes com uma clareza crua e reveladora, mesmo que durante décimas de segundo. Nesses momentos, a rapaziada, já naquela idade em que o músculo cardíaco tem que ser tratado com carinho, corria o risco de uma síncope quando o “flash” do estroboscópio expunha de surpresa a verdadeira identidade daquela silhueta de menina que dançava ao nosso lado. Um efeito parecido com o saudoso comboio-fantasma da Feira Popular, cujo trajecto se fazia no mais completo negrume e de onde de repente, encostadinhas ao vagão, apareciam umas carantonhas iluminadas que arrancavam gritos de terror à pequenada.


Os “disc-jockeys” não tiveram uma noite feliz. Como dizia um amigo meu, não deve ser fácil a um tipo que nasceu no fim dos anos oitenta pôr música dos anos oitenta. Não me imagino eu, por exemplo – e apesar de estar bem conservado, como não sei se já disse – a pôr música dos anos cinquenta e sessenta. Ia buscar para aí o António Machin ou o Domenico Modugno: volareeeee… Por isso, os dois rapazinhos encarregues do som, postos diante de uma clientela um pouco diferente da habitual, davam uma no cravo e outra na ferradura, com passagens incríveis, de “new wave” para “disco” e vice-versa, saltando do ambiente “cyberpunk” do Billy Idol para o realejo do “Eileen”, das histórias da treta electrónicas dos Human League ao abanar de cabeça ceguinho do Stevie Wonder, num serpentear descontrolado que parecia o de um bêbado à noite na auto-estrada, varrendo as três faixas.


Mas, com brancas ou sem elas, com mais rugas ou menos, melhor arreado ou com ar de balda, o pessoal estava ali para se divertir e acabou por gozar uma noite bem passada, com alegres reencontros (“Há tanto tempo!”) e grandes mentiradas (“Estás na mesma!”).


Esta última só verdade quando dirigida a mim, que estou bem conservado.

2 comentários:

Mac disse...

:)))

Como és capaz de nos comparar, aqueles bonecos esconsos da Feira Popular, hein!!?? Deprimi.

Depois disto, juro pelos piercings da Christina Aguilera, em como lá terei de me entregar aos bisturis até esticar as peles. Da próxima, não terão uma enta, apenas uma osga. Ah pois é!

Disclaimer: Post fantástico, sim senhor.

Cristina Rodo disse...

Hmmmmm... não sei se me ria, se te bata... olha que pareceste bastante impressionado com os prodígios de engenharia... ;)
E quanto aos jovens disc jockeys, eles sabem por música boa dos anos oitenta, já o provaram no evento anterior, desta vez deviam estar com o período.