sábado, setembro 19, 2009

A liberdade do criador

Aviso: se não viram “Sacanas sem lei/Inglourious basterds” de Quentin Tarantino e se querem ver, não leiam este “post”. Guardem no congelador para mais tarde. É para não saberem o fim do filme.


Como poderão adivinhar se já leram o aviso – e se não leram vão ler – assisti no domingo transacto ao “Inglourious basterds”. Gostei. Valeu o sacrifício de ter que aturar os vinte minutos de anúncios, a projecção daquele vídeo irritante com as recomendações da Lusomundo (deitem os papéis no caixote, lavem as mãos antes de ir para a mesa e outros paternalismos), o desconforto das “soi disant” poltronas e, sobretudo, as manadas de ruminantes que me cercavam com baldes gigantes transbordantes de pipoca, mandibulando como se não houvesse amanhã.

Abrindo um (

Para quando uma sala de cinema para não-pipocadores? Quando poderemos outra vez assistir a um filme num espaço que não se pareça com uma manjedoura, as narinas assaltadas por um cheiro feirante a óleo de enésima fervura, os ouvidos massacrados pelo mastigar simultâneo de centenas de grãos de milho?

E em abono da justiça, se a Lei persegue os fumadores, porque não os pipocadores? A pipoca tem sal e gordura, provoca hipertensão e colesterol e vicia mais que o tabaco. As crianças iniciam-se na pipoca cada vez mais cedo. Deviam colocar nos baldes de pipocas avisos tarjados de preto a prevenir: “a ingestão de pipoca em excesso pode provocar a queda de órgãos que façam falta” ou então “comer esta trampa faz um mal danado à saúde”.

Fechando o )


Falava eu da fita. Ocorre durante a Segunda Guerra e a partir do meio do enredo montam-se não um mas dois “complots” para assassinar, num sessão de cinema em Paris, Hitler, Goering, Goebbels e Bormann, todos de uma só vez. À medida que o filme vai evoluindo, começa-se a verificar que a coisa até pode funcionar. Passei por isso os últimos trinta minutos a interrogar-me como é que o Tarantino ia manobrar para tirar os quatro chefes nazis daquele entalanço, uma vez que obviamente não podiam quinar ali, sabendo-se como se sabe que Goering se suicidou na prisão em 1946 e os outros morreram na queda de Berlim, um ano antes.

Chegados ao fim, Tarantino foi genial e eu fui idiota: o golpe funcionou e Hitler, Goering, Goebbels e Bormann bateram a bota ali, em 1944. Muito simplesmente.

De regresso a casa, dois pensamentos volteavam dentro da minha cabeça. Primeiro, que uma função da arte é dar-nos lições de liberdade. Segundo, que nós, quando queremos, somos muito limitados, para não dizer grandes totós.

Sobre o primeiro: o mundo físico tem regras e fronteiras; a imaginação do criador não. Não há mais razão para que um filme copie a verdade histórica do que para que um pintor se cinja a fazer cópias fotográficas de uma paisagem ou para que um escritor se limite a meras reportagens. Não há mulheres com gavetas no corpo e Dali pintou-as. Nem fadas e Oberon e Titania sempre passaram uma noite de enganos e desenganos a meio do verão – ou terá só sido um sonho? – e regressaram durante a primeira guerra mundial para ajudar Corto Maltese (personagem quase real) a combater os alemães. Para aquele que cria, a regra sobre regras diz que as regras existem para serem criteriosamente quebradas. A arte ensina-nos uma lição simples que podemos aplicar com vantagem nas nossas vidas: onde virmos uma barreira, não fiquemos do lado de cá; perguntemo-nos como podemos e quando devemos passar para o outro lado.

Sobre o segundo: agarramo-nos excessivamente às certezas, que nos confortam, e por isso somos levados ao engano. Quando entrou no mundo de Tarantino, Hitler deixou de morrer no “bunker” e ficou à disposição para se finar onde Tarantino bem quisesse. O artista, o criador, não precisa de perguntar se há mundos paralelos. Se precisar deles, fá-los.

Na vida diária, nós, ao invés, tendemos a ser assim parvos. Preferimos a esterilidade da certeza ao húmus da dúvida. Alapamo-nos a referências como se fossem bíblias. Catalogamo-nos a nós e aos outros consoante critérios que, de tão apertados, não têm espaço para lá caber ninguém. Procuramos pouco o que é diverso. Vemos e queremos ver inimigos onde há apenas diferenças. E quando o artista, no uso da sua liberdade, arrebenta com Hitler um ano antes do devido, ficamos admirados, olhando para o ecrã com cara de mono. Conto voltar em breve a algumas destas nossas fragilidades, que merecem ser esmiuçadas.

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