terça-feira, setembro 30, 2008

Outra vez a palhinha

Hoje estou com grã vontade de arrear nos republicanos americanos. Isto, depois de mais uma machadada nas minhas pobrezitas aplicações, resultante do chumbo, maioritariamente votado por eles, do plano por acaso gizado por eles para resolver a cratera financeira criada por eles. “So being”, aqui vai um videozito do mais puro realismo sobre a Sara Palhinha.

segunda-feira, setembro 29, 2008

Exposição fotográfica (II)

Guimarães: Afonso Henrinques saindo pela manhã para o trabalho. Março de 2008. Canon 400D, 55 mm, 1/400s, f14.



O boneco é angolano e ter-se-á farto do National Geographic. Fevereiro de 2008. Canon 400D, 39 mm, 30s, f29, com tripé.



Funchal, tirada num hotel do Lido. Janeiro de 2006. Sony Cyber-shot DSC-P72.



Na Casa da Calma, turismo rural ao pé de Santa Catarina, no Algarve. O gato da proprietária adormeceu na espreguiçadeira. A toalha pu-la lá eu e o difícil foi não acordar o bicho. Setembro de 2004. Sony Cyber-shot DSC-P72.



Alfama: resquícios de arraial no Largo de São Rafael. Abril de 2008. Canon 400D, 18 mm, 1/200s, f8.

domingo, setembro 28, 2008

É uma casa portuguesa com certeza

No Expresso de hoje, titulava-se que 3200 (três mil e duzentas) casas foram atribuídas por cunha em Lisboa. O processo está em investigação e os detalhes ventilados pela imprensa desanimam o mais confiante dos optimistas quanto à perspectiva de isto algum dia tomar rumo de jeito.

Sempre houve cunhas em Lisboa. Só na lista telefónica encontrei próximo de seiscentos, incluindo uma Aida Purificação, um Albérico, uma Anália, uma Carmelita (suponho que das calçadas), um Gumercindo, uma Liseta, uma Osmia e um Otílio. Mas tão peculiares antropónimos não são metade do estranho que são os casos de cunha que o Expresso relata. E estes, o mais estranho – e preocupante – que têm é o facto de já não estranharmos.

Como nós não estranhamos, os cunhados e os afilhados também já não. Escolho um apenas como emblemático exemplo. Funcionário da tipografia da Câmara de Lisboa, foi-lhe atribuído nos anos oitenta um T1 em Telheiras, porque estava em processo de divórcio e tinha um filho a cargo. Piedosa atenção da edilidade, assumamos que justa. Pois hoje, o então indigente já subiu a pulso até director camarário (vamos generosamente supor que por mérito), casou outra vez, comprou nova habitação, mas mantém a casa atribuída pela CML e, não ciente do abuso que comete, ainda disparata do seguinte modo: “O meu filho é que mora lá. Não tenho dinheiro para lhe comprar uma casa nova”. E alonga-se mais: “É a minha casa de reserva. Se amanhã tiver que me separar outra vez, para onde é que eu vou?” E agora digo eu: “Olha, vai para o caralho!” Com perdão aos meus leitores pela má palavra, mas não consegui encontrar nos seis gordos volumes do dicionário Houaiss outro vocábulo que melhor se aplicasse aqui. E juro que procurei.

Então o teu filho, que agora pelas minhas contas andará a caminho dos trinta anos, não pode arranjar casa sozinho, como o resto das tropas? Agora o direito a tê-uns em Telheiras tornou-se hereditário? Coitado, o rapaz deve ter saído a ti! E tu, se não queres ir para o olho da rua, não te separes. Põe-te à tabela. Torna-te indispensável. Vai a uma consulta de andrologia ou compra umas caixas de Viagra®. Mas devolve lá a casinha ao erário público, que eu, que pago imposto municipal, não tenho nada a ver com os teus problemas sentimentais.

Não haverá na Praça do Município alguém de coração misericordioso que cometa a caridade de oferecer a este senhor uma tardia oportunidade de aprender a desenrascar-se sozinho, despedindo-o sumariamente?

Quando me casei, comprei um apartamento na periferia de Lisboa. A mensalidade custava 75% do meu salário. Como não tinha dinheiro para a mobilar, vivi dois anos numa casa dos meus pais (não atribuída por qualquer autarquia) até me poder mudar. Consequentemente, a câmara retirou-me dois anos de isenção de contribuição autárquica, um direito que eu tinha, sob o pretexto que não habitava lá. Pudera! Só se me deitasse no chão! Ainda me desloquei às Finanças, mas o funcionário, embora simpático para com a minha situação, explicou-me que nada havia a fazer. Aplicava-se a letra da lei, não o seu espírito.

Este meu caso nem sequer é dos mais danosos ou chocantes, quando comparado com outros que conheço e, suponho, muitos outros que desconheço, de prepotência sobre os contribuintes. Mas todos eles fazem com que os abusos que o Expresso hoje relata e, sobretudo, a ligeireza desculpabilizadora com que os beneficiados se justificam se revistam de uma gravidade extrema.

Ficar com um T1 em Telheiras que não se lhe pertence é, na prática, como roubar 150.000 €. Quando um bandido assalta uma agência do Espírito Santo e leva uma quantia destas, vê-se a braços com a justiça se apanhado. A quem se apropria indevidamente de um valor imobiliário de igual montante, ou a quem deixa apropriar, não lhe deveria acontecer exactamente o mesmo? A única diferença entre as duas situações reside na identidade dos lesados: no primeiro, o Dr. Ricardo Salgado e os restantes accionistas do BES; no segundo, eu e os demais habitantes de Lisboa.


A corrupção, o clientelismo, o nepotismo, são dos maiores cancros que um regime democrático pode ter. Porque minam o próprio âmago do que faz ou deveria fazer a força das democracias: a igualdade de deveres e oportunidades diante da Lei, a condução da coisa pública na procura desinteressada do bem comum, a superioridade moral que advém de a todos atender de igual modo, de acordo com as necessidades de cada um e as possibilidades existentes.

Se a democracia for forte e as pessoas sentirem que estes princípios de justiça e igualdade são aplicados, aceitarão pacificamente que sobre elas se faça o exercício do poder, uma vez que reconhecerão que é para o bem de todos. Se, pelo contrário, a democracia for fraca e as pessoas verificarem que o poder é exercido por uns em proveito de poucos, afastar-se-ão progressivamente do regime e, ao primeiro tropeção da situação (crise económica, aumento de insegurança, escândalo maior, etc.), virar-se-ão para soluções mais nefastas, como derivas autoritárias, homens providenciais, sanhas moralistas e outras que tais. A História assim o demonstra, no modo como terminou a nossa Primeira República e na tele-democracia de Berlusconi, da subida ao poder de Júlio César à subida ao poder de Adolf Hitler, do peronismo ao bonapartismo.

A democracia portuguesa é recente e ainda não está suficientemente escorada, sobretudo na mentalidade dos governantes e na dos governados. Na dos primeiros, para quem o poder ainda é um fim e não meramente um meio e que vêem com frequência os bens públicos como sendo deles, quando são de todos. Na dos segundos porque ainda toleram excessivamente os primeiros. E tolerar excessivamente aqui significa tolerar, nem que seja marginalmente, aquilo que é intolerável, como o clientelismo e a corrupção. Significa, por exemplo, voltar a votar, com o pretexto de que não há alternativa, num partido que aceita sem nada fazer situações como as descritas. Há sempre alternativa, nem que seja dar maciçamente o nosso voto àquele partido dos Açores que tem uma ave no emblema.

Conta a anedota que perguntaram uma vez a um lorde inglês o que era preciso para construir uma democracia, ao que ele respondeu: várias gerações. Temos portanto a desculpa de ainda ter algum tempo, mas convém ir começando.

Exposição fotográfica (I)

Provavelmente menos atentos, os organizadores das mostras fotográficas no CCB e em Serralves ainda não me convidaram para expôr a minha arte. Perderam uma boa oportunidade, pois acabo de negociar com o blogue Mataspeak o exclusivo da exposição regular de alguns dos meus melhores instantâneos. A começar... agora!




Carcaça de navio no norte da Bretanha, perto de Paimpol, onde a amplitude de maré é enorme. Passado algumas horas, o mar iria submergi-lo, como todos os dias. Junho de 2005. Tirado com uma mísera Sony Cyber-shot de 4 Mpx.



Fundo de um tanque num jardim contíguo à pousada do Alvito. Janeiro de 2007. Sony Cyber-shot DSC-P72.



"Lobby" do hotel Intercontinental em Abu Dhabi. Tirada durante o Ramadão, o cartaz publicita a excelência do "iftar" servido. O "iftar" é a refeição de fim de dia que quebra o jejum obrigatório. Sony Cyber-shot DSC-P72.


Rua de Odeceixe, numa noite de Verão. Agosto de 2006. Sony Cyber-shot DSC-P72.




Rue de l'Alboni, em Paris, ao pé do Trocadero. O letreiro fluorescente de uma farmácia forneceu o reflexo esverdeado. Outubro de 2007. Canon 400D, zoom a 28 mm, 1/60s, f6.3.

segunda-feira, setembro 08, 2008

A Sara Palhinha

Imaginemos que no partido que governa hoje o nosso país cerca de metade do eleitorado acreditasse no Pai Natal. Não no sentido figurado da expressão: que acreditasse mesmo a sério. Que escrevesse carta para o pólo norte abonando o seu bom comportamento anual, a ver se pingava uma prendinha. Que, na véspera do dia vinte e cinco, pendurasse as meias à lareira e lubrificasse o rebordo da chaminé. E que piamente cresse, na manhã de natividade, que o embrulho colocado debaixo do pinheiro viera nessa noite em trenó puxado por renas.

Deliremos mais um pouco. Assumamos agora que essas pessoas consideravam imorais ou incapazes quem, ao contrário delas, não acreditasse no Pai Natal. Que contribuíssem, com finanças mais ou menos parcas, para a promoção de estudos ditos científicos que, em teoria, comprovassem teoricamente a existência do velho barbudo. E que fizessem da crença neste São Nicolau condição necessária para eleger os seus governantes. Que tal? “O Mataspeak, hoje, passou-se de vez!”, dirão os muito estimados leitores.

Ora, o líder deste partido, se de forma pública e notória não acreditasse no Pai Natal, teria um problema para resolver. Como manobraria para ser reeleito? Por um lado, se se mantivesse firme no seu cepticismo, alienaria metade do seu eleitorado, correndo à ruína. Mas se, ao contrário, desatasse a proclamar que tinha andado ao engano, que afinal existia, que por epifania se lhe revelara, de casaca vermelha e barba branca, aí seria pior a emenda que o soneto. Não só os crentes desconfiariam da jogada, aderindo moderadamente, como a outra metade da sua base de apoio fugiria, receosa de eleger um fanático.

Que fazer, então? Uma safa possível passaria por escolher para número dois do partido um tipo que acreditasse mesmo muito no Pai Natal. Um fanático da prenda no sapatinho. Um louquinho do “oh-oh-oh”. Este totó atrairia o voto dos “painatalistas”, que pensariam tacticamente que sempre vale mais ter um número dois do que não ter nada. E o líder garantiria a cruzinha dos que não são parvos, que se resignariam a aturar os dislates do número dois a título de mal necessário.

Bom! O filme de terror acima descrito por acaso até saiu da minha cabeça, mas representa uma versão reduzida e simplificada do “multilema” que se punha até há dias atrás ao senador John McCain. McCain concorre à presidência dos Estados Unidos da América, por detalhe a maior potência mundial, representando um partido, o republicano, onde uma parte significativa e decisiva dos eleitores acredita não num, não em dois, mas numa data de Pais Natal.

Uns acham que o homem foi criado todo bem-postinho ao sexto dia e que isto é que deveria ser ensinado nas aulas de biologia. Outros pensam que o facto de qualquer idiota poder ser dono de uma arma de fogo não tem nada a ver com as matanças que todos os anos ocorrem nos liceus americanos, quase com a mesma tradicional frequência que o baile de formatura. Há os que julgam que a substituição da educação sexual escolar pela promoção da abstinência entre os adolescentes não está na origem da maior taxa de gravidez precoce do mundo ocidental. Aqueloutros ainda não perceberam que os furacões cada vez mais vezeiros e violentos que levam no toutiço têm origem no aquecimento global promovido pelas carradas de CO2 que a indústria americana debita cá para fora. Verdade seja dita, não devem morar na Louisiana ou na Florida. Outros ainda supõem que a coisa se resolve furando mais poços de petróleo, dê lá onde der. E não me admirava que alguns haja lá para o meio que acreditam mesmo na existência do Santa Claus, “himself”. Já agora, para maluco, maluco e meio.

Ora o McCain, do alto dos seus setenta anos, inscreve-se mais no estilo do velho partido fundado em 1854 por anti-esclavagistas e modernizadores da política americana, o partido de Lincoln e de Theodore Roosevelt, partido que pouco tem a ver com a cegarrega autoritária e atrasada mental dos últimos tempos. Para parte da turba votante, é um suspeito esquerdista, apesar das condecorações e das cicatrizes.

Com tanto sandeu para contentar, McCain precisava de vários vice-presidentes, mas as regras deixadas pelos pais fundadores só lhe permitem um. Vai daí, passou a base de dados com os trezentos milhões de norte-americanos num algoritmo de optimização multi-variável e conseguiu desencantar numa vilória do Alasca o único americano – no caso uma americana – que não só acredita nos Pais Natal todos, como tem a idade e o sexo que ele não tem (demograficamente falando, é claro).

Sarah Palin nasceu no Idaho mas foi criança para o Alaska. O pai Palin ia com ela caçar o alce antes da hora de entrada na escola e a família entretinha-se com corridas de 5 e 10 km, o que a menos quarenta deve ser o máximo. Claro que isto tinha que deixar marcas na pequena Sarah que cresceu cristã evangélica, criacionista, membro da “National Rifle Association”, “pro-life”, “pró-virgem até ao casamento”, “pró-corte de subsídios aos deficientes”, “pró-esburacar o Alasca a sacar petróleo”, “pró-censura dos livros inconvenientes”, “pró etc.” Pró caraças não lhe faria mal nenhum!

Mas como Deus dá com uma mão o que tira com a outra, para compensar tanta burrice deu-lhe uma carinha laroca, com a qual ganhou o título de Miss Wasilla, possivelmente competindo contra duas ursas polares e uma “inuit” velhota, para que o “quorum” fosse preenchido. Forte desse diploma de beleza, andou em cinco universidades diferentes para acabar um curso de jornalismo, tornou-se repórter desportiva, presidente da câmara de Wasilla (sete mil alminhas, já contando os alces que sobreviveram ao pai Palin), governadora do estado (onde rapidamente deixou o orçamento num triste estado) e agora candidata à vice-presidência dos Estados Unidos da América. É assim como se a presidente da junta de freguesia de Curral das Moinas se visse de repente em ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros.

Tudo isto seria motivo para uma boa galhofa, não fosse o McCain ter setenta e dois anos, com quatro melanomas, muita porrada levada no Vietname e qualquer dia poder dar-lhe um badagaio. E, se tiver sido eleito, lá vão os códigos do arsenal nuclear para os dedinhos habituados ao gatilho da presidente Sarah Palin. Um sossego!


P.S.

Para quem não entendeu ainda bem o que é a direita evangélica norte-americana, recomendo os capítulos quatro a sete de “American Theocracy”, de Kevin Phillips, um antigo conselheiro de estratégia eleitoral de Richard Nixon. Um bocado maçudo, mas com dois ou três cafés vai.

Se quiserem uma versão sintetizada, vejam este extracto do Jon Stewart, que fala por si (o extracto, não o Jon):

terça-feira, setembro 02, 2008

O livro que ia mudar a minha vida (mas não vai)

Há dias, passando diante de uma montra da Bertrand, o meu olhar foi atraído por um cartaz que anunciava um livro. Não me recordo do título, nem do autor (uma senhora com cara e nome de branca, anglo-saxónica e protestante, do género Katherine Lou Smith ou equivalente), que com certeza não interessam para esta conversa. Mas fiquei a matutar no “slogan”, que prometia, com categórica certeza: “o livro que vai mudar a sua vida”.

Ora aqui está uma obra que eu não vou ler. Por pouca paciência, certamente, mas também porque quem tem cu tem medo. E se aquilo por acaso resulta? Por que raio é que eu havia de querer que a minha rica vidinha mudasse? Sinto-me razoavelmente satisfeito com a que tenho, mau grado a injustiça de o Sporting não ser (ainda) campeão europeu, e melhor fico se não arriscar. Dos livros que leio, alguns enriquecem a minha vida, outros divertem-na, uns quantos, felizmente poucos, suspendem-na num intervalo de tédio. Agora mudá-la, até agora não e ainda bem.

Como funcionará um livro que muda a vida de uma pessoa? Qual é a mecânica? Só fará efeito se lido de fio a pavio? Dobra-se a última folha e tocam à porta, a anunciar uma herança milionária de um distante e incógnito parente, ao mesmo tempo que recebemos um SMS da nossa mulher a avisar que foi viver para o Algarve com uma namorada e que não a procuremos? Ou, ao invés, terá um comportamento progressivo? Neste caso, na quinta página já nos chega uma carta das finanças com uma multa por atraso no IRS, ao terceiro capítulo penhoram-nos ordenado e carro e chegados à palavra “fim” vemo-nos envolvidos num “kafkiano” processo de fraude fiscal, no qual nos julgamos inocentes, mas que termina com prisão maior e uma nova existência, eremita e penitente, na cadeia do Linhó.

Num cenário mais ousado, o efeito poderia ser avassalador e imediato, como no célebre “sketch” dos Monthy Python da anedota assassina que nunca conseguimos saber qual é por que todos os que tentam ler o papel onde está escrita morrem de riso à segunda ou terceira palavra. Se assim fosse, à quarta linha lida a mágica leitura produzia efeito e descobríamo-nos do sexo oposto, numa transformação milagreira da nossa estrutura hormonal ou, pior, ensandecidos e sócios do Benfica. Tudo do avesso e nem valia a pena acabar tão transformante canhanho.

Admiravelmente, este livrinho vende múltiplas edições, em noventa países e trinta idiomas. Este e não só, porque há o segredo que andou perdido e só agora se revela ou o monge que vendeu o Ferrari porque lhe perturbava a introspectiva meditação ou outras gloriosas promessas do mesmo literário calibre. Milhões de exemplares. Anda portanto muita gente por aí à procura de trocar de vida, que a que tem não lhe serve, nem recauchutada.

E com razão? Será esta existência de ocidental do princípio do século XXI tão vazia de interesses e de motivações que precisemos, maciçamente, comprar a banha da cobra ou o elixir do doutor Doxey que nos canta a loa de uma vida que não é a nossa?

No extremo oposto, recordo um episódio de uma série de viagens da BBC em que Michael Palin, um “Python” que sobreviveu à letal anedota, entrevistava uma habitante de um campo de refugiados no Sahara Ocidental. Esta senhora praticamente nascera, crescera, casara, fora mãe, tudo no perímetro do campo. Sempre vivera numa tenda. Nunca beneficiou de água corrente, nem de luz, nem de qualquer dos pequenos luxos que fazem parte do nosso quadro mental mínimo de referência. Perguntava Palin: “o que é que a faria contente?” Respondia ela: “o que Deus me dá faz-me contente.” Insistia Palin: “Não, mas o que é que precisava para ser feliz?” E a mulher de retorquir, com um risinho: “o que Deus me deu faz-me feliz.” E lá ficou o Michael, de microfone à banda.

Esta Saaraui exibe, certamente com cândido exagero, uma característica que muito deve faltar aos fiéis leitores dos livros que mudam vidas: contentamento. Será por vítima de obscurantismo, por ignorância do que está para lá das dunas que desenham o horizonte do campo de refugiados, por religiosa alienação, por todas essas excelentes razões. Mas, e com todas as ressalvas que aqui possamos colocar com receio da ira do politicamente correcto, aquele sorriso tímido mirando a câmara da BBC faz pensar. Não que a minha tese seja a de que devíamos todos morar em tendas num deserto e que aí tudo iria pelo melhor no melhor dos mundos. Não sou muito atreito ao mito do bom selvagem. Mas contemplo a sumária serenidade daquela mulher, descontextualizo-a, isolo-a e encapsulo-a. Que obtenho? Algo que procuram aqueles que, por essas Europas e Américas, apanham grandes barrigadas de auto-ajuda e outra literatura salvadora.

O contentamento tem uma receita simples. Procurar gozar, em cada momento, o lado bom da vida – há (quase) sempre um, neste privilegiado hemisfério norte. Saborear mais o que se tem do que sofrer o que não se pode ter. Viver. Deixar viver. Não se mortificar com a pouca cilindrada do carro ou com o pensamento remoto de que não havemos de cá ficar ou com a nossa miserável falta de notoriedade, que temos todos pinta de vedeta e ninguém nos conhece. E o que é que isso interessa? “Carpe diem!” E, aos mais receosos com o mistério das coisas, relembrar Alberto Caeiro: “Sei lá o que é o mistério! O único mistério é haver quem pense no mistério.”

Quem está contente não precisa de mudar a vida, o que não implica que não faça por a melhorar: um bocadinho, imenso ou meramente o necessário. Contentamento não quer dizer resignação ou fatalismo. Pelo contrário, sobre ele se pode construir a mudança, em nós como nos outros. Viver o dia não obsta a que se prepare o futuro.

Não gastemos pois preciosos segundos a tragar as baboseiras que o mais ignóbil “marketing” editorial nos quer impingir como indispensáveis. Mas se já compraram algum desses malfadados volumes, não se inibam de retirar alguma utilidade desse acto menos reflectido. Há sempre uma mesa a precisar de um calço, um tipo de quem não gostamos a cujo aniversário temos que assistir ou outro destino de igual nobreza para as prosas que querem mudar as nossas pobres vidas.