Nessas ocasiões, amigos que julgam vão o conhecimento terreno dizem-me que tenho a cabeça cheia de coisas inúteis. Muito me honram, mas muito se enganam. Cabeça cheia é algo que eu não tenho. Se um cartão de “Trivial” me perguntasse qual o estado da minha cabeça, talvez respondesse “oca” ou “com muito espaço para preencher”. Cheia, repito, sei que não: há tanto que vale a pena conhecer e que eu ignoro! E cada vez que encontro algum facto ou pensamento interessante e o arrumo num recanto da minha caixa craniana, vejo por lá muita prateleira vazia, a ganhar mofo, à espera de melhores dias. Até porque o saber vem empacotado em embalagens pequenas e não ocupa muito lugar, senão, como dizia um velho professor que me deu a quarta classe, os sabichões usariam sacas de batata à guisa de boinas.
Possuo, é verdade, boa memória para informações pequenas. Por isso arrasto, como uma grilheta, este “vade mecum” de nomes, datas, acontecimentos pontuais, respostas prontas. Uso-o para espantar os meus filhos, respondendo por antecipação às perguntas que embaraçam, na televisão, os concorrentes ao “Quem quer ser milionário?” ou ao “Um contra todos”. Ou então para irritar o pessoal, somando vitórias no “Trivial Pursuit”.
Não me empenhei, de modo algum, em aprender este saber miúdo. Nunca me pus a ler a enciclopédia britânica, nem o borda-d’água, nem decorei malévola e clandestinamente as respostas dos cartões. Li, no entanto, outras coisas, debrucei-me sobre alguns temas, procurei perceber alguns assuntos que achava interessantes. E nesse caminho que percorri e ainda percorro apanhei esses saberes inúteis, colados aos neurónios como as espigas do mato rasteiro que se prendem às meias e aos atacadores durante um passeio de Verão.
Este saber de feira, de respostas azuis e verdes, tem pois pouca importância para mim. É um resíduo, um resquício, uma borla, às vezes uma piada. Mas há outros saberes que são, esses sim, importantes, saberes que nos ajudam a perceber a realidade, a ajudar melhor tanto os outros como a nós próprios ou a manter vivos valores que vale a pena que não se percam. Saberes que nos trazem, mais do que saber, sabedoria, e nos apoiam na nossa errante e errática procura por um pouco de entendimento e alguma felicidade.
Gosto, por exemplo, de ler História. Ler História traz-nos identidade, entendimento e humildade. Que já são três mais-valias seguras. Identidade porque, ao lê-la, apreendemos melhor o nosso envolvimento em certas estruturas incorpóreas, como a nacionalidade, a língua, um bloco civilizacional ou uma ideologia, e ao compreendê-las melhor compreendemo-nos melhor a nós próprios e damos um sentido adicional à nossa existência. Entendimento porque existem fenómenos de hoje que têm raízes profundas no passado ou que repetem situações com que outros homens se depararam há mil atrás. Diz o provérbio oriental que a experiência é uma candeia que só ilumina o caminho andado e o provérbio nortenho que prognósticos só no fim do jogo. Por isso, nada como aprender com a experiência dos outros. Finalmente, humildade, porque quando conhecemos melhor os homens e mulheres do passado, verificamos que – contrariamente a certas ideias feitas – não somos nem um pozinho mais espertos ou sofisticados do que eles ou, pelo menos, parte deles. Não possuindo MSN nem ar condicionado, alguns poderiam dar-nos banhos de bola no que toca a coragem, sagacidade ou engenho.
Como vantagem adicional, tudo o que podemos aprender com a História vem em histórias com muita acção, intriga, pancada, sexo de todo o tipo, paixão e romance, batalhas com milhares de figurantes que nem no Senhor dos Anéis parte III, gajos de saias, mistério e até magia. Enfim, tudo o que a BBC e a Fox pretendem oferecer, sem ter que aturar os chatos da TV Cabo: aprendizagem e entretenimento, juntos e ao vivo!
Noutro plano, interessa-me também ir conhecendo a reflexão que se tem em Filosofia, num sentido lato que inclui a Ciência (dantes chamada filosofia da natureza) e a evolução que nelas tiveram as ideias, políticas, morais, científicas, etc. Por vezes os filósofos escrevem de forma difícil: lê-los requer esforço e obriga a ginástica mental, a suar um pouco, a pôr o cérebro a correr na passadeira e a encher cinquenta. Tal como no ginásio, em que a canseira tem múltiplas compensações, desde barrigas menos flácidas a arregalar o olho na boa que se esforça na máquina de pesos, penar duzentas páginas de Filosofia pode trazer vantagens várias.
Primeiro, pode ajudar-nos a aclarar e confirmar as nossas ideias ou, pelo contrário mas melhor ainda, permitir-nos perceber que andávamos redondamente enganados. Quando esta última situação ocorre, a Filosofia proporciona-nos uma ocasião ímpar para mudar de ideias, experiência clarificadora mas que muita gente, por razões que não entendo, acha tão penosa como reconhecer que anda a ser encornada. Depois, conhecendo a evolução das ideias ao longo dos tempos, verificamos que muita malta inteligente passou completamente ao lado da realidade, simplesmente por que foi incapaz de pôr de lado um conceito que não prestava. Isto alerta-nos para a necessidade de ter uma mente aberta e um espírito permanentemente crítico, que toque a sirene e acenda luzes vermelhas e verdes à mínima incoerência. Sistema que, confesso, não tenho nem estou próximo de ter.
O prémio máximo que a leitura de um livro de Filosofia nos pode trazer é chegarmos à última página e, tendo percebido o que o autor queria dizer, concluirmos que ele é um perfeito idiota, por muitos galões e referências que tenha em compêndios escolares e teses de doutoramento. Nada como alguma iconoclastia, nestes tempos que correm em que se seguem mestres de forma excessivamente piedosa.
São estes alguns dos saberes que me interessam, por me parecer que me ajudam: a entender melhor a mim e ao mundo, a agir de uma forma mais positiva para mim e para os demais, a dar sentido à minha vida e a passar um testemunho que recebi e que deve continuar por outras mãos, no dia em que eu já cá não estiver.
Dito isto, não tenho – honestamente – a pretensão de saber muito, nem o suficiente, nem mais do que os outros. E claro que nem só nos livros se encontram estes saberes, nem possui-los nos dá grande autoridade. Por vezes, pessoas com uma bagagem que pretensiosamente julgamos pequena trazem dentro da trouxa tesouros de bom senso. Quando terminei o mestrado, recordo-me de o meu avô paterno me ter perguntado em que é que eu tinha ficado com esses últimos estudos, a que eu respondi, patetamente orgulhoso, “mestre”. E ele, que era um homem simples, de não muitas letras e que tinha uma carteira profissional de uma carreira administrativa qualquer que lhe dava como categoria “mestre de segunda classe”, comentou, com uma ironia meiga: “Então, andaste estes anos todos para ficar só igual a mim?”
Não, avô, não fiquei igual a ti, porque ainda não tinha acabado de ouvir tudo o que me tinhas para dizer, e muito há, do que me disseste, que só agora, com o passar do tempo, vou percebendo por inteiro.
1 comentário:
Carlinhos, se te tratamos de caprino de grande porte, não é por desdém mas por inveja... ;)
Gostávamos de saber o que sabes e continuar a ser pessoas modestas, acessíveis e humanas.
Gostávamos de ter a tua memória, o teu interesse pelas coisas.
E és de facto um adversário temível e não gostamos de perder sempre ao mesmo jogo... LOL
Quanto ás más línguas deixa lá, o "saber útil" ás vezes tb deixa um bocado a desejar... (quem é que quer ser catedrático em alma de Santola?)
Finalmente, me lembro já quem é esse tal de Eduardo, mas no que diz respeito ao Potomac, seu caprino de grande porte, a sua resposta não fez revirar os olhos a ninguém... cagão!!!
Grunf...
Aposto que não consegues dizer Pneumoultramicroscópicosilicovulcanoconiótico...
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