Eu, sentado no lugar mais à esquerda do sofá, veria televisão, encostada na parede oposta (na altura, as televisões punham-se longe porque faziam mal à vista). O meu pai chegaria do trabalho, se o turno fosse o que terminava a meio da tarde, e dir-me-ia, num tom de falsa reprovação: “Eh, pá! Esse lugar é meu!” Eu afastar-me-ia meio metro, fingindo protestar e ele sentar-se-ia, o braço apoiado no braço do sofá, segurando um livro, que desfolhava enquanto fumava um cigarro (nesse tempo, os cigarros não faziam tanto mal à saúde). E eu, no lugar ao lado, encostado a ele, riria com os desaires do gato Silvestre, ou com as americanadas do “Green Acres” ou do “Will Smart” ou com o que passasse no único canal, que de tão único nem se chamava ainda canal mas apenas televisão.
Esta é uma das mais marcadas memórias da minha infância – apenas na medida em que uma memória de infância, por natureza difusa ou esborratada, consegue ser marcada. Uma lembrança cálida, de uma felicidade secreta e banal que o tempo, esmaecendo, refinou.
Esta é uma das mais marcadas memórias da minha infância – apenas na medida em que uma memória de infância, por natureza difusa ou esborratada, consegue ser marcada. Uma lembrança cálida, de uma felicidade secreta e banal que o tempo, esmaecendo, refinou.
Com o decorrer do tempo, fui vendo as coisas de diferentes modos. Compreendi, por exemplo, a importância para a minha vida, para as nossas vidas, daquele meio metro quadrado de pano, molas e espuma que é o lugar ao lado. Percebi que parte do que observamos à nossa volta se explica se dividirmos a humanidade em dois grupos: os que tiveram um lugar ao lado e os que, infelizmente, não tiveram. Revoltei-me ao ver que havia quem, tendo todas as condições para dar aos seus filhos um lugar ao lado, por egoísmo ou soberba não o fizera.
Preocupa-me pois olhar para a minha beira e ver se deixei junto a mim espaço que chegue para um lugar ao lado, para os meus filhos. Parece-me às vezes que sim, mas não posso ter a certeza. O tempo dirá se fui, ao fim e ao cabo, um fracasso ou um sucesso.
1 comentário:
Pelo que conheço de ti, meu amigo, não só reservaste dois lugares ao lado para os teus filhos, como regularmente fazes inspecções de manutenção para garantir que ainda são lugares confortáveis.
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