If we share this nightmare
Then we can dream
Spiritus mundi.
The Police, in "Synchronicity I"
Quarta, vinte e sete anos depois de os ter visto quase de esguelha na cabeceira norte do estádio do Belém, revi os Police no Jamor. Já tinha algumas memórias vívidas das minhas idas ao Estádio Nacional: um golo de mais de cinquenta metros do Artur, julgo que contra a Noruega, que passou rasteirinho por toda a equipa adversária, todos naquela de “alguém há-de lhe pegar” ou, noutro jogo, o burburinho na cabeceira oposta após um atrasado mental ter largado não longe de mim um foguete que atravessou o campo para matar um espectador, gesto que eu não vi por estar a olhar para cima, a amaldiçoar os céus pelo golo injusto e certamente irregular que deu a taça ao Benfica. Junto agora a essas lembranças um espectáculo de arregalar olho e orelha, que me fez dar por bem empregue a nota preta que larguei pelo bilhete e a hora e meia de bicha na A5.
Quando cá vieram pela primeira vez, os Police eram “primus inter uma data de pares” da “new wave”, uns permanentes fazedores de sucessos, uns potenciais sucessores dos Beatles – na altura ainda se discutia a questão da sucessão. Estavam no auge da sua popularidade e o Restelo apinhou-se da juventude de 1980. Apesar de todas estas vantagens, o concerto foi sombrio e fracote, tanto quanto me lembro, e prejudicado por uma acústica menos do que mediana.
Agora, voltou a apinhar-se a juventude de 1980, que a juventude de 2007 trata carinhosamente por “os meus cotas”. No primeiro tinham ido no 27 da Carris, agora foram no 316 da BMW e quejandos. Trocaram as calças rotas no joelho e os “badges” de lapela por um “smart casual” ou mesmo pelo fato e gravata, para os que não puderam ir a casa. E o concerto foi dos maiores. Verdade se diga, em palco não estiveram apenas músicos e músicas, estiveram sobretudo lembranças vivas dos melhores anos das nossas vidas. Mas, mesmo descontando esta preciosa vantagem, o concerto continuou a ser dos maiores.
Vistos nos ecrãs gigantes, os polícias espelhavam o tempo que passa: as madeixas tornaram-se cãs, o Sting escanzelou, Andy Summers ostenta agora tripla papada e o Stewart Copeland precisa de óculinhos para distinguir a tarola. Isso não os impediu de vergar quase duas horas. Usaram de bom senso e alinharam todos os sucessos, mas deram-se liberdade para os modificar, misturar e reinventar. Transformaram “reggae” em “quase metal” e “pop” em “novo pop” ou “jazz”. Excelentes, as versões de “When the world is running down” e “Bring on the night”. Vibrantes de pedalada, “Next to you” e “So lonely”. Tocantes como sempre, “Invisible sun” e, claro, “Roxanne”. O palco, envolvido por sistemas luminosos que possibilitavam originais e soberbos efeitos visuais, dava espectáculo dentro do espectáculo, e era como se o grupo estivesse a actuar dentro de um Pollock ou de um Mondrian.
Conhecidos por se darem pessoalmente muito mal, os três membros da banda completam-se como os três dedos da mão de um tipo que tenha perdido dois dedos. Sting traz carisma, pelo falsete peculiar da voz, pela presença apessoada, pelas causas e outras tangas. Summers contribui com profissionalismo. Com mais liberdade para solar do que há vinte e sete anos, Andy teve excelentes sequências de boa guitarrada, mas falta-lhe sempre aquele golpe de asa. Nunca será um Alvin Lee ou um Rory Gallagher, mas para o efeito não precisa. Porque Steward Copeland traz a componente de génio do grupo.
Copeland pertence a uma espécie em vias de extinção, que devia ser protegida pelo WWF tal como o panda das estepes, a catatua do Nilo ou a águia rosa: é um baterista! Não é um sintetizador, não é uma caixa de ritmos, não brinca com uns batuques: é um baterista. Um grande baterista. Senta-se no banquinho e desenha ritmos, encaixa-os nos interstícios da harmonia com a perícia do artesão e a volubilidade do louco. Bate à bruta quando se pede força e afaga quando se quer meiguice. Às vezes repete, às vezes varia. Traz à música e à mente aquela componente nascida e esquecida num passado seminal, órfica, emotiva, que nos induz comportamentos superiormente irracionais e humaníssimos como a dança e o canto.
Saído do Jamor, dei comigo com dois pensamentos sucessivos: “já não há grupos assim”, seguido de “isto é pensamento de velho”. Não sei. Tenho a imodéstia de não me achar excessivamente faccioso. Obviamente a “new wave” é a música da minha memória, que animou as primeiras festas e embalou os primeiros beijos. Beneficiará sempre de um estatuto especial, de saudade e condescendência. Mas procuro ir ouvindo outras coisas, futuras e passadas. E quando gosto, gosto. Só descobri os Nirvana há dois ou três anos, já o Kurt Cobain estava morto e enterrado. Comprei o “Nevermind” para matar a curiosidade. Ouvido e rendido, não tive dúvidas que estava diante de um melhores álbuns de sempre do “rock”, com uma energia telúrica que é a essência do género, com um negrume cantado que retrata o espírito de uma época. Noutra ocasião, fiquei de lágrima ao canto do olho ao ouvir um fado de um José Pracana, numa colectânea de canções com mais de cinquenta anos, que vinha de brinde num jornal! Um tipo de quem nunca ouvira falar, que tive que andar a perguntar à paternidade se sabia quem era, um tipo de um passado antepassado, recuperado digitalmente para me cantar a tristeza da vida e me deixar enfiado.
Por isto, repito, quando gosto, gosto, sem data marcada. Mas não posso deixar de pensar que a malta anda presentemente pouco empenhada a criar e pouco exigente a ouvir. Na geração dos Police, uma das mais férteis da história do “rock”, houve muita gente diferente a querer contar coisas diferentes de maneiras diferentes. Os Clash falavam de política, os Stranglers do lado negro da sociedade, a Patti Smith das dores da vida, os Police de tudo um pouco. Estes e outros procuravam chegar ao lado bê dos LPs sem ter que encher chouriços e conseguiam-no com uma dúzia de boas canções, para abanar a carola ou simplesmente para estar sentado no chão a ouvir. Aliás, hoje, na era do CD, quando ouvimos os “bonus tracks” que as reedições recuperam, canções gravadas em fitas esquecidas que na altura não foram publicadas, percebemos porque não o foram. Não é porque ocupassem espaço. É porque não mereciam e os seus autores tinham, para além de talento, vergonha na cara e respeito para com o público.
Não vejo muitos “Polices” de vinte anos e pergunto-me quem conseguirá encher os estádios de 2037. O Boss AC? Os Linkin Park? Não me parece.
2 comentários:
Pois...
Precisamente porque os Police enchem estádios, aqui o desgraçado e mais umas centenas de incautos apanharam com filas de trânsito monumentais à volta do Jamor...
Some may say I'm wishing my days away
No way, and if it's the price I pay
Some say: tomorrow's another day
You stay, I may as well pay
- Walking on the Moon
Too late
Take a bus
Don't wait
It's alright for you
in "It's alright for you", do "Regatta de Blanc".
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