Em qualquer domínio da existência humana, há sempre um grupo de artistas que se acha eleito por Deus e ungido de uma divina – e logo inatacável – verdade. Entre os povos, o israelita. Entre as classes profissionais, a dos jornalistas. Entre os adeptos de futebol, os benfiquistas.
Os adeptos dos outros clubes têm paixão, exultam na vitória e sofrem na derrota, mas lá no íntimo percebem que tudo não passa de um jogo, ou de um negócio, cujos sucessos e fracassos estão mais dependentes da rajada de vento que desvia para a barra um golo que parecia certo ou então da simpatia ou animosidade, mais ou menos inconscientes, do árbitro da partida do que de qualquer intervenção em seu favor de poderes celestes ou infernais.
O benfiquista, ao contrário, tem fé. Crê que aquele nome de bairro da periferia lisboeta e aquelas camisolas vermelhas, iguais às de milhares de outros clubes mundiais, ganham só por si partidas de futebol. Crê que a história se repete e que o Coluna e o Simões ainda jogam. Crê – sem se rir! – que o Benfica é da igualha do Real Madrid ou do Milan. Crê na multiplicação dos adeptos, tentando resolver o buraco financeiro com a técnica milagreira que Cristo usou nas bodas de Canã. Crê que o tamanho do rebanho chega aos seis milhões. Crê que a vitória, como o Céu, lhe é devida pela fé que tem. Só não crê naquilo que vê quando a equipa está em campo.
Com crença tão fervente, o comportamento do “homo benfiquis” releva mais da antropologia religiosa do que da psicologia de massas. As associações à terminologia e à orgânica das religiões são evidentes. O benfiquista não se desloca ao estádio, vai à “catedral”, para mais da “Luz”. O benfiquista acha que o seu clube, tal como Deus nosso senhor, é “glorioso”, mesmo nas mais tristes figuras. O benfiquista não espera que os dirigentes componham uma equipa de futebol, antes deseja um “salvador”, que opere o “milagre” de ganhar jogos sozinho, como o Santo Eusébio fazia. O benfiquista tem ouvidos para “pregadores” hirsutos e desgrenhados, “santificados” pelo seu reconhecido benfiquismo, sendo normal ver senhores engravatados a aplaudir de pé, nas assembleias-gerais, enquanto o inapresentável Barbas, de cachecol ao cachaço e táxi á porta, grita as maiores cavalidades contra o candidato da oposição. Finalmente, o benfiquista julga que o clube é “imortal”, por muitas tropelias que a Direcção cometa para arrebentar com a solvabilidade da SAD.
Quando a realidade dos resultados se incompatibiliza com as certezas da fé cega, acontecem eventos místicos. No início desta temporada, enquanto os adversários vendiam muito caro alguns jovens promissores para depois reforçar barato as suas equipas, reduzindo dívida que nem formigas, a cigarra Benfica começou por comprar à toa, depois teve que vender à toa as jóias da coroa, depois aleijaram-se uma série deles, depois foram vestidos de cor-de-rosa jogar contra o Leixões e empataram. Tal foi o suficiente para que a congregação lampiona realizasse logo um “auto-da-fé”, imolando o treinador nas chamas de uma rescisão de contrato, pela qual pagaram, aliás, uma bela maquia como clube rico que julgam ser. Afastado o “diabólico” elemento, vai de contratar outro treinador, um espanhol que, não sendo homem de resultados passados (esteve dois anos no Benfica sem ganhar o campeonato, esteve vinte dias no Real Madrid até a sua forte personalidade perceber que os jogadores não o queriam lá, estava há anos sem clube que lhe pegasse), promete resultados futuros com ar porcino e pronúncia manchega. Em consequência, sete mil seguidores apressaram-se a demandar uns abarracamentos que o clube tem no Seixal para assistir à torreira do sol a um treino, pasme-se, em grande manifestação de fé clubística, numa romaria masoquista que lembra a procissão das chagas nas Filipinas. Ao menos esses flagelam-se com um cilício, ganhando em eficácia o que perdem em ridículo.
Como pastor de tão iluminado rebanho (um posto de alto risco, que dá por vezes prisão no fim do mandato), brilha agora um senhor com um bigode que não se acredita e umas orelhas que são um milagre. Se o visual é de ícone, o discurso, esse, é de salmo, tecendo loas miríficas às grandezas da Instituição, como ele apelida com pompa bigoduda ao grémio que superiormente dirige. Quando soe tocar a trompa, não caem as muralhas de Jericó mas esboroam-se as frágeis ligações que seguram as palavras umas às outras, também conhecidas por regras da gramática, e sai para o microfone qualquer coisa a meio caminho entre a onomatopeia e a frase, entre o galego e o dialecto da Alverca, num discurso revelador de milagres que só os iniciados compreendem (do tipo “o Mantorras vale dezoito milhões de contos”) e de que os cépticos riem a bom rir, rebolando pelo chão e limpando as lágrimas com lenços verdes ou azuis.
Neste momento, benfiquista que se tenha posto a ler este texto deve estar certamente em brasa, com pensamentos de arrebanhar esbirros para queimar em santificadora fogueira o herético autor destas linhas mais a sua prosápia diabólica. Talvez valha a pena por isso contribuir com alguma verdade histórica para um acto de contrição e humildade desse amigo lampião ou, dito em português corrente, para um saudável abaixar de garimpa.
Na génese da Instituição está um grupo de rapazolas conhecido pelo “Grupo dos Catataus”, que em 1903 se juntavam para dar uns chutos num areal de Belém. Eu não teria grande orgulho em pertencer a um clube proveniente dos “catataus”, só pela sonoridade. E então se formos ver o sentido! Catatau é vocábulo que tem, no dicionário Houaiss, doze definições díspares, algumas perfeitamente deliciosas: “indivíduo muito baixinho, tampinha”; “besta grande e velha”; “falatório, mexerico, intriga”; “porção de qualquer coisa”; “pénis”. Nobres catataus! Todos nós temos um pénis na nossa origem, mas o Benfica pelos vistos tem vários.
Estes catataus juntaram-se em Fevereiro de 1904 a um outro grupo, de ex-alunos da Casa Pia – Olá! Olha quem eles são! – para fundar o Sport Lisboa. Foram provavelmente estes últimos que trouxeram a componente piedosa e crente que parece estar na massa do sangue benfiquista. O acto fundador teve lugar no restaurante “António das Caldeiradas”, nome que não podia ser mais premonitório do actual estado do clube. A primeira sede, aproveitando uma borla, foi numa farmácia, também em Belém: o “Laboratório Franco – Especialidades Farmacêuticas”. Compreende-se pois a tendência de alguns rapazes do plantel para recorrerem às tais especialidades quando as canetas falham e os adversários correm mais do que devem. Resulta do código genético do clube.
Finalmente, em 1908, o Sport Lisboa fundiu-se com um grupo de Benfica e deu origem ao Sport Lisboa e Benfica. Tinha nascido a Instituição. Curiosamente, numa caldeirada aritmética, o Benfica celebrou o seu centenário em 2004, com pompa e alarde. Encontro para este facto peculiar duas explicações plausíveis: a) o Benfica é tão superior que tem centúrias de noventa e seis anos; ou, mais provável, b) pediram ao Presidente Vieira para fazer as contas.
Amigos benfiquistas! Quem sou eu para vos pedir que reneguem a vossa fé? Afinal eu acredito ferozmente no direito à liberdade religiosa, por isso cada um que acredite no que quiser, por mais incrível que pareça aos outros, nem que seja que o Petit pode ir a uma bola sem fazer falta. Mais: até tenho uma certa ternura por vocês. Agora lembrem-se de uma coisa: o último livro dos Evangelhos é o Apocalipse.
3 comentários:
Caro amigo Carlos, embora como bem sabes eu seja ferrenho adepto sportinguista, não posso deixar de dizer que os telhados de vidro de alvalade têm tal número que é de louvar a coragem para escrever o que escreveste. Entre o "bigodes", e o industrial das cervejas, a coisa não piou muito fino não...
Pelo menos ainda não foram presos (apesar do bigodes ter fugido in extremis para Angola), lá isso é verdade.
E também só mesmo um Sportinguista é que percebe porque é que outro sportinguista faz (como eu) de advogado do diabo! :-)
Chiu! Pode ser que já ninguém se lembre!
Há 3 razões lógicas para se ser Benfiquista:
A razão natural:
A mulher dá à luz. Não dá às Antas, nem ao Dragão nem ao Alvalade.
A razão bíblica:
Há uma passagem que diz:
"dominarei os leões e os dragões e voarei para o céu sobre as asas de uma águia"
A razão teológica:
Jesus Cristo encarnou. Não azulou nem esverdeou!
LOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOLOL
Notem que não me podia estar mais nas tintas para a porcaria dos clubes... (todos)
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