quarta-feira, abril 18, 2007

A praga dos economistas

Practical men, who believe themselves to be quite exempt from any intellectual influences, are usually the slaves of some defunct economist.

John Maynard Keynes



Se Moisés tivesse ameaçado o faraó com a praga de economistas que para aí anda, tinha poupado o Egipto à peste e aos gafanhotos e o pessoal a trinta minutos de charutada no filme “Os dez mandamentos”. Isto porque o Ramsés, diante da sombria perspectiva, haveria de dar passaportes aos judeus todos, mais ao gado e à bagagem, antes que levar nas bancas com uma edição em hieróglifos do Diário Económico, propalando as virtudes da iniciativa privada na construção de pirâmides.

Vão longe os tempos em que a economia só interessava a cinzentos senhores de óculos, muitas vezes juristas adaptados, que nem faculdades específicas havia por não parecerem necessárias. Assuntos económicos não enchiam como hoje quatro páginas de jornal mais um suplemento semanal a cores, resumindo-se então a uma ou outra solta entre a bola e o necrotério. Défices que preocupassem, só o das plaquetas no sangue. Hoje em dia, pelo contrário, a moda pegou e a coisa descambou.

Agora, tropeça-se num calhau e salta de lá um economista. Muda-se o canal da têvê e lá vai um a perorar com ar de evidente sobre as maleitas dos gastos públicos. Sintoniza-se a rádio e aí vem outro a debitar sobre a reacção dos mercados ao relatório do Fed, como se os mercados fossem bichos com orelhas e patas e reacções, que desatassem a correr por aí acima como cutucados por um pau. Economistas, nas empresas, são aos rores e uns horrores. É vê-los, como formiguinhas chinesas a construir uma barragem de terra no Rio Amarelo, de cabelo besuntado e fato de três botões à procura do erro no EBITDA, ziguezagueando o cursor e o olhar angustiado pelo meio de gigantescas folhas de cálculo. Tantos e tão vistosos, que a economia, que não interessava ao menino Jesus, interessa agora a toda a gente, que por regra percebe do assunto tanto como os próprios em questão.

O economista, tal como prolifera hoje, é coisa caracteristicamente incaracterística, por mais do que uma razão.

Em primeiro lugar, porque tem dificuldade em se caracterizar. Praticando os médicos medicina, os advogados advocacia e os engenheiros engenharia, seria de esperar que os economistas tratassem de economia. Mas não. De acordo com a novíssima Ordem dos Economistas, é economista quem “tenha titularidade de uma licenciatura na área da ciência económica com um conteúdo curricular que corresponda à transmissão de um mínimo de conhecimentos técnicos e de uma cultura própria à profissão de economista”. Pescadinha de rabo na boca: é economista quem tiver aprendido o mínimo para ser economista. Depois de ler isto, perguntei-me, com uma angústia daquelas de bafo na nuca, se seria por funesto acaso economista. Sou licenciado, tive que ter dez numas cadeiras de macroeconomia e de contabilidade de custos e, entre outras coisas, leio relatórios e contas para ganhar a vida.

Para meu sossego, a dita Ordem, provavelmente consciente do granel que definições daquele género geram, apressou-se a publicar para esclarecimento das hostes uma lista de cursos que facultam o almejado estatuto. Para gáudio e grande alívio deste vosso criado, não consta lá o meu canudo. Mas, curiosamente, vêm listados nada menos de 22 cursos de gestão e administração, contra 18 de economia. Ora é mais fácil encontrar um defesa do Boavista meiguinho do que um licenciado em gestão que não nutra um ódio profundo e visceral pela economia, macro, micro ou assim-assim. Todos os que eu conheço, e são alguns, vêem a economia como uma matéria nebulosa, pejada de equações compridotas, de aplicabilidade prática duvidosa, sofrida a contra-gosto em cadeirões já esquecidos do segundo ano, e com aprovação à terceira ou quarta tentativa.

Como, ainda por cima, as faculdades produzem à vontade cinco vezes mais licenciados em Gestão do que em Economia, resulta que o economista é, com oitenta e tal por cento de probabilidade, alguém que nunca pensou sê-lo e que sempre trocou as econometrias por assuntos mais amenos e florais como contabilidade analítica ou “marketing e comunicação”. Mal comparado, é como se a Ordem dos Engenheiros admitisse amantes do bricolage. Tudo somado, a maioria dos economistas depois de o ser não o é, exactamente ao contrário da pescada.

Se já não resulta fácil perceber quem são, mais difícil será entender o que fazem. Os economistas que se sentem mais evoluídos manejam –julgam eles– uma especialidade chamada “ciência económica”. Aqui, deparam-se com uma pequena dificuldade. Para a perceber, convêm lembrar como funciona a ciência. De uma maneira razoavelmente simples: observa-se a realidade, arranja-se uma explicação para a observação de parte dessa realidade, traduz-se essa explicação num modelo, relacionando em regra grandezas numéricas mensuráveis. Os modelos científicos servem para várias coisas: permitem criar uma visão comum sobre os fenómenos (pela repetibilidade), dão-nos meios para antever a evolução dos fenómenos descritos (conferem previsibilidade), possibilitam a descoberta de novos fenómenos, deduzidos do modelo, e só depois observados e, muito importante, funcionam como autotestes permanentes a si próprios. Uma realidade que não encaixe no modelo invalida o modelo. A matemática, a física, a química, a biologia e a geologia floresceram à luz deste método, e com elas as suas primas tecnológicas: as engenharias e as medicinas.

A dita ciência económica, coitada, debate-se com um problema grave: não acerta uma, o que não era suposto. Não há um prémio Nobel da economia que nos consiga informar –sem se rir– qual vai ser a inflação da semana que vem. Os gurus das finanças, se ficam ricos, é só por haver parvos que pagam cem euros para os ouvir a debitar banalidades e espertos que convencem as suas empresas a pagar elas os cem euros. Se as previsões dos engenheiros aeronáuticos fossem tão de fiar quanto as do Banco de Portugal, ninguém punha os cascos num avião, porque ia cair de certeza, se por mero acaso levantasse vôo.

A realidade é simplesmente complexa demais ou os modelos económicos demasiado pobres: a dita ciência económica está numa fase medieval, quase alquímica, da sua existência. Os Keynes e os Friedmans deste mundo não passam de Paracelsos, e por muito respeitável que fosse este antepassado da Medicina, todos preferiríamos entregar os nossos destinos ao bisturi ou aos panasorbes de um obscuro mas moderno médico da caixa, ainda que correndo os riscos inerentes, do que às sanguessugas ou ao serrote do Paracelso.

Como reage a classe a tal estado de coisas? Uns, poucos e normalmente economistas propriamente ditos, embrenham-se em descrições matemáticas de um realismo "tolkeniano", imaginando num delírio artístico mundos virtuais povoados de funções de utilidade e matrizes de Ansoff, em vez de orks ou elfos. Frequentam congressos da academia e confiam na memória curta do povo e na seda da gravata para se aventurar com ar sério em prognósticos sobre o crescimento do PIB, em frente às câmaras de televisão. Outros, incapazes de tal pedalada, lêem de empreitada o Semanário Económico e os gurus das livrarias de aeroporto, e repetem. Repetem – com ar convicto ainda por cima. Quando os professores eram de esquerda, papagueavam a planificação da economia. Agora, que os professores alinham à direita, passaram a ararar as vantagens do mercado livre. Se lhes perguntássemos se as forças de mercado teriam sido suficientes para produzir o Taj Mahal, os Concertos Brandeburgueses ou o estado social sueco, ficariam a olhar, como economistas para um palácio, manifestamente sem perceber o sentido da pergunta.

Por outro lado, com a vitória supostamente suprema das vantagens absolutas do mercado livre e da sua mãozinha invisível, os economistas, mesmo que hipoteticamente acertassem de vez em quando, tornaram-se inúteis. Uma vez que preconizam que não se deve mexer em nada, porque as coisas se ajustam sozinhas e que a intervenção só estraga, são como um médico que apenas explicasse ao doente: “Você tem uma fractura exposta. Vamos deixar que isso vá ao lugar sozinho, que não se deve tocar. Se por acaso apanhar gangrena, vai morrer mas também não há azar porque nesse caso você não é biologicamente eficiente e há que dar lugar a quem o seja. A concorrência tem que funcionar”. Ao aceitar como inevitabilidades – que se explicam mas não se combatem – a dor e o sofrimento gerados pelas injustiças de cariz económico, portam-se como um Leonardo da Vinci que olhasse para o voo das aves e concluísse que os homens nunca conseguiriam voar.

Perturbados com as dificuldades que a evolução do mundo – social, demográfica, tecnológica, ambiental – causou ao modo de intervenção dos homens na economia, os economistas abdicaram do papel social que podiam desempenhar, limitando-se a repetir e a propagar ideias feitas sobre os méritos dos mecanismos de mercado e os deméritos da intervenção estatal, numa clássica situação de bebé fora com a água do banho. O mercado de emissões de CO2 pode ser conceptualmente fascinante, mas uma multa à séria talvez funcione mais simples e eficientemente, se o Estado se der ao respeito. Imagine-se o mesmo conceito aplicado por exemplo à vacinação obrigatória. Quem não quisesse vacinar os filhos comprava um crédito na bolsa de direitos da febre tifóide ou da rubéola. Ainda andava tudo a ter cinco filhos para ficar com dois.


Por vezes, há que “go back to basics”, que é o que eu recomendo aos economistas dos nossos dias. John Stuart Mill, reagindo às visões pessimistas de Malthus e Ricardo, fez notar aos (poucos) economistas do século XIX que o homem pode ser factor de mudança:

“A distribuição de riqueza, portanto, depende de leis e costumes da sociedade. As regras pelas quais se determina são as que são feitas pelas opiniões e sentimentos da parte da comunidade que manda, e são diferentes em diferentes tempos e países, e podem ainda ser mais diferentes, se a humanidade assim escolher.”

Só auxiliando nessa escolha terão os economistas um papel socialmente meritório. Se se limitarem a gerir a desgraça, então podem ficar em casa. Se, pelo contrário, quiserem andar na rua, não se devem esquecer que Adam Smith, o primeiro dos grandes economistas, foi um professor de moral, para quem a razão de ser da riqueza e da glória era meramente o bem-estar do homem comum.

7 comentários:

Cristina Rodo disse...

Olha, ainda não tive tempo de ler tudo, cá voltarei. Era só para que saibas que cá estive. Para dizer que, mais uma vez, percebi tudo, pelo menos o texto, que o assunto não me interessa muito... LOL
Agora não percebo porque cascas tanto no nosso amigo W... coitadinho, não é ele que te arrasta para garde-contres desastrosas.

PW$$$ disse...

Não vou comentar a fundo o texto do nosso Eng.º, logo, quem cala consente.

Aliás, concordo com um ponto em particular: há economistas a mais. Quem me dera que houvessem menos. Talvez assim eu ganhasse alguma coisa de jeito (eis uma lição de Economia elementar).

Cristina Rodo disse...

Vou dar uma de Ferreira: "houvessem"?
LOLOLOLOLOLOLOLOLOL

CMata disse...

Não querendo melindrar tão fiel cliente do meu blogue, "houvessem" existe e aplica-se aqui (podes substituir por existissem).

O Wilton, apesar de economista, desta safou-se.

Cristina Rodo disse...

Hum... provas, provas... não me sinto totalmente convencida...

PW$$$ disse...

F rouxa
Y ronia da vossa parte, ademais
Y nconsequente e à qual sou
Y ndiferente

Pedro disse...

Se há economistas a mais, em parte, é porque os engenheiros lhes abafam os empregos, e eu conheço uma mão cheia deles (como a minha cara-metade). Assim todos perdem, nem economistas a sério, nem engenheiros produtivos.
Cada macaco no seu galho, dizia meu pai.