Este post é só para amantes de new wave, interessados em sê-lo ou meros curiosos…
Feliz efeméride: passam agora trinta anos sobre a vinda a público de uma das maiores realizações da mente humana, a par do teorema de Pitágoras, da Primavera de Boticelli ou da nona de Beethoven: o álbum “Rattus Norvegicus”, dos “The Stranglers”. Ok, tá bem…Concedo que esteja a exagerar um bocadinho, mas só um bocadinho.
Voltemos a 1976, ao meu despertar para a música e para outras coisas. Era um tempo de fim de ciclo para as grandes bandas de rock sinfónico que dominaram a primeira metade dos anos setenta e que eu ouvira nos pratos dos irmãos mais velhos do pessoal: Genesis e Pink Floyd no seu máximo esplendor criativo, Yes, Emerson, Lake & Palmer, Triumvirat, King Crimson. No balanço, ficaram registadas em vinil algumas das maiores realizações da mente humana, de que “Selling England by the Pound” é apenas um exemplo. Entretanto, nos bas-fonds londrinos, surge o punk como contraponto dialéctico e vai de moda, com cabelos pintados de azul, piercings de alfinete-de-ama, calças a sufocar a tomateira e blusões de cabedal acorrentados. Os concertos passam do Estádio de Wembley para clubes manhosos (não obrigatoriamente uma referência ao SLB) e a atitude muda de uma beatitude alucinada e bem-querente para uma certa agressividade, que vai desde a dança pogo, em carga de ombro sobre o adversário, até francas bastonadas com tacos de beisebol nas gengivas como método de arbitragem em caso de diferendo.
Em 1977, a javardeira ganhou tal popularidade que as editoras perceberam que estava na altura de passar tal coisa das demos para o mainstream. Nesse ano, saem os primeiros dos Sex Pistols, dos Television, dos Damned, dos Clash, dos Talking Heads, dos Eddie & the Hot Rods, dos Suicide, dos Buzzcocks e de Richard Hell & The Voidoids. Ainda em 1976 fora publicado o primeiro dos Ramones. Esta “Class of 77” toca músicas curtas, com muita guitarra, muito pedal, vozes pouco afinadas e letras curtas e grossas. Por isso vão morrer cedo. As excepções são os Talking Heads que entram na onda com um disco que já é new wave – logo dois a três anos à frente do seu tempo como é normal em génios que virão a gravar “Fear of Music” e “Remain in Light” (estes também, duas das maiores realizações da mente humana) – e os Clash, que vão evoluir em três prestações até “London Calling” (por coincidência, outra das maiores realizações da mente humana).
Nesse mesmo setenta e sete, aproveitando a boleia do frenesim editor, um bioquímico, um “karateka”, um vendedor de gelados e um organista, numa improvável combinação, juntam-se para gravar Rattus Norvegicus. Tomando a nuvem por Juno, o público classifica inicialmente o grupo como punk. Puro engano.
Feliz efeméride: passam agora trinta anos sobre a vinda a público de uma das maiores realizações da mente humana, a par do teorema de Pitágoras, da Primavera de Boticelli ou da nona de Beethoven: o álbum “Rattus Norvegicus”, dos “The Stranglers”. Ok, tá bem…Concedo que esteja a exagerar um bocadinho, mas só um bocadinho.
Voltemos a 1976, ao meu despertar para a música e para outras coisas. Era um tempo de fim de ciclo para as grandes bandas de rock sinfónico que dominaram a primeira metade dos anos setenta e que eu ouvira nos pratos dos irmãos mais velhos do pessoal: Genesis e Pink Floyd no seu máximo esplendor criativo, Yes, Emerson, Lake & Palmer, Triumvirat, King Crimson. No balanço, ficaram registadas em vinil algumas das maiores realizações da mente humana, de que “Selling England by the Pound” é apenas um exemplo. Entretanto, nos bas-fonds londrinos, surge o punk como contraponto dialéctico e vai de moda, com cabelos pintados de azul, piercings de alfinete-de-ama, calças a sufocar a tomateira e blusões de cabedal acorrentados. Os concertos passam do Estádio de Wembley para clubes manhosos (não obrigatoriamente uma referência ao SLB) e a atitude muda de uma beatitude alucinada e bem-querente para uma certa agressividade, que vai desde a dança pogo, em carga de ombro sobre o adversário, até francas bastonadas com tacos de beisebol nas gengivas como método de arbitragem em caso de diferendo.
Em 1977, a javardeira ganhou tal popularidade que as editoras perceberam que estava na altura de passar tal coisa das demos para o mainstream. Nesse ano, saem os primeiros dos Sex Pistols, dos Television, dos Damned, dos Clash, dos Talking Heads, dos Eddie & the Hot Rods, dos Suicide, dos Buzzcocks e de Richard Hell & The Voidoids. Ainda em 1976 fora publicado o primeiro dos Ramones. Esta “Class of 77” toca músicas curtas, com muita guitarra, muito pedal, vozes pouco afinadas e letras curtas e grossas. Por isso vão morrer cedo. As excepções são os Talking Heads que entram na onda com um disco que já é new wave – logo dois a três anos à frente do seu tempo como é normal em génios que virão a gravar “Fear of Music” e “Remain in Light” (estes também, duas das maiores realizações da mente humana) – e os Clash, que vão evoluir em três prestações até “London Calling” (por coincidência, outra das maiores realizações da mente humana).
Nesse mesmo setenta e sete, aproveitando a boleia do frenesim editor, um bioquímico, um “karateka”, um vendedor de gelados e um organista, numa improvável combinação, juntam-se para gravar Rattus Norvegicus. Tomando a nuvem por Juno, o público classifica inicialmente o grupo como punk. Puro engano.
Começa logo na capa. No tempo dos LPs, a capa tinha espaço para quatrocentos centímetros quadrados de mensagem, quatro vezes mais que num CD. As capas dos álbuns punk desperdiçaram esse espaço, mostrando a banda ao natural, com o ar bacoco e os cabelos espigados. Na capa de Rattus Norvegicus, não há naturalidade. Há pose, para que algo nos seja dito. As pessoas, os objectos, as cores, as sombras, tudo nos avisa que algo de errado se vai passar. Em primeiro plano a ombreira de uma porta, com Dave Greenfield e Jean-Jacques Burnel pálidos sob uma luz baça, como demoníacos guardiães à entrada de um mundo diferente, ladeados por preocupantes troféus de caça cristalizados na sua maior ferocidade, de presas em riste. Por trás, numa segunda câmara, inundada de um halo vermelho, o diabrete Jet Black, tendo por trás uma boneca de loiça despida. Ou vemos mesmo uma criança? Ao lado, um relógio de pêndulo, marcador do tempo, que acarreta a morte. Tudo reforça uma semiótica do inquietante. Depois, numa terceira sala, numa penumbra esverdeada, mefistofélico, Hugh Cornwell. Ao fundo, noutra porta, contra a luz, uma silhueta desconhecida. Quem será? O Mestre das Trevas? Ou um mero diabo para nos guiar na descida aos infernos que se vai iniciar?
A entrada é com “Sometimes”. O ritmo é avassalador, mas com aquele órgão e aquele baixo, não é punk. E a pretensa violência dos punks é de meninos quando comparada com a que é transmitida pelos “Stranglers”: "Sometimes I get to feel so mean / Sometimes I get to feel so mean / Sometimes you look like you're too clean / Sometimes I see the in-between / Sometimes only one way / I've got to fight". Estamos no interior da percepção de uma mente violenta: o sentimento de maldade é activado por uma diferença estereotipada (“too clean”) e justifica-se por uma percepção (“I see”) e um sentido (“only way…too fight”). Poderia ser argumentário para uma luta revolucionária. Os Stranglers navegam sempre em águas turvas, sem deixar perceber se concordam ou se dizem mal. Provavelmente apenas expõem, deixando à crueza da verdade as despesas da crítica. Numa quadra seguinte, o narrador vai agredir uma moça num local isolado: "You're way past your station / It's useless asking you to stop / I got morbid fascination / Beat you honey till you drop”. Violento? Muito. Apologético? Não, tal como o Guernica não faz a apologia da violência fascista. Põe-a em xeque trazendo-a à evidência sobre outro ângulo.
Em “London Lady” e “Princess of the Streets”, os estranguladores revelam o seu lado machista e misógino, do qual ganharam fama quando exibiram strippers em palco durante os concertos. “London Lady” é uma versão ácida e demolidora da rapariguinha do “shopping”. Descreve-nos uma fulana fútil e idiota: “you're so stupid / foetid brainwaves”. Viram? Ondas cerebrais fétidas. São pouco meiguinhos, são. Tais seres femininos não têm opiniões que interessem e apenas se justificam como objectos sexuais: “please don't talk much / it burns my ears / tonight you've talked for a thousand years”. No entanto, elas às vezes fazem mossa. “Princess of the Streets” é uma canção de despeito – “she's gone and left me / I don't know why” – sobre a mulher dominadora (“with words of fire / she'll make you small / with eyes that smile / she'll make you tall”) que comete a malvada traição de não se nos submeter, preferindo liderar a matilha: “she's no lady / she'll stab you in the back / she's no lady / she's princess of the pack”.
Muito politicamente incorrecto, mas descrito com larga arte. E, convém relembrar, estamos a visitar o inferno.
O pico escatológico do álbum é atingido em “Ugly”, em que verdades dolorosas sobre a importância da imagem pessoal no sucesso social e a sua viciosa relação com o dinheiro são berradas, não cantadas, num rock minimalista e obsessivo. Três exemplos: “besides she had acne / and if you've got acne well I apologise for disliking it intensely / but it's understandable that ugly people have got complexes / I mean it seems to me that ugly people don't have a chance” ou “it's only the children or the fucking wealthy who tend to be good looking” ou ainda “an ugly fart / attracts a good looking / chick, if he's got money”.
Têm toda a razão: qualquer peido com cacau atrai mulherame. Embora dizer tal coisa continue a ser politicamente incorrecto.
O disco segue com algumas músicas só ligeiramente menos pesadas como “Hanging Around” ou “Get a (Grip) on Yourself”, que foram êxitos de venda e de rádio.
Para final apoteótico, os “Stranglers” reservaram-nos “Down in the Sewer”. Uma história sobre um homem com raízes campestres que caiu no esgoto e lá fica a apanhar latas vazias de Coca-Cola. O esgoto pulula de ratazanas agressivas: “there's lots of rats down here / you can see the whites of their eyes / they got sharp teeth / deep breath / and lots of diseases”. Pouco simpático... O esgoto funciona como óbvia parábola desta sociedade que destrói o bom selvagem que há em nós, da “rat race”, da agressividade que endereçamos aos nossos semelhantes e que nos condiciona ao ponto de a instruirmos aos nossos filhos:
“Tell you what I'm gonna do.
Gonna make love to a water rat or two
and breed a family.
They'll be called the survivors.
You know why?
No?
They're gonna survive.”
A faixa é longa de oito minutos e termina com um inesquecível solo de órgão – o “Rats Rally” – por um Dave Greenfield desbragado. E quando pensamos que tudo terminou num som de água a sumir-se pelo ralo, eis que se ouve o Hugh Cornwell a negar-nos, com uma longínqua voz do além, qualquer pensamento de redenção: “I’ll see you in the sewer”.
Rattus Norvegicus foi possivelmente o melhor disco de estreia de sempre, e lançou os Stranglers numa carreira que ainda nos deu, entre outros momentos felizes, mais uma das maiores realizações de sempre da mente humana, o “Black and White” de 1978.
Rattus Norvegicus é uma reportagem fotográfica sobre o lado negro do nosso mundo e da nossa mente. Uma visão dantesca do nosso colectivo moderno. Não propõe curas, exibe meramente os sintomas, de um modo brutal que deveria pelo menos fazer-nos pensar. E isto num formato inovador, esteticamente soberbo e coerente, e com uma valente pedalada. Tudo bom!
2 comentários:
O Biriba esteve aqui...
(e já tinha também "estado" no anterior, só que não tinha dito nada... ; )
Caro Carlos,
Nos anos 70, este gajo talvez aspire a ter escrito uma das maiores realizações da mente humana mas os Stranglers, aparte terem escrito, na minha modesta opinião, uma das melhores faixas de sempre para marmelada adolescente - La Folie do álbum homónimo de 1981 - não estão no mesmo campeonato...
Aliás nem sequer estão no mesmo desporto!
Enviar um comentário