“Every man has two nations, and one of them is France”
Benjamin Franklin
No próximo domingo, a França eterna corre o risco de mudar para sempre. Na hipótese de Ségolène Royal vencer as eleições para a presidência, teremos pela primeira vez uma mulher a comandar no hexágono a partir de uma cadeira (a do Eliseu) em vez de uma cama (a do homem que era suposto mandar). A hierarquia do mobiliário não voltará a ser a mesma.
Em França, o poder político formal foi historicamente assunto de homens. Não houve primeiras figuras femininas, das que mandassem mesmo, como Isabel I ou Vitória em Inglaterra, Isabel a Católica em Espanha ou Catarina a Grande na Rússia. A única mulher que aparece nos compêndios primários de História de França mescla loucura, mistério e inocência num cadinho de lenda e realidade, com alguma androginia à mistura. Ainda assim, Joana d’Arc não foi poder, mas uma forma de contra-poder, e por isso levou com o Cauchon em cima, acabando na fogueira – para sossego dos ingleses, que sempre foram exímios em pôr terceiros a fazer o trabalho sujo que lhes pertencia.
Mas se na História de França escasseiam as mulheres mandantes, abundam por outro lado as mulheres amantes, que entre a primeira e a segunda influenciaram quedas de políticas, promulgações de decretos, declarações de guerra e outros temas afectos ao destino da nação. Costumava dizer-se, nos anos sessenta, que o “De Gaulle manda em França e a Yvonne manda no De Gaulle”. Mas esta tendência tem raízes profundas, entre reinantes legítimas e meras favoritas, desde a Clotilde do rei franco Clóvis, passando por Catarina de Médicis, a Marquesa de Pompadour, a Maria Antonieta, a Maria Walewska e outras, como a amante do presidente Fauré, que em 1899 o matou do coração em pleno Eliseu, a golpes de anca, em situação muito embaraçosa para a moralidade republicana. “Cherchez la femme”, como eles lá dizem.
A especial relação da França com a mulher e com a sexualidade é apenas uma das muitas idiossincrasias daquele país e daquele povo, algumas mais sincréticas, outras perfeitamente idiotas, quase todas marcantes. E que tornam a França num país único, à superfície do planeta como no nosso espaço mental colectivo.
Tornou-se moda de nossos dias cascar na França, nos meios “soi-disant” bem-pensantes. Nos jornais, na televisão, tudo lança postas sobre a decadência francesa, sobre a crise francesa, sobre o esgotamento político francês. Tenho nos últimos anos viajado a França com alguma frequência, e pelo que lia cá esperava a cada saída encontrar um país a ferro e fogo, com filas para o racionamento ou então com um quarto da população abaixo do limiar da pobreza e com matanças a metralhadora nas escolas ou, pelo menos, com as arribas fósseis pejadas de betão e as jóias da arquitectura urbana histórica de fachada à banda, à espera do colapso e do consequente condomínio residencial. Mas para azar meu vi um país bem ordenado, com cidades e aldeias limpas e organizadas, com uma agricultura de ar próspero (é verdade que à conta do défice do orçamento comunitário), com um património histórico rico e bem mantido, com um povo aparentemente bem-alimentado.
Como é notório, os comentadores portugueses são gente rigorosa, pela cabeça da qual não passaria falar do que não sabe. Se eu não vi as criancinhas francesas subnutridas, de estômago inchado e olhar mortiço, só pode ser por ter estado nos sítios errados. Ou então, e mais certo, passa-se que depois de dois séculos a absorver carneiristícamente a cultura francesa, vinda em caixotes pelo Sud-Express, como dizia o Eça, tocou agora de bater no ceguinho. E não é que não mereçam, porque quando mete franceses só não se aproveitam as que não acertam. Mas como me irrita gente que papagueia sobre os mais fracos para se sentir mais forte, este “post” será dedicado à defesa da França. De uma certa França, recheada de boas coisas que muito inconscientemente apreciamos.
Podemos começar pela cultura. A França sempre foi e segue sendo pátria de passagem, acolhimento e geração da boa obra cultural. Embora reconheça que o francês por vezes abusa e resvala para a peneira, naquele país o saber e a inteligência prestigiam socialmente o indivíduo, atitude que as democracias bem necessitam. Ao longo do tempo, a lista dos nomes mesmo grandes cresceu e impressiona, de Du Bellay a Tati, passando por Molière, Montesquieu, Flaubert, Renoir, Seurat, Camus, e tal. Tão poderosa equipa compara sem medo ou vergonha com a grande selecção de 1998: Zidane, Henry, Vieira, Thuram, tudo artista e filósofo da bola. A França sempre soube absorver e atrair o melhor da cultura dos outros, da arquitectura italiana no tempo de Francisco I ao bailado russo do início do século XX ao “jazz” americano do pós-guerra, baralhando, partindo e dando sob novos formatos. Por alguma razão o Gene Kelly foi um americano em Paris e o Lobisomem foi o americano em Londres.
Mas mais importante, em França a cultura é assunto de massas. Apanhando o metro em Solferino, veremos na carruagem mais gente a ler do que num curso universitário de letras noutros países. A edição é óptima, vasta e barata, e a FNAC da Rue de Ternes em Paris bate-se com a Foyles de Londres pelo título de campeã do mundo das livrarias. As pequenas lojas são mais notáveis ainda: não se vendem livros como se vendem batatas e o livreiro francês trabalha como um jardineiro, seleccionando os títulos, renovando os escaparates, fazendo milagres de cor num talhão minúsculo. Quem quiser perceber, que vá ver o espectáculo de oferta que são os trinta metros quadrados da loja de livros do Instituto Franco-Português.
Se compararmos a televisão francesa com a generalidade das suas congéneres europeias constataremos que há mais e mais animados debates, mais programas culturais e um certo pudor em descer ao nível coprofágico do Big Brother ou do Ratinho. Também os programas escolares tem uma preocupação humanística muito marcada e uma mania, que os pedagogos da 5 de Outubro poderão ver como funesta, de achar que aos catorze e aos dezasseis o pessoal pode perceber coisas complicadas e pensar com a sua própria cabeça. Com tudo isto, o francês da rua consegue olhar para um mapa-múndi e apontar para o seu país sem se enganar, tarefa que se revela mais complicada com os indígenas de Atlanta ou Cincinnati.
Outra coisa que em França se espera que seja boa é a boa vida, o que já não é coisa pequena nos dias que correm de fanatismos sanitários e moralistas. Já falámos da sexualidade, ou melhor, como eles lá dizem, do amor. Porque no imaginário colectivo francês o amor tem uma vertente sexual que não se envergonha, graças a Deus. Por isso, o amor ideal, a mão na mão, o guardar-se para a pessoa especial e outras vogas que por aí andam, tudo bem, mas ao fim ao cabo nada como curtir um valente tal e coiso, exactamente pela mesma razão que a chuva cai para baixo e os rios correm para o mar: porque é natural que assim seja. Daqui vem a diferença entre a Emma Bovary, que vai ao castigo, mesmo que com problemas de consciência, e a Emma Woodhouse que com a consciência dos problemas espera pelo homem certo para casar e só aí é que.
Mas nem só de boa cama vive o homem, há também a boa mesa. Apesar de por vezes gozar com amigos franceses sobre a exiguidade da “nouvelle cuisine”, verdade seja dita que nunca passei fome em França, mas já sofri agruras em Oslo ou Amesterdão. Em solo gaulês, a comida tem que ser boa e bonita. Se saudável ou não, não interessa, e se tal perturbar o bom palato até interessa que não seja. Recordarei para sempre, com muita saudade e muito “pankreoflat”, um jantar num duas estrelas Michelin, um casarão de vidraças batidas pela ventania, em sítio improvável à beira de uma estrada perdida da costa norte da Bretanha. Aí sobrevivi feliz, mais outros quinze, a uma sucessão orgíaca de oito pratos fora os “amuse-gueules”, regados por espumantes e vinhos variados, de tinto a branco a novo tinto e a “rosé”. Deixei naquela mesa um salário mínimo e dois anos da minha esperança de vida, mas saí com um brilho nos olhos, de contente e grosso. A este propósito, a relação da França com o álcool também não desmerece. Entre vinhos, digestivos e espirituosos, só a escolha embaraça, embora eu talvez me rendesse a um bom conhaque XO. Como ícone do gosto francês pela boa pinga, nada como o Inspector Maigret, que em cada página de para cima de uma centena de livros abate uma imperial ou um meio copo de aguardente para ajudar à investigação, sem que o fígado se ressinta ou o criminoso se escape.
E para acompanhar um grande vinho, venha uma tábua de queijos franceses. Aqui está um produto que a Comissão Europeia e a sua sanha censória gostaria de regulamentar: coado em panos velhos e manufacturado por dedos sebentos e micro-organismos duvidosos, com quarenta por cento de matéria gorda. Acho percebível que um eurocrata inglês, que na sua ignorância julga que o Stilton é um queijo e não um resíduo petroquímico, queira sanear o fabrico do “camembert”. Menos natural será que se lhe faça caso, em vez de o insultar e à sua mãezinha e de o internar compulsivamente num curso prático de bom gosto, onde lhe seja dado a provar “reblochon” e “bleu du Vercors” – e já agora mulheres do continente. Pouco dado a eurocracias, Churchill afirmou em 1940 que um país com 360 variedades de queijo não pode morrer, o que constituiria excelente e mais que válido argumento para a invasão da Normandia, não houvesse já o detalhe de ser preciso salvar a Europa do nazismo.
Povo culto e venerador dos prazeres da vida, o francês entende que há coisas que têm que ser defendidas e cultiva por isso, por vezes até a um certo exagero, outra faceta que me é simpática: a de não se deixar pisar pelo poder, saindo à rua, à luta, quando necessário. Quando se torna necessário arrear a giga, aí estão os franceses em manifestação, pelo horário das trinta e cinco horas ou contra legislação racista. Reconheço que muitas vezes passam das marcas, sendo capazes de pôr Paris a ferro e fogo para protestar contra um aumento de cinco por cento do passe social. Mas pelo menos não são como o resto de uma Europa aburguesada e entorpecida, que aceita com um olhar cabresto as consequências do fino pensamento liberalóide, por aí reinante, sem ao menos dar a entender que não anda muito satisfeita. De uma Europa que se esquece que também se formou em 1649, em 1789, em 1848 e em 1968.
A História da Europa demonstra que merda da grossa para aí de cem em cem anos contribuiu com vantagem para o progresso da sociedade. Por um lado, porque um processo revolucionário funciona como uma válvula de escape social e ideológica que fomenta novos equilíbrios, por outro porque aumenta a percepção de risco dos governantes, incentivando-os a ser reformistas em tempo útil. A revolução teve na política o efeito que o terramoto tem na tectónica. Hoje em dia a via revolucionária anda demonizada pelos tabus da guerra-fria e pelo olhar único do politicamente correcto. As revoluções são processos desordenados, recheados de injustiças pontuais, onde muita malta se aproveita, onde muitos vão na onda sem a mínima ideia do que estão a fazer, mas foram as respostas da dinâmica social a situações limite, por vezes com vantagem, por vezes não. Foi depois de revoluções que os ingleses deixaram de aceitar o poder divino dos seus monarcas, que alguns franceses deixaram de estar isentos de impostos só por serem de boas famílias, que os americanos ou os italianos tiveram o direito de mandar na sua própria vidinha.
A visão romântica dos franceses pela perspectiva contestatária e revolucionária foi em tempos património da humanidade. A Marselhesa era o hino de todos os que lutavam contra a opressão, como se vê na inesquecível cena no Rick’s Café, em que a música catapulta todos os personagens para a afronta à grosseria e brutalidade nazis. Estão a imaginar o God Save the King a fazer o mesmo efeito? Hoje em dia prevalece uma ideia da Revolução Francesa deturpada e despojada daquilo que foi o seu significado histórico. Até jacobino, de repente, entrou no vocabulário dos editoriais para significar qualquer coisa como “reaccionário de esquerda”. Já agora, recupere-se também girondino, termidoriano, montanhês, cordoeiro, para a estupidez ser mais completa. E embora não haja desculpa, relembre-se, para dar às coisas alguma perspectiva de longo prazo, que durante o ano e meio que durou o Terror, teoricamente um dos mais inqualificáveis pesadelos da história da humanidade, houve em Paris 2650 sentenças de morte executadas. Isto compara com as 25.000 mortes civis no ataque à Comuna de Paris pelo governo de Versalhes, a 60.000 mortos num único dia da batalha do Somme, sendo ainda igual a um a dois por cento das vítimas civis na actual guerra do Iraque.
A França está pois de saúde, e recomenda-se. Quando a França se opôs ao brilho intelectual de George W. Bush na sua cavalgada heróica contra a hidra babilónica, caiu o Carmo e a Trindade, e foi um vê-se-te-avias: apodaram-na de velha, de majestática, de jacobina (lá está!), etc. Tss, tss! Viu-se quem tinha razão. A França há-de morrer muitas vezes nas palavras dos seus detractores e ressurgir sempre, porque faz parte de todos os nós. E eu, a quem muitas manias dos franceses dão galo, descubro-me francófilo quando a vejo levar injustamente.
Vem-me aqui à memória a canção do Brassens: “Y a des copains au bois d'mon cœur / Chaqu' fois qu'je meurs / Fidèlement / Ils suivent mon enterrement”. Por mim, cada vez que matarem a França, seguirei o enterro com um sorriso, sabendo perfeitamente que não há de ser o último.
2 comentários:
Dasssssss...
Allons enfants de la patrie...
Da proxima vez que aparecer fáxavor de vir de bleu/blanc/rouge.
Oquê que o LFCL te passou que eu não apanhei esse vírus?
LOLOLOLOLOL
Dito isto... gostei de ler!
Caro Carlos,
melhor branqueamento da França e dos Franceses nem com lixívia se conseguiria.
Nada mau para um filho da porteira, ou um "Spéce de Linda de Suza"...
Experimenta meu caro, ir ao café da Gare D'Austerlitz, pedires um café no bar da estação em francês meio arranhado ou com sotaque, e seres o último a ser atendido, depois de 10 franceses que chegaram depois de ti. Porque tens sotaque, e és obviamente tuga ou espanhol, e portante estás ligeiramente acima de preto, magrebino, ligeiramente abaixo de bretão e muito abaixo de parisiense.
Não comento as questões culturais porque sendo culturalmente anglo-cêntrico não quero cair na falta de objectividade.
Enviar um comentário