Nas minhas férias de verão de há trinta anos atrás, a noite acabava no baile das Festas de Nossa Senhora do Carmo, padroeira da terra, que animava a noite algarvia até altas horas, numa misturada heteróclita de pessoal da cidade a abanar o capacete, moças da terra a dançar umas com as outras, velhas sentadas em cadeiras trazidas de casa e cães coxos ao cheiro dos caixotes, tudo regado por Sagres e gasosas que boiavam em largos alguidares conjuntamente com barrões de gelo.
Isto passava-se no largo pátio das traseiras da primária, escola de traça salazarista, no meio das casas açoteiadas do bairro dos pescadores. O pátio servia em simultâneo de plateia e de pista de dança e ao fundo montara-se um palco, onde ora tocavam bandas da localidade ou da vizinhança, algumas bastante boas em imitações de Stones e Doors, ora artistas convidados, por regra péssimos, com farfisas mal afinados e cançonetas que arrancavam palmas às velhotas e até velhotas às cadeiras. Por vezes, em anos mais abonados, chegaram-se a exibir vedetas com estatuto nacional: tenho uma memória semi-etilizada de lá ver as Doce a cantar o “põe-me KO”, vestidas de biquini em pele de leopardo, com os gorilas em dificuldades para suster os magotes de bacanos emborrachados e dispostos a subir ao palco para lhes atender o pedido.
Certo ano, algum membro mais empreendedor da comissão organizadora dos festejos teve uma tão brilhante quanto rentável ideia: um concurso de beleza por eleição popular, mas com os votos pagos e a reverter para a junta de freguesia. Dito e feito. Durante os dias de bailarico, a palavra foi devolvida ao povo – desde que este se chegasse à frente, claro. À entrada da festa havia uma mesa de voto onde a urna esperava os papelinhos com os nomes, cada um a dez tostões. Por cima, o quadro negro da escola tinha sido dependurado para ir exibindo os resultados: os do baile anterior e os totais. Noite após noite, os números iam crescendo: Maria Augusta 897, Custódia 678, Zézinha 523. Um sucesso, apesar dos protestos de um bem-pensante local, gorducho e de saco de peixe na mão, que se indignava sonoramente contra a capitalista ideia e até contra o quadro, chamando-lhe “a tabela da carne”.
Rapazotes como eu ainda lá largaram um escudo para ver aparecer no quadro o nome de alguma querida. Mas ter esse gosto não resultava fácil porque rapidamente um grupo de “concorrentes” encetara uma fuga, com votações a atingir números ridículos de grande, açambarcando a superfície da ardósia. Eram filhas de pescadores da terra, que largavam às notas de mil pelo orgulho de levar a sua cachopa ao palco. Se um chegava e via a cria em segunda, toca de pagar para a pôr em primeira. Ao último dia de festa, as do pódio somavam centenas de milhar de pontos ou seja, centenas de contos. Isto, numa altura em que uma pensão de reforma andaria nos dez mil escudos, por aí.
Chegou o momento da celebração e a vencedora subiu ao palco, empurrada pelos pais impantes, corados e felizes pelo retorno do seu ignóbil investimento. Ela teria uns dezasseis anos e era feia, ataviada num vestido domingueiro e fora de moda. Enxovalhada pelos apupos da turba e pelo orgulho pusilânime dos parentes, recebeu o prémio de olhos baixos e escapou-se assim que pôde. Aposto que chorou nessa noite.
Isto acontece quando os concursos são estúpidos e os votos são comprados. A RTP lançou agora um no mesmo género para eleger o maior português de sempre, só não dizendo se ao metro, se ao quilo. Provavelmente com a intenção de tornar a História fácil, como se a História, tal como o amor, não fosse algo que se tivesse que merecer.
Ainda assim, a lista dos dez finalistas não envergonha. Não terá o maior, que é conceito vazio, mas contém grandes: Afonso Henriques, D. João II, Vasco da Gama, D. Henrique, Camões ou Fernando Pessoa e a nota simpática de Aristides de Sousa Mendes.
Alguns outros portugueses que pela sua grandeza não destoariam:
- D. Afonso III, um político hábil e um refinado sacana, que entalou o irmão, entalou a mulher, e entalou os espanhóis no mais ousado acordo diplomático da nossa História, assim se acabando de conquistar o território.
- D. Nuno Álvares Pereira, a maior vitória do nosso imaginário.
- Fernão Lopes, jornalista antes de haver jornais.
- Afonso de Albuquerque, o Leão da Ásia, fez com mil homens o que Bush não faz com cento e cinquenta mil. Sintetizou a noção de dever na célebre “de mal com el-Rei por amor dos homens e de mal com os homens por amor d’el-Rei”.
- Eça de Queirós, simplesmente um dos melhores do mundo e dos tempos na sua categoria. Aliás, disse-o Jorge Luís Borges.
- Visconde de Alvalade, por razões óbvias.
- José Cardoso Pires: à rasquinha, mas merece…
- Eusébio da Silva Ferreira: enquanto o Figo, quando perdeu, atirou a camisola ao chão, ele, quando perdeu, limpou as lágrimas às quinas. Também se é grande na derrota.
- Mário Soares: ele e os seus dois inimigos (Cunhal e Salazar) eram os únicos que tinham uma ideia para Portugal. A dele foi a que venceu. E ele fez por isso.
1 comentário:
Um Grande Benfiquista na tua lista ... gostei! E as grands Mulheres ... onde estão?
fc
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