terça-feira, janeiro 30, 2007

Do aborto (II): o caixilho ideológico do não

Uma das causas que impossibilita, em Portugal, uma discussão racional sobre a questão do aborto – como sobre um número de outras – reside nas matrizes ideológicas do grosso dos activistas de ambas as partes. Arreados nessas andas intelectuais, os discursos vão-se partidarizando e a clivagem esquerda-direita vai emergindo num assunto que não tem por que ser de esquerda ou de direita, que são aliás conceitos difusos e eventualmente sem realidade própria.

Esquerda e direita políticas querem dizer tudo e nada e às vezes o seu contrário, em diferentes momentos do tempo ou locais do espaço. Desde as discussões na Convenção de 1793, entre a Montanha e a Gironda, sobre o destino a dar à cabecinha da Maria Antonieta, ao moderno cinzentismo parlamentar europeu, em que “esquerda” e “direita” se alternam a propor e a não fazer exactamente o mesmo, passando pelo doloroso parto das lutas operárias no Ocidente ou pela guerra fratricida da batalha de Guadalajara, Esquerda e Direita defrontaram-se em muitas coisas, por vezes irrelevantes, outras vezes centrais ou mesmo vitais.

Se quiséssemos encapsular os conceitos de Esquerda e Direita recorrendo a um mínimo de parâmetros, poderíamos utilizar, tentativamente, apenas dois: o grau de interferência do colectivo na esfera individual e o nível de intervenção do Estado na economia. E mesmo só com estes dois eixos, colocando de forma grosseira certos grupos ideológicos característicos, pode-se ver que existem muitas esquerdas e muitas direitas, e que nem sempre coexistem do modo que dita a sabedoria convencional.

Traçando linhas contínuas sobre esse plano, podemos concluir coisas curiosas, como a proximidade relativa do ecologismo a ditaduras do passado, ou que os partidos socialistas/sociais-democratas europeus podem ocupar um centro, tendo de cada lado uma das direitas tradicionais, do Norte e do Sul da Europa, ou ainda o relativo isolamento das doutrinas George W. num dos cantos da figura.

Dito isto, interessa-me focar-me de momento no que são a Direita e a Esquerda portuguesas, especialmente aquelas que mais se assanham na discussão deste abortivo tema e, neste post em particular, no lado direito da barricada.

Em Portugal, a Direita pouco partilha com, por exemplo, a tradição conservadora inglesa. Esta última bebe, como toda a política britânica, de um ribeiro que vai fundo na História: a Lei impera, o colectivo é fonte de poder e é exercido por consentimento dos destinatários. Por isso, esse mesmo poder é limitado pelo dever de governar para o bem comum. Caso tal não aconteça, a revolta é legítima: a Ordem não é um valor só por si. É exactamente a este princípio que Jefferson recorre para justificar a independência dos Estados Unidos.

Mesmo que o poder emane do colectivo, e até para que a revolta possa ser legitimada, o indivíduo tem que ser um conceito central nesta concepção política. O colectivo não pode cercear certos direitos individuais: de vida, de expressão, de propriedade, de associação, sem a existência dos quais o poder se poderia perpetuar para além do que fosse legítimo. A defesa cívica de direitos, reais ou potenciais, individualmente ou em grupo, é respeitada e considerada importante para a sociedade. Nisto, lembra o discurso de Péricles. A inteligência e a produção intelectual são valorizadas, como expressão da individualidade. Mesmo sem o ênfase que se lhe quer dar no continente, a separação entre Estado e Igreja funciona bem: a tolerância religiosa resulta da e na multiplicidade religiosa, e um judeu pôde ser primeiro-ministro da coroa. É uma Direita liberal e por vezes libertária. Para esta Direita, Mill é tão referência como o é para a Esquerda britânica.

Por cá, a Direita forma-se por razões históricas num cadinho ideológico bem diferente. Valores como a Ordem (por oposição à dinâmica social), a Autoridade (entenda-se do chefe) e a Moral (“burguesa”, embora eu não goste do termo, e católica) são centrais na construção daquilo que no nosso país identificamos com Direita. Para que estes conceitos operem com eficácia, não se pode dar ao indivíduo muita margem de manobra.

Como paradigma quase caricatural deste quadro mental, temos o pitoresco salazarismo, que sintetizou num regime parolo e atrasado mental estes e outros componentes que reencontramos hoje na nossa Direita sociológica, se cavarmos um bocadinho, que nem tem que ser muito. Removida aquela capa fininha de referências democráticas e europeias, aparece-nos logo o António Oliveira, vivinho da Silva, a olhar com cara de gozo.

No salazarismo, a autoridade, tanto política como social como moral, emanava do dito “Botas” e escorria por aí abaixo, ao longo da hierarquia, até aos contínuos que vegetavam em corredores mal iluminados, sentados esfingicamente em secretárias da Olaio. A cada nível, a reverência ao chefe era o modo de operação e de sobrevivência, fosse ele o senhor director, o senhor prior, o senhor chefe de repartição de finanças ou o meu tenente. Como todos os dias, a todos os níveis da sociedade, apareciam chatices para resolver, todos os dias essas chatices, se tivessem um mínimo de novidade, eram chutadas para cima, à consideração superior. Podemos imaginar o impacto deste sistema no desenvolvimento do país. Aliás, basta ir à janela e olhar.

Social e economicamente, o salazarismo é um regime de Estado, onde o Estado manda, enquadra, autoriza ou proíbe, e se for preciso até dá uma carga de porrada. As empresas desenvolvem-se, abrigadas de excessiva concorrência, na medida em que o permitam os superiores interesses do condicionamento industrial. A polícia vela a que uma agricultura tradicional, tanto no minifúndio como no latifúndio, subsista sem sobressaltos. Os diferentes interesses das diferentes classes são geridos, por uma mão visível, no âmbito das corporações.

O indivíduo, esse, foi enquadrado, inscrito em organizações, definido de acordo com critérios e, sobretudo, embrulhado no manto espesso de uma moral de paróquia de mato. Para além de enfarpelados na fatiota ridícula da Mocidade, os jovens portugueses tinham que ser classificados pelos seus professores em categorias que incluíam títulos como “normalmente estúpidos”. O indivíduo pretendia-se simples e austero (ainda hoje termos de conotação elogiosa na língua portuguesa), nada ambicioso (um defeito, ainda hoje), nem intelectual (quase um insulto, mesmo nos nossos dias). O próprio Salazar mostrava o modelo, poupadinho, de fato coçado e para mais casto. Just in case, a censura, com um critério por acaso mais ignorante do que eficaz, tentava que o português não lesse coisas que o desviassem do seu lugar, no caso de ele pertencer aos meros dois terços de adultos que não eram analfabetos.

Se o homem do período salazarista se queria discreto e pouco imaginativo, a mulher então nem se fala. Na realidade para ela só havia duas vias: a de esposa, prendada, submissa ao marido (até na letra da lei), mãe de uma ranchada de filhos, se possível fada do lar; ou a então a de perdida, objecto de utilidade sexual que poderia satisfazer as necessidades inconfessáveis, mas desculpáveis, dos mais marialvas. Não se pode negar que esta visão da mulher muito deve a uma atitude redutora da sexualidade infelizmente característica da Igreja Católica. Esta reprovava, e continua a reprovar, a sexualidade pelo prazer, a contracepção, o divórcio, a liberdade do corpo e tudo o que vá para além de uma monogamia reprodutiva, em que o sexo é dever e não liberdade. E o regime fazia igual. Numa interpretação das Escrituras, aliás, que é na minha opinião excessivamente à letra. Afinal, Deus só disse “crescei e multiplicai-vos”, não acrescentou “e só lá podem ir para isso mesmo”.

O quadro mental resultante é tal que se associou castidade a seriedade e até a capacidade. O homem – ou, pior, a mulher! – que gozasse muito liberalmente seria visto como perverso e por isso incapaz de se responsabilizar pelo que fosse. Um conceito lamentavelmente muito em voga hoje em dia no Ocidente e que ia custando a cadeira ao Bill Clinton. Ideia felizmente inexistente no início da nacionalidade, senão teria que ter sido destituído o D. Afonso Henriques, que era rapaz para donear, como se dizia à época, a senhora de castelo por onde passasse e ainda esperar que lhe servissem jantar.

Foi uma volta grande, mas serviu para chegarmos a um ponto em que nos encontramos em condições de entender de que é feito o terreno de onde se agarram as raízes da generalidade dos argumentos do “não”:

- o indivíduo não é estruturalmente capaz de tomar uma decisão em consciência, devendo ser o Estado a impô-la, mesmo quando a ciência não conhece a resposta, a sociedade não chega a acordo e a componente subjectiva da decisão é enorme;
- a própria possibilidade de aborto implica que houve sexo sem ser para procriação, e por isso há que reprimir, como se faz com a educação sexual responsável ou a distribuição de contraceptivos;
- a posição da Igreja Católica é que existe vida desde a concepção e por isso não há volta a dar-lhe;
- e ainda por cima são mulheres! Estou aliás razoavelmente convencido que, se os homens engravidassem, a problemática já estaria resolvida há muito tempo.

Por muitos floreados que façam, por muita patine que lhe metam, estes, mesmo que não sejam os argumentos de fundo, formam o fundo dos argumentos do “não”.

2 comentários:

Cristina Rodo disse...

Eu li. E estou a deixar comentário... Não faço ideia do que dizer porque mais uma vez me perdi... mas li!!!
LOL Bjs

Cristina Rodo disse...

Estou cá outra vez e nada... Nadinha de novo... ca seca meu!
Assim vais perder "audiência", qualquer dia este blog está com um pé para a cova como o meu...
LOL
Bjs