sábado, dezembro 17, 2016

O monte dos pastos



Leio no jornal que o Monte dei Paschi di Siena, o mais antigo banco do mundo em actividade, vai tentar realizar até ao final do ano uma operação de colocação privada de cinco mil milhões de euros, cinco bis como está na moda dizer-se. Pretende o banco encaixar capital que permita absorver as perdas de uma futura venda de 28 bis de crédito mal-parado destinada a sanear o seu balanço. Note-se que 28 bis é o triplo da situação líquida reportada em 2015. Será a última tentativa para tentar evitar a intervenção do Estado italiano. A generalidade dos analistas antecipam que a colocação falhará dada a pouca confiança do mercado na situação política e bancária italiana.


Creio que isto deveria merecer alguma reflexão.

O Monte dei Paschi di Sienna nasceu em 1472 por iniciativa – estatal – da República de Siena. A sua actividade deveria suportar a agricultura e a pastorícia da região.

Era um “monte pio”, um tipo de instituição que surgiu em Itália no século XV como alternativa ao endividamento em bancos comerciais e orientado para os de menos posses. Os “monte de pietá” tinham um propósito caritativo e a sua gestão foi normalmente atribuída à Igreja Católica. Funcionava como um fundo estabelecido benemeritamente – não recuperável pelos fundadores – que emprestava dinheiro contra a entrega de um bem que funcionava como garantia: uma espécie de “prego” sem fins lucrativos. O objectivo dos “montes” foi à partida o bem dos credores e não o ganho da instituição, pelo que a Igreja, que encarava juro e lucro como coisas do demo, patrocinou bastante esta nova ideia. Os Franciscanos foram aliás grandes disseminadores do conceito pela Europa fora.

Em 1624 o grã-ducado da Toscânia absorveu Siena e o grão-duque, um Medici, alterou o formato do Monte para algo mais próximo de um banco convencional, com depositantes, legislando no sentido dos depósitos serem garantidos pelos rendimentos dos pastos públicos de Siena. Pastos traduz em italiano para “paschi”, daqui o nome. Neste novo formato, o banco cresceu durante os séculos XVII e XVIII. Já no século XIX e com a reunificação italiana, expandiu-se a todo o território da bota.
Chegamos assim ao final do século XX como o Monte como terceiro maior banco italiano. Em 1995 o governo italiano transformou o Monte dei Paschi numa sociedade anónima, que em 1999 passou a ser transaccionada em bolsa. O capital está muito atomizado, não existindo accionistas com mais de cinco por cento. 

Nos anos 2000, no meio deste entusiasmo de início de século que nos tramou a todos, o Monte decidiu expandir a sua actividade no investimento e no retalho, com aquisições, duas mil novas agências, tudo o que o Excel aguentasse. Para financiar esta expansão realizou duas operações com derivados financeiros, a “Alessandria” e a “Santorini”, operações que em 2009 já perdiam 750 milhões de euros. Ainda só 750 milhões de euros. Cheia de brio financeiro, a administração do Monte decidiu varrer o problema para as profundezas da contabilidade e refinanciou com o Deutsche Bank e com o Nomura, mais uma vez com derivados. Nem os auditores, nem o Banco de Itália, viram um documento sobre isto até 2013, quando as perdas já andavam nos milhares de milhões e o tema estourou e veio a público, com todas as consequências que levaram à situação descrita no princípio deste texto.

Que nos pode ensinar esta exemplar história? Eis algumas das cogitações que isto me suscita:

1)      O Monte dei Paschi sobreviveu 544 anos, mais de cinco séculos, quase quatro vezes o tempo de vida da moderna Itália, como instituição crescente e sólida. Precisou de apenas 17 como sociedade cotada para estar pronta para ir pelo cano. Isto tem que ter algum significado, nem que seja estatístico.

2)      Será que o actual Monte dei Paschi carece de gestão qualificada? Na Renascença, o Monte tinha uns quantos padres sem habilitações académicas que entre missas e confissões lá iam administrando o banco com o sucesso. Actualmente o banco tem mais de vinte mil empregados, com milhares de doutorados, MBAs, economistas e engenheiros, que rapidamente puseram a instituição à beira da falência. Sei que não é justo: os primeiros tinham apoio divino. Está aliás escrito nas notas de dólar: “in God we trust”. Em Deus, não na Virgem, em quem erradamente se fiaram os modernos gestores.

3)      Poder-se-á dizer: coitados, tiveram azar, levaram com a crise do “sub-prime” de 2008. Pois é! E os seus antecessores, padres e outros que se seguiram? Apanharam só com um estado permanente de guerra entre as cidades italianas da renascença, invasões francesas, espanholas e austríacas, pestes várias, conquistas, reconquistas, guerras napoleónicas, as revoltas de 1848, a reunificação italiana, e, já no século XX, duas guerras mundiais e a crise mundial de 1929, para além de instabilidade política contínua e recessões económicas de toda a ordem: por exemplo, o grão-duque acima referido, que era péssimo gestor como todos os Medicis excepto o velho Cosimo que iniciou a dinastia, deixou a Toscânia num tal estado que o dinheiro desapareceu das zonas rurais, que regressaram a uma economia de troca. Apesar de todas estas vicissitudes, certamente piores que os testes de “stress” do BCE, os antecessores da moderna gestão levaram o banco com saúde até ao final do século XX. Portanto, só o azar não chega para explicar a recente desgraça. Talvez antes haja hoje um problema de atitude diante do risco e de métodos para o gerir.

4)      O que aconteceu ao Monte dei Paschi de Siena não é uma singularidade local, nem sequer italiana. Temos o Lehman falido, o AIG que foi salvo pela caneta do Obama, a intervenção da Coroa nos bancos britânicos, a derrocada das Cajas espanholas, o aperto do Deursche Bank, a corrida aos bancos gregos ou cipriotas, para já não falar da triste situação da banca portuguesa, com apenas duas instituições sem problemas (muito) graves: o BPI e o Santander. O problema mostrou-se geral e sistemático.

5) Os problemas da banca parecem ocorrer independentemente da forma de propriedade ser mais ou menos concentrada. No caso do Monte dei Paschi a propriedade está extremamente fragmentada, com os maiores accionistas sendo institucionais e estatais com quotas reduzidas. Não há um dono daquilo tudo como no caso do BES.


A banca é um sector económico com o qual as populações têm uma relação de grande proximidade. As pessoas guardam o carcanhol nos bancos, não guardam nem nos floristas, nem nos cafés, nem nas lojas de “lingerie”, guardam nos bancos. E portanto se os bancos falharem o potencial de disrupção social e política é consideravelmente maior do que se falharem os talhos ou as livrarias. Por isso, os políticos deveriam ter especial cuidado em garantir que o sistema financeiro funciona bem. Ora claramente algo não está a correr bem quando há poupanças que começam a ser escondidas nos colchões e nas gavetas, poupanças que vão para esses esconderijos de último recurso porque a confiança das pessoas na banca anda pela mais amarga das ruas.

Só consigo explicar a pouca resiliência dos bancos à crise por fragilidades estruturais. As suas causas? Não sou especialista, mas parece-me claro que concorrem aqui muitas: incentivos perversos para quem gere, para quem executa e para quem verifica, falta de regras sectoriais e falha de quem as aplique e controle,  por vezes promiscuidade entre política e negócio, ou entre negócios e o negócio, outras vezes pouco ética quando não crime puro, eventualmente fraco peso das punições (ser despedido com alguns milhões de indemnização pode não ser suficiente para desincentivar a prevaricação).

Seria bom que o poder político tomasse as medidas legislativas ou regulatórias necessárias para reencarrilar a banca como sistema vascular das economias e das sociedades. Que medidas? A minha ignorância impede-me de precisar quais, mas no limite sempre se poderia voltar a entregar a gestão da banca aos padres da Igreja Católica: durante duzentos e tal anos aquilo funcionou sem espinhas.

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