sábado, dezembro 10, 2016

As malheirais figuras



Há nos jornais uns comentadores que têm um espaço equivalente ao que nos estádios de futebol popularmente se chama lugar cativo. Nos estádios, paga-se ao ano, às vezes à década, a cadeirinha tem o nosso nome e entra-se quando se quer para se ver qualquer jogo. Nos jornais, estes comentadores entram com igual regularidade e dissertam sobre o que lhes apetece. Enquanto por norma os comentadores políticos comentam política, os comentadores desportivos bola, os fiscalistas escalpelizam impostos, os advogados enumeram as minúcias da lei, os ambientalistas anunciam bombásticos a vinda do armagedeão e os cientistas se maravilham com as mais recentes partículas subátomicas, os privilegiados a que me refiro debitam sobre o que lhes vem à tola, sempre com igual segurança.

Entre estes multifuncionários da opinião escrita, há-os simpáticos, como o Miguel Esteves Cardoso, que todos os dias com igual candura nos dá uns parágrafos sobre a eleição de  Trump, algum bom livro que leu ou a dificuldade em encontrar recargas para a sua Mont Blanc, há-os sólidos como o Miguel Sousa Tavares, com quem é fácil estar de acordo porque tem boas bases e por isso só ocasionalmente se espalha completamente ao comprido, e finalmente há-os sectários sobre qualquer assunto em que toquem. É um texto publicado após a morte de Fidel Castro por um exemplar destes últimos, chamado José Vítor Malheiros, que nos traz aqui hoje.

Conheci por acaso este senhor no LNEC, no início da minha carreira, quando eu ainda fazia engenharia a sério. Apareceu no meu departamento com a relações públicas do laboratório porque ia escrever sobre ciência num jornal chamado Público que ia ser lançado pelo grupo Sonae e queria conhecer as instituições científicas portuguesas. Para cumprir tal propósito, perscrutou à volta com ar severo, fez duas perguntas sem nunca dirigir o olhar para ninguém, interrompeu as duas respostas a meio para dizer o que achava ser a resposta certa e tendo-nos esmagado com a sua sapiência tirou bilhete para o departamento ao lado. Eu na altura era novinho e ainda tinha uma visão romântica do jornalismo como radicando na procura da verdade, pelo que fiquei perplexo com a sua falta de curiosidade. Na realidade eu acabara de experienciar sem o saber a melhor das máximas sobre jornalistas, que nos diz que a diferença entre Deus e um jornalista é que Deus não se crê jornalista.

Já recentemente percebi que poderia também haver razões psicológicas para o modo como na altura nos olhou do cimo da burra. Encontrei na “net” uma sinopse curricular sua na página do partido Livre, escrita na primeira pessoa, onde diz que frequentou o Instituto Superior Técnico mas saíu porque percebeu que se lá ficasse se tornaria engenheiro. Como quem diz que os engenheiros são uns mangas-de-alpaca mentais por contraste ao intelectual florentino que ele é. Ora na realidade o que salta à evidência é que o calão não conseguiu acabar o curso e dirige-lhe agora o mesmo olhar com que a raposa da fábula mirava de soslaio as uvas lá em cima. Posso-lhe garantir de experiência feita que não lhe teria causado dano obter o canudo, mas reconheço que aquelas transformadas de Laplace implicam algum trabalho.

Como desde o início fui leitor do Público – a talhe de foice um excelente jornal e a prova que a Ordem pode ser rica com frades pobres – acabei por ler com regularidade José Vítor Malheiros. Enquanto escreveu sobre ciência foi um divulgador honesto embora sem grande rasgo. A dado momento ganhou página semanal na zona de artigos de opinião onde passei a lê-lo com mais curiosidade, não tanto pela solidez do conteúdo como pelo agreste da forma. Nos últimos anos, li-lhe vários artigos sobre política, economia, sociedade ou ambiente. O denominador comum desses artigos era a oposição entre os justos e democratas deste mundo (mormente ele) e os fascistas canalhas ignorantes submissos perversos imorais corruptos gatunos que incluíam os governos, as empresas, os economistas, a troika, académicos, os outros comentadores e mais genericamente quem não tivesse a mesma opinião, de que eu era um reles exemplo. Várias vezes não consegui perceber muito bem onde desencantava ele as condições políticas, a vontade popular ou o dinheiro para levar a cabo as suas propostas, mas aí lembrei-me sempre a tempo que ele conseguiu não ser engenheiro e  portanto safou-se àquela relação limitante que tipos como eu têm com a necessidade de realidade das coisas.

No dia 30 de Novembro passado, José Vítor Malheiros saiu-nos com um artigo intitulado “Fidel Castro não é de cartão”, que lido com atenção se revela não como mais um mas antes como o artigo malheirístico por excelência, o ideal platónico de que todos os seus escritos anteriores derivam. Parabéns, portanto, pelo momento de clímax. Acontece também que é um dos textos mais menorizantes dos valores da democracia que eu já li e note-se que sobre isto já li bastante, entre textos sérios e puro disparate. Enquanto escreve sobre Fidel, Malheiros nunca ataca a democracia, a liberdade ou a fundamentalidade dos direitos do Homem, mas acaba por fazer pior: reserva-lhes o papel de detalhes sem relevância. Ora a História ilustra que quem destruiu as democracias não foi tanto quem as criticou, mas antes quem não lhes deu valor. Os primeiros só aproveitaram o que lhes foi legado pelos segundos.


O fulcro do artigo está numa frase, logo após um parágrafo em que Malheiros reconhece – vá lá – que o regime cubano se “orientou” para uma linha ditatorial, que diz o seguinte: “Este discurso é ele próprio contraditório? É. Como se pode falar de esperança, de ideais de liberdade e de combate pela justiça a propósito de uma sociedade onde há liberdades básicas que não são reconhecidas? Pode-se porque as coisas não são simples nem puras e porque não há nenhuma lei da Natureza que dite que tem de haver coerência entre os objectivos que se traçam e os caminhos que se percorrem.” Por outras palavras, os fins podem justificar os meios, o que eu já li escrito pelas penas de todos os grandes totalitários do século XX, às vezes com uma franqueza pelo menos mais saudável do que a de José Vítor Malheiros. 

Claro que não há nenhuma lei da Natureza que dite seja o que fôr sobre a coerência dos objectivos dos homens. As leis da Natureza estão mais preocupadas com a interacção de fotões e nucleões e outros do género, e o que se passe a nível mais agregado não as interessa por aí além. A esse nível agregado o que há são leis dos homens, uns achando que a complexidade e a impureza da vida justificam a prisão de um homem que pensa de forma diferente, como Malheiros e muitos outros, e outros, infelizmente cada vez menos, que acham que as coisas são mais simples do que isso e que não existe nenhuma mas mesmo nenhuma razão que justifique justificar o horror do totalitarismo e que a questão dos valores democráticos é sempre central e nunca periférica ou acessória.

Em contraponto a Malheiros e à sua pequena e dissimulada justificação dos fascismos, comunismos e outros ismos que vão sendo gerados pela “incoerência entre caminhos e objectivos”, ocorrem-me a enorme verticalidade e os “huevos” do tamanho de melancias com que um velho Unamuno desmontou em público na Universidade de Salamanca o discurso totalitário do general Milan Astray e o seu “viva la muerte”. Para Unamuno, certamente as coisas também não eram simples nem puras, mas os limites eram claros e justificavam não só a demarcação intelectual como a coragem física com que diante dos franquistas arruinou a carreira e expôs o pescoço.


Pelo artigo fora, Malheiros volta a malhar na tecla quando estabelece a seguinte dicotomia: “Há quem sustente, às vezes com cinismo outras vezes com desonestidade, que isso significa que esses discursos generosos contêm em si mesmos o germe da catástrofe e devem ser condenados, quando não proibidos, e os seus defensores amordaçados ou fuzilados, e que se deve deixar, apenas, a natureza e sociedade seguir o seu curso sem interferências de maior. Outros consideram que o sonho de uma sociedade melhor e mais justa não deve ser abandonado apenas porque ainda não encontrámos o melhor caminho para lá chegar”. Este parágrafo é todo um exercício de malheiriana desonestidade intelectual empacotado num arrazoado digno das actas dos processos das purgas estalinistas. Aqueles que acham que Cuba não é o “símbolo de um combate generoso” só podem ser ou cínicos ou desonestos e querem amordaçar ou até fuzilar aqueles que fazem discursos generosos (não sei onde é que ele foi buscar esta dos fuzilamentos), enquanto àqueles que generosamente sonham tudo se pode desculpar enquanto não se encontra o melhor caminho para “lá” chegar. Suponho que até uns fuzilamentozitos nas paredes de Cuba, estes bastante reais.
Remata o artigo com a vetusta tese da “grandeza na tragédia desse extravio”, algo que eu já não ouvia há alguns anos, quando alguns justificavam as mortes e atribuíam os males dos regimes comunistas a alguma inabilidade prática de almas no entanto generosas.

Para Malheiros, os fuzilados, os silenciados, a corrupção, o nepotismo que leva o irmão do líder à liderança (ter o nome Castro confere aparentemente superioridade de direitos), a inépcia económica, a prostituição juvenil, o sentimento dos milhares que arriscaram a vida para fugir numas barquetas para os Estados Unidos, tudo isso conta pouco diante do “sonho generoso” e qualquer crítica só pode ser perversa. A isto chamava Popper um sistema fechado de ideias.


A mim também me irritou, durante estes dias que se seguiram à morte de Fidel Castro, alguma histeria na nossa direita baixa, como se Cuba fosse o pior regime do mundo. Já desesperei de encontrar lampejos nas sinapses da direita portuguesa, que resvala sempre vala abaixo direita à cova do Salazar. Acho ridículo comparar as realizações de Cuba e da Suiça para concluir sobre o fracasso da revolução cubana ou do comunismo. Há que constatar por exemplo que Cuba conseguiu taxas de literacia, esperança de vida ou mortalidade infantil ao nível do melhor do mundo (não sendo a única na América Latina, Chile, Uruguai, Costa Rica ou Panamá também andam nesse nível). É provavelmente pior vida a do pobre hondurenho ou salvadorenho do que a do cubano pobre. E certamente Fidel foi uma figura histórica de grande magnitude na segunda metade do século XX. Isto é tudo verdade, mas Cuba não deixa de ser uma ditadura e Fidel um ditador. Aqui estou totalmente com o João Miguel Tavares: um ditador é um ditador é um ditador.  E nisto, mais do que em qualquer fracasso económico, reside a desgraça da revolução dos barbudos.

Mas se à direita houve patetice, à esquerda houve pouca vergonha na cara, especialmente no Partido Socialista, onde rapidamente se esqueceu o melhor da história do partido para soltar com ar de convicção esquerdismos pueris que certamente devem agradar aos novos companheiros de cama. Honre-se a excepções como Sérgio Sousa Pinto, que saiu do hemiciclo para não ter que votar o texto da vergonhosa declaração de pesar do PS, argumentando que “devo ao 25 de Abril ter crescido em liberdade e democracia; não me vou prostrar em homenagem a um ditador que negou ao seu povo o que eu prezo acima de tudo”.

Na atitude e na frase de Sousa Pinto resume-se tudo o que um democrata precisa de saber. O facto de isto andar cheio de malheiros e de hoje poucos perceberem no mundo ocidental (para já não falar do outro) o que é a Democracia, qual o seu valor e quais os seus limites intransponíveis, explica muita coisa. Explica os Brexits, os Trumps, os Grillos, os Iglesias e outras desgraças que temo ainda estejam para nos cair no prato.

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