Há nos jornais uns comentadores que têm um espaço
equivalente ao que nos estádios de futebol popularmente se chama lugar cativo.
Nos estádios, paga-se ao ano, às vezes à década, a cadeirinha tem o nosso nome
e entra-se quando se quer para se ver qualquer jogo. Nos jornais, estes
comentadores entram com igual regularidade e dissertam sobre o que lhes apetece.
Enquanto por norma os comentadores políticos comentam política, os comentadores
desportivos bola, os fiscalistas escalpelizam impostos, os advogados enumeram
as minúcias da lei, os ambientalistas anunciam bombásticos a vinda do
armagedeão e os cientistas se maravilham com as mais recentes partículas
subátomicas, os privilegiados a que me refiro debitam sobre o que lhes vem à
tola, sempre com igual segurança.
Entre estes multifuncionários da opinião escrita, há-os
simpáticos, como o Miguel Esteves Cardoso, que todos os dias com igual candura
nos dá uns parágrafos sobre a eleição de Trump, algum bom livro que leu ou a
dificuldade em encontrar recargas para a sua Mont Blanc, há-os sólidos como o
Miguel Sousa Tavares, com quem é fácil estar de acordo porque tem boas bases e
por isso só ocasionalmente se espalha completamente ao comprido, e finalmente
há-os sectários sobre qualquer assunto em que toquem. É um texto publicado após
a morte de Fidel Castro por um exemplar destes últimos, chamado José Vítor
Malheiros, que nos traz aqui hoje.
Conheci por acaso este senhor no LNEC, no início da minha
carreira, quando eu ainda fazia engenharia a sério. Apareceu no meu
departamento com a relações públicas do laboratório porque ia escrever sobre ciência
num jornal chamado Público que ia ser lançado pelo grupo Sonae e queria
conhecer as instituições científicas portuguesas. Para cumprir tal propósito, perscrutou
à volta com ar severo, fez duas perguntas sem nunca dirigir o olhar para
ninguém, interrompeu as duas respostas a meio para dizer o que achava ser a
resposta certa e tendo-nos esmagado com a sua sapiência tirou bilhete para o
departamento ao lado. Eu na altura era novinho e ainda tinha uma visão
romântica do jornalismo como radicando na procura da verdade, pelo que fiquei
perplexo com a sua falta de curiosidade. Na realidade eu acabara de
experienciar sem o saber a melhor das máximas sobre jornalistas, que nos diz
que a diferença entre Deus e um jornalista é que Deus não se crê jornalista.
Já recentemente percebi que poderia também haver razões psicológicas para o modo como na altura nos olhou do cimo da burra. Encontrei na “net” uma sinopse curricular sua na página do partido Livre, escrita na primeira pessoa, onde diz que frequentou o Instituto Superior Técnico mas saíu porque percebeu que se lá ficasse se tornaria engenheiro. Como quem diz que os engenheiros são uns mangas-de-alpaca mentais por contraste ao intelectual florentino que ele é. Ora na realidade o que salta à evidência é que o calão não conseguiu acabar o curso e dirige-lhe agora o mesmo olhar com que a raposa da fábula mirava de soslaio as uvas lá em cima. Posso-lhe garantir de experiência feita que não lhe teria causado dano obter o canudo, mas reconheço que aquelas transformadas de Laplace implicam algum trabalho.
Já recentemente percebi que poderia também haver razões psicológicas para o modo como na altura nos olhou do cimo da burra. Encontrei na “net” uma sinopse curricular sua na página do partido Livre, escrita na primeira pessoa, onde diz que frequentou o Instituto Superior Técnico mas saíu porque percebeu que se lá ficasse se tornaria engenheiro. Como quem diz que os engenheiros são uns mangas-de-alpaca mentais por contraste ao intelectual florentino que ele é. Ora na realidade o que salta à evidência é que o calão não conseguiu acabar o curso e dirige-lhe agora o mesmo olhar com que a raposa da fábula mirava de soslaio as uvas lá em cima. Posso-lhe garantir de experiência feita que não lhe teria causado dano obter o canudo, mas reconheço que aquelas transformadas de Laplace implicam algum trabalho.
Como desde o início fui leitor do Público – a talhe de foice
um excelente jornal e a prova que a Ordem pode ser rica com frades pobres –
acabei por ler com regularidade José Vítor Malheiros. Enquanto escreveu sobre
ciência foi um divulgador honesto embora sem grande rasgo. A dado momento
ganhou página semanal na zona de artigos de opinião onde passei a lê-lo com mais
curiosidade, não tanto pela solidez do conteúdo como pelo agreste da forma. Nos
últimos anos, li-lhe vários artigos sobre política, economia, sociedade ou
ambiente. O denominador comum desses artigos era a oposição entre os justos e
democratas deste mundo (mormente ele) e os fascistas canalhas ignorantes
submissos perversos imorais corruptos gatunos que incluíam os governos, as
empresas, os economistas, a troika, académicos, os outros comentadores e mais
genericamente quem não tivesse a mesma opinião, de que eu era um reles exemplo.
Várias vezes não consegui perceber muito bem onde desencantava ele as condições
políticas, a vontade popular ou o dinheiro para levar a cabo as suas propostas,
mas aí lembrei-me sempre a tempo que ele conseguiu não ser engenheiro e portanto safou-se àquela relação limitante que
tipos como eu têm com a necessidade de realidade das coisas.
No dia 30 de Novembro passado, José Vítor Malheiros saiu-nos
com um artigo intitulado “Fidel Castro não é de cartão”, que lido com atenção
se revela não como mais um mas antes como o artigo malheirístico por excelência,
o ideal platónico de que todos os seus escritos anteriores derivam. Parabéns,
portanto, pelo momento de clímax. Acontece também que é um dos textos mais
menorizantes dos valores da democracia que eu já li e note-se que sobre isto já
li bastante, entre textos sérios e puro disparate. Enquanto escreve sobre
Fidel, Malheiros nunca ataca a democracia, a liberdade ou a fundamentalidade
dos direitos do Homem, mas acaba por fazer pior: reserva-lhes o papel de
detalhes sem relevância. Ora a História ilustra que quem destruiu as
democracias não foi tanto quem as criticou, mas antes quem não lhes deu valor.
Os primeiros só aproveitaram o que lhes foi legado pelos segundos.
O fulcro do artigo está numa frase, logo após um parágrafo
em que Malheiros reconhece – vá lá – que o regime cubano se “orientou” para uma
linha ditatorial, que diz o seguinte: “Este discurso é ele próprio
contraditório? É. Como se pode falar de esperança, de ideais de liberdade e de
combate pela justiça a propósito de uma sociedade onde há liberdades básicas
que não são reconhecidas? Pode-se porque as coisas não são simples nem puras e
porque não há nenhuma lei da Natureza que dite que tem de haver coerência entre
os objectivos que se traçam e os caminhos que se percorrem.” Por outras
palavras, os fins podem justificar os meios, o que eu já li escrito pelas penas
de todos os grandes totalitários do século XX, às vezes com uma franqueza pelo
menos mais saudável do que a de José Vítor Malheiros.
Claro que não há nenhuma lei da Natureza que dite seja o que
fôr sobre a coerência dos objectivos dos homens. As leis da Natureza estão mais
preocupadas com a interacção de fotões e nucleões e outros do género, e o que
se passe a nível mais agregado não as interessa por aí além. A esse nível
agregado o que há são leis dos homens, uns achando que a complexidade e a
impureza da vida justificam a prisão de um homem que pensa de forma diferente,
como Malheiros e muitos outros, e outros, infelizmente cada vez menos, que
acham que as coisas são mais simples do que isso e que não existe nenhuma mas
mesmo nenhuma razão que justifique justificar o horror do totalitarismo e que a
questão dos valores democráticos é sempre central e nunca periférica ou
acessória.
Em contraponto a Malheiros e à sua pequena e dissimulada
justificação dos fascismos, comunismos e outros ismos que vão sendo gerados
pela “incoerência entre caminhos e objectivos”, ocorrem-me a enorme
verticalidade e os “huevos” do tamanho de melancias com que um velho Unamuno
desmontou em público na Universidade de Salamanca o discurso totalitário do
general Milan Astray e o seu “viva la muerte”. Para Unamuno, certamente as
coisas também não eram simples nem puras, mas os limites eram claros e
justificavam não só a demarcação intelectual como a coragem física com que
diante dos franquistas arruinou a carreira e expôs o pescoço.
Pelo artigo fora, Malheiros volta a malhar na tecla quando estabelece
a seguinte dicotomia: “Há quem sustente, às vezes com cinismo outras vezes com
desonestidade, que isso significa que esses discursos generosos contêm em si
mesmos o germe da catástrofe e devem ser condenados, quando não proibidos, e os
seus defensores amordaçados ou fuzilados, e que se deve deixar, apenas, a
natureza e sociedade seguir o seu curso sem interferências de maior. Outros
consideram que o sonho de uma sociedade melhor e mais justa não deve ser
abandonado apenas porque ainda não encontrámos o melhor caminho para lá
chegar”. Este parágrafo é todo um exercício de malheiriana desonestidade
intelectual empacotado num arrazoado digno das actas dos processos das purgas
estalinistas. Aqueles que acham que Cuba não é o “símbolo de um combate generoso”
só podem ser ou cínicos ou desonestos e querem amordaçar ou até fuzilar aqueles
que fazem discursos generosos (não sei onde é que ele foi buscar esta dos
fuzilamentos), enquanto àqueles que generosamente sonham tudo se pode desculpar
enquanto não se encontra o melhor caminho para “lá” chegar. Suponho que até uns
fuzilamentozitos nas paredes de Cuba, estes bastante reais.
Remata o artigo com a vetusta tese da “grandeza na tragédia
desse extravio”, algo que eu já não ouvia há alguns anos, quando alguns justificavam
as mortes e atribuíam os males dos regimes comunistas a alguma inabilidade
prática de almas no entanto generosas.
Para Malheiros, os fuzilados, os silenciados, a corrupção, o
nepotismo que leva o irmão do líder à liderança (ter o nome Castro confere
aparentemente superioridade de direitos), a inépcia económica, a prostituição
juvenil, o sentimento dos milhares que arriscaram a vida para fugir numas
barquetas para os Estados Unidos, tudo isso conta pouco diante do “sonho
generoso” e qualquer crítica só pode ser perversa. A isto chamava Popper um
sistema fechado de ideias.
A mim também me irritou, durante estes dias que se seguiram
à morte de Fidel Castro, alguma histeria na nossa direita baixa, como se Cuba
fosse o pior regime do mundo. Já desesperei de encontrar lampejos nas sinapses
da direita portuguesa, que resvala sempre vala abaixo direita à cova do Salazar.
Acho ridículo comparar as realizações de Cuba e da Suiça para concluir sobre o
fracasso da revolução cubana ou do comunismo. Há que constatar por exemplo que
Cuba conseguiu taxas de literacia, esperança de vida ou mortalidade infantil ao
nível do melhor do mundo (não sendo a única na América Latina, Chile, Uruguai,
Costa Rica ou Panamá também andam nesse nível). É provavelmente pior vida a do
pobre hondurenho ou salvadorenho do que a do cubano pobre. E certamente Fidel foi
uma figura histórica de grande magnitude na segunda metade do século XX. Isto é
tudo verdade, mas Cuba não deixa de ser uma ditadura e Fidel um ditador. Aqui
estou totalmente com o João Miguel Tavares: um ditador é um ditador é um
ditador. E nisto, mais do que em
qualquer fracasso económico, reside a desgraça da revolução dos barbudos.
Mas se à direita houve patetice, à esquerda houve pouca
vergonha na cara, especialmente no Partido Socialista, onde rapidamente se
esqueceu o melhor da história do partido para soltar com ar de convicção
esquerdismos pueris que certamente devem agradar aos novos companheiros de
cama. Honre-se a excepções como Sérgio Sousa Pinto, que saiu do hemiciclo para
não ter que votar o texto da vergonhosa declaração de pesar do PS, argumentando
que “devo ao 25 de Abril ter crescido em liberdade e democracia; não me vou
prostrar em homenagem a um ditador que negou ao seu povo o que eu prezo acima
de tudo”.
Na atitude e na frase de Sousa Pinto resume-se tudo o que um
democrata precisa de saber. O facto de isto andar cheio de malheiros e de hoje poucos
perceberem no mundo ocidental (para já não falar do outro) o que é a Democracia,
qual o seu valor e quais os seus limites intransponíveis, explica muita coisa.
Explica os Brexits, os Trumps, os Grillos, os Iglesias e outras desgraças que
temo ainda estejam para nos cair no prato.
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