Antes de ir de férias passei na livraria do Instituto Franco-Português, uma aposta sempre sem risco, e comprei ao acaso meia-dúzia de livros de bolso fininhos, daqueles que se propoem no topo de uma pilha e se despacham numa tarde de praia, a maioria de autores que desconhecia para ver ao que sabiam.
Um desses livrinhos intitulava-se “Uma mulher” e escrevera-o
Annie Ernaux, uma professora francesa de letras com uma obra essencialmente
autobiográfica. “Uma mulher” conta a história da mãe da autora, nascida num
meio pobre e rural entre as duas grandes guerras, que ascende a pulso a uma
pequena burguesia comerciante e proporciona à filha o salto cultural para uma
classe média urbana de fim de século, sem nunca a chegar a entender muito bem. Uma
história que quase poderíamos dizer banal, não fosse o facto de cada vida ser
única na sua infinidade de facetas, uma história parecida com muitas que de
perto ou de dentro cada um de nós conheceu. Também eu ouvi aos mais velhos contar
sobre vilas como a vila onde a mãe de Annie explorava um pequeno café, terras socialmente
estratificadas em castas por debaixo da aparência de convivialidade, onde todos
sabiam o lugar que o berço lhes reservara, desde o trabalhador rural ao
operário ao lojista ao patrão ao médico ao senhor da terra, numa espiral de
posses e de letras que só os anos sessenta vieram baralhar um pouco.
O que me surpreendeu na escrita de Annie Ernaux foi o modo
sociológico, a pinça e escalpelo, com que a autora descreveu a vida e a
personalidade e as capacidades e incapacidades da sua mãe, das suas diferentes
mães – a criança nascida pobre, a adolescente trabalhadora, a mulher de armas
que defendia o seu pequeno negócio, a viúva só, a velha senil – com a mesma objectividade
nua com que o biólogo observa ao microscópio as errâncias do micróbio. E isto
sem deixar de transparecer, em frequentes passagens da narrativa, um amor que
se percebe incondicional, sem perguntas e sem a expectativa de respostas. Ernaux separa totalmente a personagem
histórica (todos somos personagens históricas, a História é feita tanto de
mesteirais como de príncipes) da personagem afectiva e relacional. Expõe-nos a
mãe com as suas idiossincracias de classe, enformada pelo seu contexto, com os
seus tiques, aspirações e decepções de muito pequena burguesia ascendente.
Esta crueza chocou-me um pouco, ao fechar e arrumar o livro
na estante, pela sua frieza e quase crueldade. Mas pensando melhor, a autora
não fez mais que transpôr para livro algo que também nós fazemos. Fazemo-lo de
forma institiva, quase automaticamente, mas com uma lucidez que se atentarmos
nos surpreenderá. Também nós, dentro das nossas cabeças, concebemos dualmente aqueles
que nos são queridos, pais, filhos, familiares, amigos, separando-os neles e nos
outros eles. Os primeiros são aquele novelo de emoções, de vínculos, de
experiências convividas, de traços de personalidade, que formam o amor e a amizade.
Os segundos, os outros eles, são seres sociológicos, que percebemos sem o
confessar como fruto das suas circunstâncias, das suas origens e comportamentos
de classe, das suas ascensões e decadências na escala social, das suas
possibilidades e limitações culturais ou económicas. Identificamos esses outros
eles de milhentas formas, numa reverência à autoridade, numa pretensão de
melhor gosto, na defesa de uma aparência, na escolha de uma compra, num tique
de grupo ou no ataque a um terceiro.
Normalmente não temos destes outros eles uma percepção
consciente da sua presença. Vivemos a serenidade ou o entusiamo do momento e gozamos o amigo, o
pai, o filho, independentemente do outrém que eles sejam. Mais raramente, num
momento de fastio, de aborrecimento ou de irritação poderemos deixar escapar um
vislumbre destes outros eles em frases mal-humoradas como “às vezes tem a mania”,
“falta-lhe ali qualquer coisa” ou “não se lhe pode pedir mais”, que usamos como
desculpas de um comportamento que não nos agradou. Mas por pouco que estejamos
atentos, estamos cientes. Se nos escrutinarmos com atenção e honestidade, acharemos
dentro de nós todos esses outros eles. E se usarmos de suficiente franqueza, até
o outro eu encontraremos.
1 comentário:
O Biriba esteve aqui... ;)
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