sábado, setembro 01, 2012

O estranho caso do homem que não sorria


Agosto é mês de notícias bárbaras, repescadas por estagiários de jornalismo nos cafundós das agências noticiosas e da “internet” para preencher páginas de jornal quando a política e a economia de férias interrompem o fluxo certinho de intrigas e calamidades. Ontem, para fechar o mês, o Público ostentava em última página, no lugar da habitual crónica do Vasco Pulido Valente, a descoberta no Camboja de um espécie de peixes que têm o pénis na cabeça.  Eu por acaso conheço algumas pessoas, homens e mulheres, que têm o pénis na cabeça, só que metaforicamente falando, mas estava longe de imaginar que a selecção natural tinha mesmo pregado à natureza uma partida destas. Pergunto-me se a divulgação desta notícia irá aumentar as receitas turísticas do Camboja, com “charters” de reformadas nórdicas a banhos no delta do rio Mekong.

Mas a nova mais perturbante do mês veio logo no início, nos primeiros dias dos jogos olímpicos de Londres, quando a polícia britânica prendeu um homem que assistia à prova à beira da estrada, no meio da multidão, com base no mui suspeito indício de ele não estar a sorrir - o que a diligente autoridade considerou atitude estranha. Veio depois a verificar-se que o senhor tinha um ricto facial, causado por uma doença, que lhe impedia mover os músculos da cara, tendo sido libertado com um pedido de desculpas pela maçada.
                        

Razão tem o jornal humorístico Inimigo Público quando adopta como mote “se não aconteceu, podia ter acontecido”. Por muito que os humoristas se esforcem para ampliar as fronteiras do “non-sense”, a pose bacoca de agentes políticos, autoridades e outra malta que se tem por séria consegue num golpe de asa fácil ir sempre mais além. Nos anos setenta, os Monty Python realizaram um excelente “sketch” intitulado “Um conto de fadas”, que se passava num reino chamado Vale Feliz onde se dançava e cantava o dia todo e onde quem se sentisse triste ou infeliz ou tivesse problemas de qualquer tipo podia ser perseguido por desrespeito à “Lei da Felicidade” que o rei Otto tinha promulgado. No início do “sketch” assiste-se a um julgamento de um homem apanhado a resmungar. O advogado de defesa ainda tenta justificar o comportamento do seu cliente com o facto de a mulher dele ter morrido nessa manhã, mas tal desculpa esfarrapada provoca uma gargalhada no tribunal e leva o juiz a condenar o acusado a ser “pendurado pelo pescoço até que fique bem disposto”. Ao fazer esta rábula, os Python teriam bem ciente que a patetice alegre tem uma pitada totalitária, mas provavelmente nem eles esperariam que, quarenta anos volvidos, a  polícia de Sua Majestade lhes fizesse concorrência, suspeitando de um homem que não sorria e levando-o para averiguações.

Que os jornais tenham visto como uma anedota de verão que um homem seja preso por não sorrir no meio do convescote geral, e não se alarmem diante da evidência de um sintoma grave de mal-estar de uma sociedade amedrontada, diz muito sobre a imprensa que temos, sobre a sociedade que vamos tendo e sobre como ambas se realimentam como cobras mordendo caudas. Mesmo na “silly season”, este evento sabe muito mais a “season” do que a “silly”, infelizmente.

Este episódio lembra-me outro contado por Ray Bradbury. Nos anos de chumbo do McCarthysmo, Bradbury e um amigo passeavam a pé à noite quando um carro da polícia parou ao pé deles e um dos guardas lhes perguntou o que estavam ali a fazer. Bradbury respondeu “a andar”. O polícia pareceu surpreendido com a resposta e retorquiu, meio-desconfiado:

 - Está bem, mas não o voltem a fazer.

Esta ocorrência inspirou a Bradbury o conto “The pedestrian”, sobre um futuro ditatorial em que era proibido andar a pé.
De facto, um mundo em que a polícia se sente à vontade para suspeitar seja de homens que passeiam, seja de homens que não sorriem, não pode senão levantar receios de uma deriva totalitária a quem tenha dois dedos de testa. E a mim não me serve a desculpa oficial dos responsáveis ingleses, de que a polícia agiu prudentemente tendo em conta a multidão reunida, o mediatismo do evento, o risco do terrorismo, etc. e tal. Repetindo uma tirada de Benjamin Franklin que já aqui citei no blogue, uma sociedade que põe a sua segurança acima da sua liberdade não merece nem uma coisa, nem outra.

1 comentário:

ana roque disse...

O título “O estranho caso do homem que não sorria” é a erle stanley gardner e o texto fez-me rir. Quanto ao pedestrian, tal como pensava, parece que não está traduzido em português, mas há notícia de edições brasileiras. Fiquei curiosa até porque não conheço o autor.