Quem já fez provas de orientação no campo sabe da utilidade
dos mapas militares emitidos pelo Instituto Geográfico do Exército. Por muito
perdidos que estejamos no meio do mato, um olhar atento e uma análise comparada
da vizinhança com o conteúdo do mapa e as coisas começam a fazer sentido: um
casebre lá ao fundo, uma linha de alta tensão passando mais acima, uma pendente
abrupta à nossa esquerda, um canavial adiante que denuncia uma linha de água.
Concluímos que devemos estar aqui e que o nosso caminho tem que ser por ali.
Ora desde há uns anos que andamos todos no mato sem saber
para onde vamos. Instalou-se no mundo uma tenebrosa unanimidade onde uma
minoria manda palpites e uma maioria repete-os, todos dizendo que só há um
caminho e que é por ali, e alegremente nos empurram, inconscientes se no fim do
trilho há um destino ou um precipício.
Completamente por acaso, veio-me parar às mãos um livrinho
que está para os dias extraviados que correm como a carta militar à escala
1:25000 está para os momentos de desorientação no baixo de uma ribanceira. Encontrei-o
no aeroporto de Schiphol e chamou-me a atenção a capa com uma avestruz em pose economista
e o título “23 coisas que não lhe dizem sobre o capitalismo”. O autor, Ha-Joon
Chang, não pertence, apesar do seu nome e do nome do seu livro, ao comité
central do PC chinês: é sul-coreano e professor de economia na modestinha universidade
de Cambridge. Apesar da capa titular
ainda “The No. 1 international best-seller”, género de referência que me deixa sempre
de pé atrás, acabei por trazer e ainda bem.
O livro organiza-se em 23 capítulos mais uma curta
conclusão. Cada um dos capítulos fala sobre uma “coisa”, uma ideia feita
papagueada pelo grosso dos políticos, dos académicos e dos média, que Chang,
com sabedoria oriental e humor britânico, se entretém a desmontar com
argumentos, contra-exemplos e - pasme-se - números e dados reais. Depois de o
ler, podemos pelo menos alimentar uma dúvida legítima sobre se existe mesmo uma
coisa chamada mercado livre, se as companhias são efectivamente geridas no
melhor interesse dos seus accionistas, se o crescimento da riqueza dos mais
ricos arrasta de facto o crescimento da riqueza de todos, se precisamos para
alguma coisa de mercados financeiros mais eficientes ou se até precisamos deles
menos eficientes, etc., etc., etc.
Desmontando um a um cada um desses chavões que os fazedores
de opinião nos vendem como sendo saber, Chang vai desenvolvendo a tese segundo
a qual a forma de capitalismo que desde os anos oitenta do século passado é
apresentada como a via única e o fim da História não passa de um versão parcial
e ideológica, um pouco como o whabismo saudita que hoje se confunde geralmente
com islamismo não representa a largura do pensamento e a profundidade da
história do Islão. O que Chang diz é que o capitalismo é muito mais do que a
salsada conservadora e neo-liberal que nos tem sido servida. Tem muitas
virtudes mas também defeitos que têm que ser considerados, controlados ou
contornados, usando de juízo e capacidade crítica.
E é a falta desta capacidade crítica que, no último capítulo
(a “coisa” 23, intitulada “Boas políticas não precisam de bons economistas”), mais
consegue revoltar Chang, afastando-o do seu misto de fleugma britânica e
serenidade asiática. Professor de economia, dá uma violenta rabecada na classe
e indigna-se com as desculpas esfarrapadas com que colegas seus da academia
explicam a incapacidade que tiveram de antever a actual crise e, pior ainda, de
ver retrospectivamente o papel que a visão única do chamado neo-liberalismo
teve no acumular e explodir da crise. Chang reconhece que a economia tal como
aplicada nos últimos trinta anos tem sido “pior do que irrelevante”: tem sido
danosa para as pessoas. E adianta que isso acontece porque os economistas
actuais esqueceram que a economia se pensa, que os grandes vultos se estudam e
que olhando para trás ainda há muita informação útil para usar. Comparando, se
o que aconteceu aos economistas acontecesse com os engenheiros, seria como se estes
esquecessem de repente Newton, Maxwell ou Planck para seguir aqueles inventores
charlatães que periodicamente clamam que descobriram o motor contínuo de
primeira espécie que vai tirar a humanidade da miséria.
“23 coisas que não lhe dizem sobre o capitalismo” é um livro
livre para leitores livres. Desvenda uma porta até aí secreta no cubículo sem
saídas do pensamento actual. Cabe-nos a nós, leitores, perceber se queremos
sair por essa porta ou ficar onde estamos, à espera que outra apareça.
Sem comentários:
Enviar um comentário