Foi com algum desapontamento que vi no Expresso do último
sábado, naquela secção dos altos e baixos da semana, o ministro Mota Soares
alteado pela sua iniciativa de obrigar os beneficiários do Rendimento Social de
Inserção a trabalhos úteis para a sociedade. É certo que os altos e baixos não
são sítio para jornalismo de jeito, ou jornalismo de todo. E é certo que
vivemos tempos propícios à asneira, tempos pastosos em que as noções de bem e
de mal se perderam no breu da noite de abandono moral que caíu sobre o mundo. Mas ainda assim não
estava à espera de ler no Expresso - um jornal que se reclama de referência, um
jornal que ousava falar de democracia quando publicado nos tempos já longíquos
de uma ditadura formal - um elogio aos trabalhos forçados.
No outro dia, o meu filho mais velho perguntou-me o que eu
achava de ele praticar voluntariado, como agora se diz, numa iniciativa
qualquer da sua universidade. Eu respondi-lhe que me parecia bem, com duas
condições: não se sentir no direito de julgar quem ajudasse e não esperar que
lhe tivessem que ficar agradecidos. Se conseguisse reuni-las, teria sido de
facto generoso e poderia deitar-se ao fim desse dia de consciência tranquila e
dormir o sono de um justo. O papel de um pai é também este, o de alertar um
filho para os perigos desta vida, e não há perigo maior do que pegar num acto
nobre e abastardá-lo pela soberba.
Conheço gente que leva a cabo trabalho do mais meritório, do
mais útil para quem sofre e para quem precisa, seja de um pacote de leite, seja
de uma palavra de consolo. Tenho um grande amigo com obra feita nesse domínio,
merecedora de qualquer encómio, que no entanto diz a quem o quer ouvir que os
beneficiários do subsídio de desemprego deveriam ser obrigados a ajudar em
obras de voluntariado. Perturba-me que ele não perceba que tal pensamento não só
contradiz como apequena a sua excelente prática. Perturba-me isto até mais do que
me confunde a noção de que o voluntariado pode não ser voluntário. Não deveria
então chamar-se obrigatoriado?
Uma sociedade pode organizar-se numa base mutualista, em que
todos pagamos impostos para ter direito a um seguro se por azar perdermos o
emprego ou adoecermos gravemente, ou assistencialista, em que quem está em estado de necessidade tem que
procurar a caridade para ser ajudado. Pessoalmente, acho a primeira via muito
mais eficiente e civilizada do que a segunda e, como tenha a civilização em melhor
conta que a barbárie, recomendo-a vivamente. A caridade deveria agir como último
recurso apenas quando um sistema básico de solidariedade colectiva falhasse.
Lamentavelmente, obrigar quem se ajuda a um qualquer trabalho, por muito socialmente
útil que o mesmo pareça, não é nem mutualista nem assistencialista, do modo que
acima defini. O adjectivo que assim à primeira me ocorre é esclavagista. Coagir
quem se pretende ajudar a um qualquer trabalho ofende a dignidade das pessoas
como ofende a dignidade do trabalho.
Pelos vistos, a ideia infeliz do meu amigo foi
aproximadamente retomada pelo ministro Pedro Mota Soares. Quer o ministro que
os beneficiários do Rendimento Social de Inserção procurem activamente emprego,
se quiserem manter essa benesse. Parece-me bem que o façam: esses beneficiários
estão a utilizar um recurso escasso que é o dinheiro dos nossos impostos que
faz falta para que outros não percam o seu emprego, a hipótese de ter os seus
filhos ensinados ou a oportunidade de ver o seu cancro tratado. Quer o ministro
acabar com as fraudes no RSI. Parece-me excelente que o consiga, pelas mesmíssimas razões: abusar do RSI é como
roubar os medicamentos do coração ao velhote que anseia pela chegada da magra
pensão para os poder comprar. Quer o ministro obrigar aqueles que auferem o RSI
a trabalhos úteis. Parece-me péssimo. Que trabalhos? Em que condições? Com que
paga? Que eu tenha conhecimento, ao longo da História, gente que trabalhava
forçadamente ou era escrava, sob diversos nomes (servo, hilota, etc.), ou era
prisioneira. Em qual destas categorias enquadraríamos os beneficiários do RSI coagidos
a trabalhar? Escravos ou prisioneiros?
Talvez o ministro devesse tirar sentido do exemplo ocorrido
com a Lei das Sesmarias de el-rei D.Fernando, que aprendemos na quarta classe. Procurara
D.Fernando atender à dramática falta de mão-de-obra rural com um conjunto de
regras, umas que ainda hoje fariam sentido para muita gente, mas outras, como a
que recomendava que os “mendigos em idade e força suficientes fossem presos e
obrigados a trabalhar pelo sustento ou por soldada”, que só fariam sentido àqueles
que acham que a pobreza é pecado. Pois o que aconteceu foi que, apesar destas
obrigatoriedades todas num tempo em que havia tropa suficiente e arbitrariedade
muita para as fazer respeitar, a Lei das Sesmarias poucos resultados deu. O
mesmo D.Fernando, noutra frente, fomentou duas bolsas de seguros marítimos, em
Lisboa e no Porto, organizadas cooperativamente, que cobravam aos armadores dois
por cento dos fretes e garantiam a recuperação do valor do navio àqueles que os
perdessem. Tais bolsas, muito inovadoras à época, tiveram um grande sucesso e
foram fundamentais para o desenvolvimento da actividade naval que suportou o
surto das nossas Descobertas. Onde quis obrigar, fracassou. Onde procurou a
cooperação, teve sucesso.
De todos os tempos, as sociedades de homens livres sempre se
deram melhor que as sociedades de escravos. Porque não também hoje?
2 comentários:
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