sábado, julho 28, 2012

As modernas sesmarias



Foi com algum desapontamento que vi no Expresso do último sábado, naquela secção dos altos e baixos da semana, o ministro Mota Soares alteado pela sua iniciativa de obrigar os beneficiários do Rendimento Social de Inserção a trabalhos úteis para a sociedade. É certo que os altos e baixos não são sítio para jornalismo de jeito, ou jornalismo de todo. E é certo que vivemos tempos propícios à asneira, tempos pastosos em que as noções de bem e de mal se perderam no breu da noite de abandono moral  que caíu sobre o mundo. Mas ainda assim não estava à espera de ler no Expresso - um jornal que se reclama de referência, um jornal que ousava falar de democracia quando publicado nos tempos já longíquos de uma ditadura formal - um elogio aos trabalhos forçados.

No outro dia, o meu filho mais velho perguntou-me o que eu achava de ele praticar voluntariado, como agora se diz, numa iniciativa qualquer da sua universidade. Eu respondi-lhe que me parecia bem, com duas condições: não se sentir no direito de julgar quem ajudasse e não esperar que lhe tivessem que ficar agradecidos. Se conseguisse reuni-las, teria sido de facto generoso e poderia deitar-se ao fim desse dia de consciência tranquila e dormir o sono de um justo. O papel de um pai é também este, o de alertar um filho para os perigos desta vida, e não há perigo maior do que pegar num acto nobre e abastardá-lo pela soberba.

Conheço gente que leva a cabo trabalho do mais meritório, do mais útil para quem sofre e para quem precisa, seja de um pacote de leite, seja de uma palavra de consolo. Tenho um grande amigo com obra feita nesse domínio, merecedora de qualquer encómio, que no entanto diz a quem o quer ouvir que os beneficiários do subsídio de desemprego deveriam ser obrigados a ajudar em obras de voluntariado. Perturba-me que ele não perceba que tal pensamento não só contradiz como apequena a sua excelente prática. Perturba-me isto até mais do que me confunde a noção de que o voluntariado pode não ser voluntário. Não deveria então chamar-se obrigatoriado?


Uma sociedade pode organizar-se numa base mutualista, em que todos pagamos impostos para ter direito a um seguro se por azar perdermos o emprego ou adoecermos gravemente, ou assistencialista, em que quem está em estado de necessidade tem que procurar a caridade para ser ajudado. Pessoalmente, acho a primeira via muito mais eficiente e civilizada do que a segunda e, como tenha a civilização em melhor conta que a barbárie, recomendo-a vivamente. A caridade deveria agir como último recurso apenas quando um sistema básico de solidariedade colectiva falhasse. Lamentavelmente, obrigar quem se ajuda a um qualquer trabalho, por muito socialmente útil que o mesmo pareça, não é nem mutualista nem assistencialista, do modo que acima defini. O adjectivo que assim à primeira me ocorre é esclavagista. Coagir quem se pretende ajudar a um qualquer trabalho ofende a dignidade das pessoas como ofende a dignidade do trabalho.

Pelos vistos, a ideia infeliz do meu amigo foi aproximadamente retomada pelo ministro Pedro Mota Soares. Quer o ministro que os beneficiários do Rendimento Social de Inserção procurem activamente emprego, se quiserem manter essa benesse. Parece-me bem que o façam: esses beneficiários estão a utilizar um recurso escasso que é o dinheiro dos nossos impostos que faz falta para que outros não percam o seu emprego, a hipótese de ter os seus filhos ensinados ou a oportunidade de ver o seu cancro tratado. Quer o ministro acabar com as fraudes no RSI. Parece-me excelente que o consiga,  pelas mesmíssimas razões: abusar do RSI é como roubar os medicamentos do coração ao velhote que anseia pela chegada da magra pensão para os poder comprar. Quer o ministro obrigar aqueles que auferem o RSI a trabalhos úteis. Parece-me péssimo. Que trabalhos? Em que condições? Com que paga? Que eu tenha conhecimento, ao longo da História, gente que trabalhava forçadamente ou era escrava, sob diversos nomes (servo, hilota, etc.), ou era prisioneira. Em qual destas categorias enquadraríamos os beneficiários do RSI coagidos a trabalhar? Escravos ou prisioneiros?


Talvez o ministro devesse tirar sentido do exemplo ocorrido com a Lei das Sesmarias de el-rei D.Fernando, que aprendemos na quarta classe. Procurara D.Fernando atender à dramática falta de mão-de-obra rural com um conjunto de regras, umas que ainda hoje fariam sentido para muita gente, mas outras, como a que recomendava que os “mendigos em idade e força suficientes fossem presos e obrigados a trabalhar pelo sustento ou por soldada”, que só fariam sentido àqueles que acham que a pobreza é pecado. Pois o que aconteceu foi que, apesar destas obrigatoriedades todas num tempo em que havia tropa suficiente e arbitrariedade muita para as fazer respeitar, a Lei das Sesmarias poucos resultados deu. O mesmo D.Fernando, noutra frente, fomentou duas bolsas de seguros marítimos, em Lisboa e no Porto, organizadas cooperativamente, que cobravam aos armadores dois por cento dos fretes e garantiam a recuperação do valor do navio àqueles que os perdessem. Tais bolsas, muito inovadoras à época, tiveram um grande sucesso e foram fundamentais para o desenvolvimento da actividade naval que suportou o surto das nossas Descobertas. Onde quis obrigar, fracassou. Onde procurou a cooperação, teve sucesso.

De todos os tempos, as sociedades de homens livres sempre se deram melhor que as sociedades de escravos. Porque não também hoje?

2 comentários:

Cristina Rodo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Geov Bio disse...

vixi, eliminou o comentario?