Livros há como os melões que só depois de abertos se sabe o
que lá vem dentro.
Na loja do Smithsonian do Museu de História Americana em
Washington, comprei um pequeno volume de discursos de Abraham Lincoln sobre a Guerra
Civil Americana. Comprei mais por lembrança do que por leitura, como poderia
ter levado qualquer pechisbeque como um íman de frigorífico ou um pisa-papéis
em formato de Casa Branca: era pequenino, barato, com uma encadernação
engraçada, cabia num canto da mala. Porém, para minha surpresa, ao folheá-lo no
avião de regresso, revelou-se grande leitura de viagem e quando aterrei em
Lisboa já tinha virado a última página.
O livrito, editado pela Penguin, foi lançado para comemorar
os cento e cinquenta anos da guerra e acolhe nove discursos proferidos por
Lincoln com o confronto entre nortistas e sulistas como tema central ou pano de
fundo. Inclui o célebre “Gettysburg Address”, uma curta alocação proferida na
inauguração do cemitério militar local, quatro meses e meio depois da decisiva
batalha do mesmo nome, um textozinho em filigrana sobre a responsabilidade que
é honrar a memória e a herança dos que morreram pela liberdade dos outros e que
inspiraria um século mais tarde o “I have a dream” de Martin Luther King.
Inclui a mais documental Declaração de Emancipação, os “Inaugural Addresses”,
discursos de tomada de posse como presidente, e discursos de forte combate
político sobre o tema da escravatura. No seu conjunto, têm uma escrita
agradável e elaborada, uma imagética poderosa – se bem que por vezes um pouco barroca
– e sugerem uma oratória convincente.
De entre todos, o discurso para mim mais notável e o que
mais revela a visão e a estatura de Lincoln como homem de Estado é o que abre o
volume e foi dirigido um quarto de século antes da guerra aos alunos do liceu
de Springfield no Illinois, sua terra natal. Lincoln tinha então vinte e oito
anos e era um jovem advogado e deputado estadual, já com fama de bom paleio mas
ainda longe da capital e da presidência. Para este longo discurso (quinze
páginas), o tema que escolheu foi a perpetuação das então ainda recentes instituições
políticas americanas.
Começa por relembrar a situação geográfica americana para
concluir que o perigo nunca virá de fora, mas pode vir de dentro. Lincoln descreve
então alguns casos de linchamento ocorridos em vários pontos da União, alguns
deles de carácter racial, para concluir que embora sejam casos pontuais e
nalguns deles as vítimas até fossem criminosas, o crescimento na população do
sentimento de que as leis podem ser continuamente pisadas e desprezadas, que os
direitos individuais estão “ao alcance do capricho de uma turba”, alienará mais
cedo ou mais tarde o povo dos que o governam. E daí virá o perigo. Para conter
esse perigo, a solução que preconiza é difundir uma veneração total pelo primado
da Lei: “que cada um se lembre que violar a Lei é chafurdar no sangue dos seus
pais, destruir o próprio carácter e a liberdade dos seus filhos”.
Mesmo assim sendo, Lincoln vê nuvens negras no horizonte.
Por um lado, tem como muito provável – por inerente à natureza humana – que mais
cedo ou mais tarde apareça um homem com génio e ambição suficientes para tentar
o poder absoluto; por outro, à medida que vão desaparecendo os homens da
geração que participou na revolução americana, as suas memórias e o seu exemplo, que serviam em cada família de
baluarte contra o autoritarismo, vão
pesando menos:
- Eles eram os pilares do templo da liberdade; e agora que
ruíram o templo irá cair, a menos que nós, seus descendentes, os substituamos
com outros pilares talhados da sólida pedreira da razão sóbria.
E termina com um incentivo aos rapazes que o ouviam que
defendam essa herança até ao fim. Isto sintetizando muito a riquíssima verve do
homem...
Há em todo o discurso uma notável visão premonitória, vinte
e cinco anos antes, de que vinham aí momentos complicados e que aqueles jovens teriam
que estar preparados para eles. Isto porque Lincoln tinha claras algumas ideias
que só o bom senso, valência rara na nossa espécie, permite. Primeiro, que a
liberdade de todos pode permanentemente ser posta em risco por poucos – não há
nunca um fim da História. Em segundo, que ao longo do tempo se vai perdendo a
componente afetiva dada por aqueles que conquistaram a liberdade e que só a
razão pode levar os que se seguem a defendê-la. Finalmente, que quando os componentes
mais fundamentais de uma democracia começam, mesmo que episodicamente, a ser contornados
ou corroídos, as coisas vão fatalmente acabar mal.
A leitura deste discurso poderia não passar de um curioso
exercício intelectual se não nos déssemos ao trabalho de comparar o alcance da
visão de Lincoln com a miopia das lideranças de hoje. Onde ele viu a vinte e
cinco anos, não se vislumbra hoje a vinte e cinco dias. Ele percebeu que tocar
no que é básico, mesmo que só às vezes, é o caminho certo para o desastre
enquanto hoje os líderes europeus vão experimentando tirar esta pedrinha aqui e
este tijolo acolá, na esperança que o edifício aguente. Ele avisou a malta para
estar por isso pronta para tudo, estes nem sabem a que malta se dirigir.
Portanto, como destapa-olhos, vale a pena ler Lincoln.
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