Entro, passado tanto tempo, na Igreja de Nossa Senhora do Amparo, onde há quase quatro décadas recebi primeira comunhão pelas mãos da figura severa do padre Proença, hoje perenizado num busto de bronze como um Han Solo de adro. No centro paroquial adjacente fui bom aluno de catequese, ministrada por moças de cabelo apanhado por um gancho e pesados óculos de massa, de trás dos quais contavam com voz doce histórias dos evangelhos que não me fizeram mal nenhum, antes pelo contrário, acho eu. Um dia anunciei em casa que já não valia a pena ir por não acreditar naquelas coisas, para certo desconforto de minha mãe. De repente, Deus ficou sem espaço na minha vida, substituído por fés mais prometedoras (aos doze anos pareciam) como a ciência ou a humanidade, e partiu sereno. Também, não Lhe devo fazer grande falta.

Lá dentro, sou surpreendido pelo burburinho sumido de uma casa cheia, sentada ordeira nos bancos corridos, numa presença humana que contrasta com o vazio da rua e a mudez vertical do templo, um grosso caixote oitocentista, de um barroco modesto, a que o tempo conferiu mais vigor do que beleza. São sobretudo mulheres idosas, envoltas em pesados casacos escuros e cachecóis tricotados, que esperam pacientemente o início das palavras mágicas que, para muitas, encherão algum do vazio criado pelas saudades dos que foram e pela ausência dos que ainda cá estão. A cada minuto, bate a porta de entrada e entra mais uma, que busca um lugar como que guardado para ela, arrastando atrás de si um bichanar de cumprimentos murmurados.
Encosto-me a um pilar de lado e permaneço de pé. Assim faço sempre numa igreja. Não me sento, não me ajoelho, não me benzo: mantenho-me quietinho, o que atrai alguns olhares entre o curioso e o desconfiado. Não poderia ser de outra maneira: aquilo que para outros simboliza o divino, como um sinal da cruz, feito por mim que não creio seria um mero macaquear e uma suma falta de respeito. Ali me quedo em silêncio.
Começa a eucaristia, passo a passo, iguais a cada dia e a cada século, como uma procissão centenária que percorre sempre as mesmas capelas e as mesmas esperanças. A dado momento, o padre cita alguns nomes a que a celebração especialmente se dedica. Um deles o do meu pai, razão da minha presença ali, inicialmente mal referido pelo cura: “Mota”. O velho Mata ter-lhe-á lançado lá de cima algum aperto fulminante porque logo emenda, ajustando os óculos: “Perdão, Mata. Américo Mata”.
Durante o sermão, dedicado ao sentido da celebração natalícia, o padre, recorrendo a uma linguagem jornalística, comenta que o Natal pode estar em alta, mas Jesus está em baixa. E alerta para que não se faça confusão entre a simplicidade, que o Natal deveria inspirar, e a simploriedade que a nossa sociedade transpira e que neste final de Dezembro parece que se amplifica. Por momentos identifico-me com aquele homem de paramentos do qual tudo me separa mas que me traz numa bandeja a palavra que me faltava para perceber as correrias aos centros comerciais e os ramos de azevinho digitais no canto dos ecrãs televisivos: simploriedade.
A missa termina, as portas abrem-se, a luz matinal ofusca, atraindo a romaria bamboleante dos fiéis que, de pé, se vai lentamente libertando dos bancos corridos. Descubro a minha mãe no meio da multidão, surpresa de me ver ali, deixo-a em casa e regresso à minha, onde tudo dorme ainda, onde restos de papel acetinado ainda juncam o soalho e o cheiro dos doces se evapora pela porta da sala.
1 comentário:
Eu diria mais "Tacanhez"...
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