segunda-feira, março 03, 2008

Pouca vergonha

Li há dias nos jornais que a administração do metropolitano de Londres, num rasgo de pudibunda clarividência, proibiu a afixação nos espaços do metro londrino de cartazes anunciando uma exposição, na Royal Academy of Arts, de obras do pintor renascentista alemão Lucas Cranach, o Velho. Parece que a veterana academia, fundada no século XVIII pelo rei Jorge III para promoção da pintura e outras belas-artes, esqueceu-se momentaneamente de que não é bem o Olímpia da Rua das Portas de Santo Antão e cometeu o grosseiro deslize de escolher para cartaz uma imagem pornográfica, uma Vénus datada de 1532. Ora Vénus, apesar de ver o seu nome frequentemente associado a uma peça de vestuário, costumava andar nua e tal exibição de carne foi considerada pelos pressurosos gestores imprópria para consumo dos – supõe-se que acéfalos – passageiros que se acotovelam pelas manhãs enevoadas nos vetustos corredores do “tube”, apressados e remelentos, a caminho de Marble Arch ou de Holborn.


Cranach, nascido Lucas Sunder em Kronach, na Alta Francónia, viveu entre 1472 e 1553. Em 1504, o eleitor da Saxónia, o duque Frederico III o Sábio, já lhe reconhecera dotes artísticos, dedicando-lhe uma renda de cinquenta florins e contratando-o como pintor ducal. Frederico III seria provavelmente um tarado sexual, sem as fortes referências morais dos administradores do metro londrino, para se pôr a delapidar o tesouro saxão com um autor de obras debochadas. Igualmente doidonas – ou pior – teremos que considerar os imperadores Maximiliano de Habsburgo e Carlos V, os quais, não sendo nenhuns badamecos, se deixaram pintar por Cranach. Ou Martinho Lutero, outro possível amante do porno, que foi amigo e compadre do desbragado pintor.

Naqueles tempos devassos, em que ainda não tinha sido providencialmente inventada a administração do metro de Londres para acabar com a pouca-vergonha, Cranach acabou por ser coberto de honrarias e vantagens por andar a pintar aquelas porcarias. Vivendo na cidade de Wittenberg, atribuíram-lhe o monopólio da venda de medicamentos, uma licença de impressor com direitos exclusivos de publicação da Bíblia, o posto de burgomestre, tudo coisas de bom rendimento que um ordinário daqueles não mereceria. Incompreensivelmente, até a igreja luterana reservou um dia feriado no calendário para o desavergonhado e incontinente artista.

Felizmente, o “board” do “underground” não dorme em serviço e, do alto da sua pureza de princípios e de dentro dos seus fatos de Saville Row, lá tratou de equiparar a maligna obra do pornógrafo Cranach ao pior ou melhor que ofereciam as páginas da “Gina”, esse verdadeiro manual de biologia do terceiro ano de liceu que pontificou nos escaparates lisboetas dos anos setenta, arregalando olhos e partindo pulsos.


Agora falando sério: eventos como este ou como a famosa histeria colectiva norte-americana a propósito do seio da Janet Jackson têm um ar inócuo, de tão ridículos. Mas não são. Parecem um eczema, mas são um tumor, minando a sociedade por dentro. Revelam uma visão puritana, estreita – melhor dizendo, estúpida – da vida, que está no poder em muitos sítios, dos Estados Unidos ao mundo muçulmano e que começa a fazer preocupantes incursões na Europa Ocidental, até em locais tão insuspeitos como a Grã-Bretanha. Esta tendência contraria uma evolução libertária dos anos sessenta e setenta que enformou a nossa educação e que muitos dávamos por adquirida. Excesso de optimismo…


A visão do corpo como algo eminentemente negativo, corrupto e corruptível, tem raízes profundas na História e está bem estabelecida nas religiões, que opõem geralmente as actividades do espírito, superiores, às do corpo, meramente rasteiras. Encontramo-la em Platão, na sua teoria das Ideias, perfeitas por oposição à imperfeição das coisas reais – leia-se materiais. A influência platónica passou para dentro do Cristianismo através de São Paulo e depois de Santo Agostinho, que andou uns anos na paródia mais devassa e só depois se dedicou às coisas da santidade.

Santo Agostinho, antes de se tornar cristão e doutrinário do Catolicismo, foi adepto do Maniqueísmo, religião que concorreu com o Cristianismo pela maior quota de mercado no Baixo Império Romano, mas cuja influência perdurou muito para além da sua existência enquanto culto organizado. Se entendermos o Maniqueísmo, percebemos de onde vêm muitas das tontices que ainda rastejam no interior dos crânios dos puritanos dos nossos dias, de que os administradores do metropolitano de Londres são apenas um triste exemplo.

O Maniqueísmo foi fundado na Pérsia no século III por um tal Mani. Segundo este, no início de tudo havia dois reinos: o do Bem, simbolizado pela luz e o do Mal, pela escuridão. Viviam separados, mas do lado do Mal, por definição, não se sentiam lá muito bem. Um dia, o Diabo, que chefiava o reino do Mal, espreitou para o outro lado, achou piada e decidiu invadir o reino do Bem. Houve porrada cósmica, da qual resultou o mundo tal como o conhecemos. A matéria do universo resultou da decomposição dos corpos dos príncipes do mal. Ainda mais escatológico, a terra, o húmus, resultou das fezes dos mesmos malignos príncipes. Por isto, o Maniqueísmo determinava um mundo a preto e branco, dividido entre Bem e Mal, representados por Espírito e Matéria.

Tudo o que fosse material era mau, porque oposto ao espiritual, o qual era bom. A matéria decompunha-se, o espírito perdurava. Como consequência, aquilo que se relacionasse com o lado material da existência tinha uma conotação negativa: isso incluía o corpo, a sexualidade, gozo da matéria e fonte de mais matéria, e a mulher, indutora de sexualidade e, pela maternidade, vector de geração de mais matéria. Mas também o materialismo económico, que valoriza de “per se”o crescimento da componente material da vida.

Encontramos esta perspectiva, sob diversos graus e formas, mais ou menos explícita, nas grandes religiões modernas: os Cristianismos, o Judaísmo, os Islamismos ou o Budismo. Em determinadas circunstâncias, esta visão amplifica-se, dando origem a extremismos políticos e puritanismos morais. Para termos uma ideia do ponto irracional a que estas ideias podem chegar, veja-se o Mohammed Atta, um dos terroristas que pilotou um dos aviões que embateram nas “Twin Towers”. O moço deixou instruções expressas para que “mulheres grávidas ou pessoas não limpas” não se aproximassem do seu corpo, para se despedir. São de facto dois portentos de estupidez: já o pedido em si, mas também a esperança que lhe encontrassem qualquer pedaço maior do que um centímetro.


O puritano, no sentido mais lato, é aquele fulano que dorme mal à noite, atormentado pela ideia de que alguém, algures, se possa estar a divertir à grande. É essencialmente um obcecado sexual, que não pensa noutra coisa e vê mal em todo o lado. Tal e qual como os administradores do metro de Londres. Há que dar com os pés nessa malta nojenta, senão qualquer dia estamos a lapidar adúlteras e a excisar crianças.

Por isto, se por acaso pretenderem admirar a obra de Lucas Cranach, o Velho, na Royal Academy of Arts, façam-me um favor. Não apanhem o metro. Tomem um táxi ou vão a pé.

3 comentários:

Cristina Rodo disse...

Carlinhos, sabes que de política não percebo nada e que cultura geral tenho pouca, não faço tb o mínimo esforço para me manter informada... mas esta história dos mails, em que as coisas nos entram pela vida a dentro sem serem convidadas tem as suas vantagens... ou desvantagens, depende do ponto de vista...
Será que esta censura não terá mais uma vez a ver com o ocidente a dar o cuzinho aos fundamentalistas com medo das represálias se os "ofenderem"? Ando com a sensação de que as coisas se estão a virar um bocado para isso... se calhar estou enganada.

NunoF disse...

Cri, presumo que por "fundamentalistas" referes-te aos "fundamentalistas islâmicos", certo?

É que fundamentalistas há muitos. A começar pelos evangelistas americanos (por exemplo).

De qualquer modo, não creio que seja uma coisa que se está passar recentemente devido aos fundamentalistas islâmicos.

Se fosse para baixar as calças a esses tipos, era mais óbvio retirar tropas do Afeganistão e do Iraque, por exemplo, e isso não vai acontecer tão cedo (mesmo que o Obama ganhe).

Até os Monty Python foram censurados pela televisão americana nos anos 70, muito antes do eclodir da "Guerra Santa contra o Terrorismo"...

Por outro lado, a Sra Sarkozy apareceu nua novamente numa revista. Os franceses pelo menos seguem para bingo! :-)

Cristina Rodo disse...

Na realidade, apesar de concordar que o facto de ter mencionado o ocidente pode levar a crer que estava a falar dos Islâmicos, estava a pensar em todos os fundamentalismos, incluindo os falsos puritanos que cada vez mais pululam por aí.
E não, não acho que fosse mais fácil retirar as tropas do Afeganistão do que proibir um cartaz no metro...