domingo, abril 29, 2007

Aux armes, et caetera...


“Every man has two nations, and one of them is France”

Benjamin Franklin


No próximo domingo, a França eterna corre o risco de mudar para sempre. Na hipótese de Ségolène Royal vencer as eleições para a presidência, teremos pela primeira vez uma mulher a comandar no hexágono a partir de uma cadeira (a do Eliseu) em vez de uma cama (a do homem que era suposto mandar). A hierarquia do mobiliário não voltará a ser a mesma.

Em França, o poder político formal foi historicamente assunto de homens. Não houve primeiras figuras femininas, das que mandassem mesmo, como Isabel I ou Vitória em Inglaterra, Isabel a Católica em Espanha ou Catarina a Grande na Rússia. A única mulher que aparece nos compêndios primários de História de França mescla loucura, mistério e inocência num cadinho de lenda e realidade, com alguma androginia à mistura. Ainda assim, Joana d’Arc não foi poder, mas uma forma de contra-poder, e por isso levou com o Cauchon em cima, acabando na fogueira – para sossego dos ingleses, que sempre foram exímios em pôr terceiros a fazer o trabalho sujo que lhes pertencia.

Mas se na História de França escasseiam as mulheres mandantes, abundam por outro lado as mulheres amantes, que entre a primeira e a segunda influenciaram quedas de políticas, promulgações de decretos, declarações de guerra e outros temas afectos ao destino da nação. Costumava dizer-se, nos anos sessenta, que o “De Gaulle manda em França e a Yvonne manda no De Gaulle”. Mas esta tendência tem raízes profundas, entre reinantes legítimas e meras favoritas, desde a Clotilde do rei franco Clóvis, passando por Catarina de Médicis, a Marquesa de Pompadour, a Maria Antonieta, a Maria Walewska e outras, como a amante do presidente Fauré, que em 1899 o matou do coração em pleno Eliseu, a golpes de anca, em situação muito embaraçosa para a moralidade republicana. “Cherchez la femme”, como eles lá dizem.

A especial relação da França com a mulher e com a sexualidade é apenas uma das muitas idiossincrasias daquele país e daquele povo, algumas mais sincréticas, outras perfeitamente idiotas, quase todas marcantes. E que tornam a França num país único, à superfície do planeta como no nosso espaço mental colectivo.


Tornou-se moda de nossos dias cascar na França, nos meios “soi-disant” bem-pensantes. Nos jornais, na televisão, tudo lança postas sobre a decadência francesa, sobre a crise francesa, sobre o esgotamento político francês. Tenho nos últimos anos viajado a França com alguma frequência, e pelo que lia cá esperava a cada saída encontrar um país a ferro e fogo, com filas para o racionamento ou então com um quarto da população abaixo do limiar da pobreza e com matanças a metralhadora nas escolas ou, pelo menos, com as arribas fósseis pejadas de betão e as jóias da arquitectura urbana histórica de fachada à banda, à espera do colapso e do consequente condomínio residencial. Mas para azar meu vi um país bem ordenado, com cidades e aldeias limpas e organizadas, com uma agricultura de ar próspero (é verdade que à conta do défice do orçamento comunitário), com um património histórico rico e bem mantido, com um povo aparentemente bem-alimentado.

Como é notório, os comentadores portugueses são gente rigorosa, pela cabeça da qual não passaria falar do que não sabe. Se eu não vi as criancinhas francesas subnutridas, de estômago inchado e olhar mortiço, só pode ser por ter estado nos sítios errados. Ou então, e mais certo, passa-se que depois de dois séculos a absorver carneiristícamente a cultura francesa, vinda em caixotes pelo Sud-Express, como dizia o Eça, tocou agora de bater no ceguinho. E não é que não mereçam, porque quando mete franceses só não se aproveitam as que não acertam. Mas como me irrita gente que papagueia sobre os mais fracos para se sentir mais forte, este “post” será dedicado à defesa da França. De uma certa França, recheada de boas coisas que muito inconscientemente apreciamos.

Podemos começar pela cultura. A França sempre foi e segue sendo pátria de passagem, acolhimento e geração da boa obra cultural. Embora reconheça que o francês por vezes abusa e resvala para a peneira, naquele país o saber e a inteligência prestigiam socialmente o indivíduo, atitude que as democracias bem necessitam. Ao longo do tempo, a lista dos nomes mesmo grandes cresceu e impressiona, de Du Bellay a Tati, passando por Molière, Montesquieu, Flaubert, Renoir, Seurat, Camus, e tal. Tão poderosa equipa compara sem medo ou vergonha com a grande selecção de 1998: Zidane, Henry, Vieira, Thuram, tudo artista e filósofo da bola. A França sempre soube absorver e atrair o melhor da cultura dos outros, da arquitectura italiana no tempo de Francisco I ao bailado russo do início do século XX ao “jazz” americano do pós-guerra, baralhando, partindo e dando sob novos formatos. Por alguma razão o Gene Kelly foi um americano em Paris e o Lobisomem foi o americano em Londres.

Mas mais importante, em França a cultura é assunto de massas. Apanhando o metro em Solferino, veremos na carruagem mais gente a ler do que num curso universitário de letras noutros países. A edição é óptima, vasta e barata, e a FNAC da Rue de Ternes em Paris bate-se com a Foyles de Londres pelo título de campeã do mundo das livrarias. As pequenas lojas são mais notáveis ainda: não se vendem livros como se vendem batatas e o livreiro francês trabalha como um jardineiro, seleccionando os títulos, renovando os escaparates, fazendo milagres de cor num talhão minúsculo. Quem quiser perceber, que vá ver o espectáculo de oferta que são os trinta metros quadrados da loja de livros do Instituto Franco-Português.

Se compararmos a televisão francesa com a generalidade das suas congéneres europeias constataremos que há mais e mais animados debates, mais programas culturais e um certo pudor em descer ao nível coprofágico do Big Brother ou do Ratinho. Também os programas escolares tem uma preocupação humanística muito marcada e uma mania, que os pedagogos da 5 de Outubro poderão ver como funesta, de achar que aos catorze e aos dezasseis o pessoal pode perceber coisas complicadas e pensar com a sua própria cabeça. Com tudo isto, o francês da rua consegue olhar para um mapa-múndi e apontar para o seu país sem se enganar, tarefa que se revela mais complicada com os indígenas de Atlanta ou Cincinnati.

Outra coisa que em França se espera que seja boa é a boa vida, o que já não é coisa pequena nos dias que correm de fanatismos sanitários e moralistas. Já falámos da sexualidade, ou melhor, como eles lá dizem, do amor. Porque no imaginário colectivo francês o amor tem uma vertente sexual que não se envergonha, graças a Deus. Por isso, o amor ideal, a mão na mão, o guardar-se para a pessoa especial e outras vogas que por aí andam, tudo bem, mas ao fim ao cabo nada como curtir um valente tal e coiso, exactamente pela mesma razão que a chuva cai para baixo e os rios correm para o mar: porque é natural que assim seja. Daqui vem a diferença entre a Emma Bovary, que vai ao castigo, mesmo que com problemas de consciência, e a Emma Woodhouse que com a consciência dos problemas espera pelo homem certo para casar e só aí é que.

Mas nem só de boa cama vive o homem, há também a boa mesa. Apesar de por vezes gozar com amigos franceses sobre a exiguidade da “nouvelle cuisine”, verdade seja dita que nunca passei fome em França, mas já sofri agruras em Oslo ou Amesterdão. Em solo gaulês, a comida tem que ser boa e bonita. Se saudável ou não, não interessa, e se tal perturbar o bom palato até interessa que não seja. Recordarei para sempre, com muita saudade e muito “pankreoflat”, um jantar num duas estrelas Michelin, um casarão de vidraças batidas pela ventania, em sítio improvável à beira de uma estrada perdida da costa norte da Bretanha. Aí sobrevivi feliz, mais outros quinze, a uma sucessão orgíaca de oito pratos fora os “amuse-gueules”, regados por espumantes e vinhos variados, de tinto a branco a novo tinto e a “rosé”. Deixei naquela mesa um salário mínimo e dois anos da minha esperança de vida, mas saí com um brilho nos olhos, de contente e grosso. A este propósito, a relação da França com o álcool também não desmerece. Entre vinhos, digestivos e espirituosos, só a escolha embaraça, embora eu talvez me rendesse a um bom conhaque XO. Como ícone do gosto francês pela boa pinga, nada como o Inspector Maigret, que em cada página de para cima de uma centena de livros abate uma imperial ou um meio copo de aguardente para ajudar à investigação, sem que o fígado se ressinta ou o criminoso se escape.

E para acompanhar um grande vinho, venha uma tábua de queijos franceses. Aqui está um produto que a Comissão Europeia e a sua sanha censória gostaria de regulamentar: coado em panos velhos e manufacturado por dedos sebentos e micro-organismos duvidosos, com quarenta por cento de matéria gorda. Acho percebível que um eurocrata inglês, que na sua ignorância julga que o Stilton é um queijo e não um resíduo petroquímico, queira sanear o fabrico do “camembert”. Menos natural será que se lhe faça caso, em vez de o insultar e à sua mãezinha e de o internar compulsivamente num curso prático de bom gosto, onde lhe seja dado a provar “reblochon” e “bleu du Vercors” – e já agora mulheres do continente. Pouco dado a eurocracias, Churchill afirmou em 1940 que um país com 360 variedades de queijo não pode morrer, o que constituiria excelente e mais que válido argumento para a invasão da Normandia, não houvesse já o detalhe de ser preciso salvar a Europa do nazismo.

Povo culto e venerador dos prazeres da vida, o francês entende que há coisas que têm que ser defendidas e cultiva por isso, por vezes até a um certo exagero, outra faceta que me é simpática: a de não se deixar pisar pelo poder, saindo à rua, à luta, quando necessário. Quando se torna necessário arrear a giga, aí estão os franceses em manifestação, pelo horário das trinta e cinco horas ou contra legislação racista. Reconheço que muitas vezes passam das marcas, sendo capazes de pôr Paris a ferro e fogo para protestar contra um aumento de cinco por cento do passe social. Mas pelo menos não são como o resto de uma Europa aburguesada e entorpecida, que aceita com um olhar cabresto as consequências do fino pensamento liberalóide, por aí reinante, sem ao menos dar a entender que não anda muito satisfeita. De uma Europa que se esquece que também se formou em 1649, em 1789, em 1848 e em 1968.

A História da Europa demonstra que merda da grossa para aí de cem em cem anos contribuiu com vantagem para o progresso da sociedade. Por um lado, porque um processo revolucionário funciona como uma válvula de escape social e ideológica que fomenta novos equilíbrios, por outro porque aumenta a percepção de risco dos governantes, incentivando-os a ser reformistas em tempo útil. A revolução teve na política o efeito que o terramoto tem na tectónica. Hoje em dia a via revolucionária anda demonizada pelos tabus da guerra-fria e pelo olhar único do politicamente correcto. As revoluções são processos desordenados, recheados de injustiças pontuais, onde muita malta se aproveita, onde muitos vão na onda sem a mínima ideia do que estão a fazer, mas foram as respostas da dinâmica social a situações limite, por vezes com vantagem, por vezes não. Foi depois de revoluções que os ingleses deixaram de aceitar o poder divino dos seus monarcas, que alguns franceses deixaram de estar isentos de impostos só por serem de boas famílias, que os americanos ou os italianos tiveram o direito de mandar na sua própria vidinha.


Prova de que a Revolução Francesa não era só cabeças cortadas.

A visão romântica dos franceses pela perspectiva contestatária e revolucionária foi em tempos património da humanidade. A Marselhesa era o hino de todos os que lutavam contra a opressão, como se vê na inesquecível cena no Rick’s Café, em que a música catapulta todos os personagens para a afronta à grosseria e brutalidade nazis. Estão a imaginar o God Save the King a fazer o mesmo efeito? Hoje em dia prevalece uma ideia da Revolução Francesa deturpada e despojada daquilo que foi o seu significado histórico. Até jacobino, de repente, entrou no vocabulário dos editoriais para significar qualquer coisa como “reaccionário de esquerda”. Já agora, recupere-se também girondino, termidoriano, montanhês, cordoeiro, para a estupidez ser mais completa. E embora não haja desculpa, relembre-se, para dar às coisas alguma perspectiva de longo prazo, que durante o ano e meio que durou o Terror, teoricamente um dos mais inqualificáveis pesadelos da história da humanidade, houve em Paris 2650 sentenças de morte executadas. Isto compara com as 25.000 mortes civis no ataque à Comuna de Paris pelo governo de Versalhes, a 60.000 mortos num único dia da batalha do Somme, sendo ainda igual a um a dois por cento das vítimas civis na actual guerra do Iraque.

A França está pois de saúde, e recomenda-se. Quando a França se opôs ao brilho intelectual de George W. Bush na sua cavalgada heróica contra a hidra babilónica, caiu o Carmo e a Trindade, e foi um vê-se-te-avias: apodaram-na de velha, de majestática, de jacobina (lá está!), etc. Tss, tss! Viu-se quem tinha razão. A França há-de morrer muitas vezes nas palavras dos seus detractores e ressurgir sempre, porque faz parte de todos os nós. E eu, a quem muitas manias dos franceses dão galo, descubro-me francófilo quando a vejo levar injustamente.

Vem-me aqui à memória a canção do Brassens: “Y a des copains au bois d'mon cœur / Chaqu' fois qu'je meurs / Fidèlement / Ils suivent mon enterrement”. Por mim, cada vez que matarem a França, seguirei o enterro com um sorriso, sabendo perfeitamente que não há de ser o último.

quarta-feira, abril 18, 2007

A praga dos economistas

Practical men, who believe themselves to be quite exempt from any intellectual influences, are usually the slaves of some defunct economist.

John Maynard Keynes



Se Moisés tivesse ameaçado o faraó com a praga de economistas que para aí anda, tinha poupado o Egipto à peste e aos gafanhotos e o pessoal a trinta minutos de charutada no filme “Os dez mandamentos”. Isto porque o Ramsés, diante da sombria perspectiva, haveria de dar passaportes aos judeus todos, mais ao gado e à bagagem, antes que levar nas bancas com uma edição em hieróglifos do Diário Económico, propalando as virtudes da iniciativa privada na construção de pirâmides.

Vão longe os tempos em que a economia só interessava a cinzentos senhores de óculos, muitas vezes juristas adaptados, que nem faculdades específicas havia por não parecerem necessárias. Assuntos económicos não enchiam como hoje quatro páginas de jornal mais um suplemento semanal a cores, resumindo-se então a uma ou outra solta entre a bola e o necrotério. Défices que preocupassem, só o das plaquetas no sangue. Hoje em dia, pelo contrário, a moda pegou e a coisa descambou.

Agora, tropeça-se num calhau e salta de lá um economista. Muda-se o canal da têvê e lá vai um a perorar com ar de evidente sobre as maleitas dos gastos públicos. Sintoniza-se a rádio e aí vem outro a debitar sobre a reacção dos mercados ao relatório do Fed, como se os mercados fossem bichos com orelhas e patas e reacções, que desatassem a correr por aí acima como cutucados por um pau. Economistas, nas empresas, são aos rores e uns horrores. É vê-los, como formiguinhas chinesas a construir uma barragem de terra no Rio Amarelo, de cabelo besuntado e fato de três botões à procura do erro no EBITDA, ziguezagueando o cursor e o olhar angustiado pelo meio de gigantescas folhas de cálculo. Tantos e tão vistosos, que a economia, que não interessava ao menino Jesus, interessa agora a toda a gente, que por regra percebe do assunto tanto como os próprios em questão.

O economista, tal como prolifera hoje, é coisa caracteristicamente incaracterística, por mais do que uma razão.

Em primeiro lugar, porque tem dificuldade em se caracterizar. Praticando os médicos medicina, os advogados advocacia e os engenheiros engenharia, seria de esperar que os economistas tratassem de economia. Mas não. De acordo com a novíssima Ordem dos Economistas, é economista quem “tenha titularidade de uma licenciatura na área da ciência económica com um conteúdo curricular que corresponda à transmissão de um mínimo de conhecimentos técnicos e de uma cultura própria à profissão de economista”. Pescadinha de rabo na boca: é economista quem tiver aprendido o mínimo para ser economista. Depois de ler isto, perguntei-me, com uma angústia daquelas de bafo na nuca, se seria por funesto acaso economista. Sou licenciado, tive que ter dez numas cadeiras de macroeconomia e de contabilidade de custos e, entre outras coisas, leio relatórios e contas para ganhar a vida.

Para meu sossego, a dita Ordem, provavelmente consciente do granel que definições daquele género geram, apressou-se a publicar para esclarecimento das hostes uma lista de cursos que facultam o almejado estatuto. Para gáudio e grande alívio deste vosso criado, não consta lá o meu canudo. Mas, curiosamente, vêm listados nada menos de 22 cursos de gestão e administração, contra 18 de economia. Ora é mais fácil encontrar um defesa do Boavista meiguinho do que um licenciado em gestão que não nutra um ódio profundo e visceral pela economia, macro, micro ou assim-assim. Todos os que eu conheço, e são alguns, vêem a economia como uma matéria nebulosa, pejada de equações compridotas, de aplicabilidade prática duvidosa, sofrida a contra-gosto em cadeirões já esquecidos do segundo ano, e com aprovação à terceira ou quarta tentativa.

Como, ainda por cima, as faculdades produzem à vontade cinco vezes mais licenciados em Gestão do que em Economia, resulta que o economista é, com oitenta e tal por cento de probabilidade, alguém que nunca pensou sê-lo e que sempre trocou as econometrias por assuntos mais amenos e florais como contabilidade analítica ou “marketing e comunicação”. Mal comparado, é como se a Ordem dos Engenheiros admitisse amantes do bricolage. Tudo somado, a maioria dos economistas depois de o ser não o é, exactamente ao contrário da pescada.

Se já não resulta fácil perceber quem são, mais difícil será entender o que fazem. Os economistas que se sentem mais evoluídos manejam –julgam eles– uma especialidade chamada “ciência económica”. Aqui, deparam-se com uma pequena dificuldade. Para a perceber, convêm lembrar como funciona a ciência. De uma maneira razoavelmente simples: observa-se a realidade, arranja-se uma explicação para a observação de parte dessa realidade, traduz-se essa explicação num modelo, relacionando em regra grandezas numéricas mensuráveis. Os modelos científicos servem para várias coisas: permitem criar uma visão comum sobre os fenómenos (pela repetibilidade), dão-nos meios para antever a evolução dos fenómenos descritos (conferem previsibilidade), possibilitam a descoberta de novos fenómenos, deduzidos do modelo, e só depois observados e, muito importante, funcionam como autotestes permanentes a si próprios. Uma realidade que não encaixe no modelo invalida o modelo. A matemática, a física, a química, a biologia e a geologia floresceram à luz deste método, e com elas as suas primas tecnológicas: as engenharias e as medicinas.

A dita ciência económica, coitada, debate-se com um problema grave: não acerta uma, o que não era suposto. Não há um prémio Nobel da economia que nos consiga informar –sem se rir– qual vai ser a inflação da semana que vem. Os gurus das finanças, se ficam ricos, é só por haver parvos que pagam cem euros para os ouvir a debitar banalidades e espertos que convencem as suas empresas a pagar elas os cem euros. Se as previsões dos engenheiros aeronáuticos fossem tão de fiar quanto as do Banco de Portugal, ninguém punha os cascos num avião, porque ia cair de certeza, se por mero acaso levantasse vôo.

A realidade é simplesmente complexa demais ou os modelos económicos demasiado pobres: a dita ciência económica está numa fase medieval, quase alquímica, da sua existência. Os Keynes e os Friedmans deste mundo não passam de Paracelsos, e por muito respeitável que fosse este antepassado da Medicina, todos preferiríamos entregar os nossos destinos ao bisturi ou aos panasorbes de um obscuro mas moderno médico da caixa, ainda que correndo os riscos inerentes, do que às sanguessugas ou ao serrote do Paracelso.

Como reage a classe a tal estado de coisas? Uns, poucos e normalmente economistas propriamente ditos, embrenham-se em descrições matemáticas de um realismo "tolkeniano", imaginando num delírio artístico mundos virtuais povoados de funções de utilidade e matrizes de Ansoff, em vez de orks ou elfos. Frequentam congressos da academia e confiam na memória curta do povo e na seda da gravata para se aventurar com ar sério em prognósticos sobre o crescimento do PIB, em frente às câmaras de televisão. Outros, incapazes de tal pedalada, lêem de empreitada o Semanário Económico e os gurus das livrarias de aeroporto, e repetem. Repetem – com ar convicto ainda por cima. Quando os professores eram de esquerda, papagueavam a planificação da economia. Agora, que os professores alinham à direita, passaram a ararar as vantagens do mercado livre. Se lhes perguntássemos se as forças de mercado teriam sido suficientes para produzir o Taj Mahal, os Concertos Brandeburgueses ou o estado social sueco, ficariam a olhar, como economistas para um palácio, manifestamente sem perceber o sentido da pergunta.

Por outro lado, com a vitória supostamente suprema das vantagens absolutas do mercado livre e da sua mãozinha invisível, os economistas, mesmo que hipoteticamente acertassem de vez em quando, tornaram-se inúteis. Uma vez que preconizam que não se deve mexer em nada, porque as coisas se ajustam sozinhas e que a intervenção só estraga, são como um médico que apenas explicasse ao doente: “Você tem uma fractura exposta. Vamos deixar que isso vá ao lugar sozinho, que não se deve tocar. Se por acaso apanhar gangrena, vai morrer mas também não há azar porque nesse caso você não é biologicamente eficiente e há que dar lugar a quem o seja. A concorrência tem que funcionar”. Ao aceitar como inevitabilidades – que se explicam mas não se combatem – a dor e o sofrimento gerados pelas injustiças de cariz económico, portam-se como um Leonardo da Vinci que olhasse para o voo das aves e concluísse que os homens nunca conseguiriam voar.

Perturbados com as dificuldades que a evolução do mundo – social, demográfica, tecnológica, ambiental – causou ao modo de intervenção dos homens na economia, os economistas abdicaram do papel social que podiam desempenhar, limitando-se a repetir e a propagar ideias feitas sobre os méritos dos mecanismos de mercado e os deméritos da intervenção estatal, numa clássica situação de bebé fora com a água do banho. O mercado de emissões de CO2 pode ser conceptualmente fascinante, mas uma multa à séria talvez funcione mais simples e eficientemente, se o Estado se der ao respeito. Imagine-se o mesmo conceito aplicado por exemplo à vacinação obrigatória. Quem não quisesse vacinar os filhos comprava um crédito na bolsa de direitos da febre tifóide ou da rubéola. Ainda andava tudo a ter cinco filhos para ficar com dois.


Por vezes, há que “go back to basics”, que é o que eu recomendo aos economistas dos nossos dias. John Stuart Mill, reagindo às visões pessimistas de Malthus e Ricardo, fez notar aos (poucos) economistas do século XIX que o homem pode ser factor de mudança:

“A distribuição de riqueza, portanto, depende de leis e costumes da sociedade. As regras pelas quais se determina são as que são feitas pelas opiniões e sentimentos da parte da comunidade que manda, e são diferentes em diferentes tempos e países, e podem ainda ser mais diferentes, se a humanidade assim escolher.”

Só auxiliando nessa escolha terão os economistas um papel socialmente meritório. Se se limitarem a gerir a desgraça, então podem ficar em casa. Se, pelo contrário, quiserem andar na rua, não se devem esquecer que Adam Smith, o primeiro dos grandes economistas, foi um professor de moral, para quem a razão de ser da riqueza e da glória era meramente o bem-estar do homem comum.

domingo, abril 01, 2007

Física da partícula

Os recentes dissabores do nosso primeiro-ministro com as investigações do jornal Público, que o catapultaram sucessivamente de engenheiro para licenciado em engenharia e para turbo-licenciado e previsivelmente para bacharel, suscitam algumas reflexões sobre uma das imagens de marca da cagança nacional: o uso da partícula.

Conta-se que uma vez um ministério português remeteu para Inglaterra uma lista de pessoas, portuguesas, que iriam estar presentes numa reunião em Londres. Todos os nomes tinham um “Dr.” à frente: o Dr. Santos, a Dra. Alzira, o Dr. Peixoto e assim até ao fim… Ao receber a lista, os ingleses telefonaram a perguntar se não haveria engano no envio, já que a lista só continha médicos.

No Reino Unido, usa “Dr.” quem praticar medicina, profissão especial que herdou aquela veneração temerosa que nas sociedades primitivas se tributava aos que manipulavam o mistério e possuíam poder sobre a vida e sobre a morte: o feiticeiro, o mágico, o“shaman”. Ou então, no meio académico, aos doutores em filosofia, qualquer que ela seja, que provaram ser tão doutos como os seus pares. Todos os outros são “Mr.”, se merecerem esse respeito, ou “Sir”, se a rainha por feitos lhes conceder tal graça. Percebe-se pois a confusão dos britânicos quando lhes mandam de Lisboa o Dr. Santos para discutir a harmonização das leis fiscais ou a cooperação judiciária.

Por cá, qualquer jerico que se forme na Universidade de Lisboa em gestão de barracas de praia corre nesse mesmo dia, que nem um foguete, até à sua agência bancária para mandar pôr no cartão de crédito um “Dr.” diante do epíteto que os paizinhos lhe deram. Quem não tem “Dr.” ou “Eng.” ou qualquer outra partícula de duas ou três letras, para pendurar à frente do patrónimo, sente-se inferiorizado, como se largado nu no Rossio à hora de ponta. Tão enraizado complexo de inferioridade suscita comportamentos entre o curioso e o aberrante.

Irritam-me, por exemplo, aquelas secretárias que me perguntam, quando eu, ao telefone, peço para falar com alguém e dou o meu nome: “Dr.” ou “Eng.”? Fico com vontade de responder: bate-chapas (“Bc.”) ou proxeneta (“Px.”). Já para não falar das luminárias que se introduzem com um “daqui fala o Dr. Caria Zebedeu”, como se fossem Zebedeu de pai e Dr. Caria de mãe.


As partículas vão subindo e descendo de cotação conforme os tempos e as modas. O “Dr.” tem mantido um valor constante ao longo do tempo, enquanto o “Eng.” se tem valorizado. No início do século XIX, um engenheiro era pouco mais do que um capataz especializado, como podemos ler em Camilo Castelo Branco. Na segunda metade desse século já é um técnico socialmente respeitável, pertencendo a uma burguesia em ascensão, como o Jorge de “O Primo Basílio”, que ganha o suficiente para ter criada mas não o suficiente para que a mulher não o encorne. No século XX, o engenheiro chega a ministro com Duarte Pacheco e a primeiro-ministro com Guterres (mas pelos vistos não com Sócrates). Já “Arq.” tem cotado sempre em valores baixinhos. Para prová-lo, basta fazer notar que não conseguimos conceber, sem rir, a secretária acima referida a perguntar-nos: “Dr.”, “Eng.” ou “Arq.”?

Um caso curioso ocorre com os professores do ensino secundário. A massificação deste grau de ensino levou muitos “Dr.” a ministrar aulas nos liceus, mas ao mesmo tempo a ver o seu estatuto social cada vez mais degradado. O título de “Prof.” acabou reservado aos docentes universitários, com o significado de “ganham mal mas não se importam porque são uns crânios respeitáveis”, enquanto os docentes liceais perderam o “Dr.” e passaram a “sôtores”, o que quer dizer “não têm onde cair mortos e por isso vegetam a aturar selvagens a duzentos quilómetros de casa”. “Sôtor” anda pelas catacumbas da escala social, algures entre o varredor e o merceeiro de bairro. O que explica, em parte, o estado do ensino em Portugal.

Uma partícula que vale zero na bolsa de valores é o “Lic.”, por ironia aquilo que quase todos os “Drs.” de facto são. As universidades debitam essencialmente licenciados, a quem foi dada licença para arrotar postas de pescada sobre um assunto específico que pode ser tão extraordinariamente relevante como gestão de espaços verdes – não se riam, existe esta licenciatura no politécnico de Portalegre. Uma licença destas não confere só por si qualquer sapiência, logo quem a obtém não é douto e por consequência não é doutor. Conscientes disto, os licenciados fogem do “Lic.” como o vampiro foge do alho e esta partícula apenas pode ser vista, em letra miúda, nas nomeações e louvores impressos no Diário da República.

Existem objectos que atraem e outros que repelem as partículas. Os fatos e gravatas têm fortes poderes magnéticos. Se for tomar café de fato escuro e gravata, quase de certeza que o empregado de mesa me vai tratar por “Dr.”. Este fenómeno nota-se bem nos debates televisivos, quando as comentadoras tratam o Cavaco por “Prof.” e o Louçã pelo nome, só porque vai de camisa aberta no pescoço, apesar deste ser tão professor como o outro e até ter uma tese de doutoramento mais interessante. O futebol, ao contrário, tende a afastar o uso da partícula. Já alguma vez ouviram falar do Dr. José Mourinho? Sim, o “special one”! Como é treinador de futebol, os jornalistas partem logo do princípio que tem o 10º ano incompleto.

O meio público português pulula de políticos e aparentados que se vêem de repente sob as luzes da ribalta sem quaisquer habilitações que justifiquem o uso da partícula. Como por regra são gente de personalidade mindinha, tal coisa envergonha-os, levando-os a adoptar uma de três tácticas. Ou tiram aos quarenta e tal anos um curso tardio, que não seja complicado, numa daquelas universidades fáceis (algumas universidades, como algumas mulheres, podem ser fáceis, se se acertar o preço certo). Ou inventam um título que não têm e usam-no com a maior desfaçatez na esperança que ninguém se dê ao trabalho de investigar. Ou agarram-se que nem lapas à primeira coisa que lhes aparecer que seja justaponível ao nome. Enquadram-se nesta última categoria os majores sem exército nem batalhas e os comendadores, que receberam uma comenda, provavelmente por terem satisfeito alguma encomenda. Quando alguém usa o título de comendador é porque, coitadinho, quer muito e não tem mesmo mais nadinha para pôr.

A necessidade, o uso e o abuso da partícula são ícones do subdesenvolvimento português. Relacionam-se com a veneração salazarenta pela autoridade, com a primazia que atribuímos à aparência sobre a substância, com a ideia mirífica que reina na cabeça da burguesia pequena que se os filhos forem “Dr.” estarão safos sem precisar de se esforçar. Com esta ideia se destruiu o ensino técnico em Portugal e se criou mercado para as “universidades” privadas, que sugaram poupanças de uma vida sem hipóteses de retorno, fazendo nascer o fenómeno recente do desemprego qualificado.

Este é um campo onde temos muito a aprender com os nossos vizinhos. Em Espanha, quando alguém merece consideração é “Don”, e chega. “Don”, pela sua carga histórica e pelo seu conteúdo de hombridade, honra mais do que qualquer “Dr.”. “Don” não é partícula, é responsabilidade. No dia em que, em Portugal, os “Dr.” e os “Eng.” forem irrelevantes e os “Dom” forem merecidos, o défice estará provavelmente equilibrado e o crescimento do PIB ultrapassará a média da União Europeia.