quarta-feira, junho 06, 2007

Os gatos

Num momento de fraqueza, cedi às loas de uma amiga militante da causa felina, que conseguiu tornear o meu bom senso fazendo-me ceder à pretensão das crianças em ter um gato. Foi assim que um dia cheguei a casa e me deparei com a família de rabo para o ar, a tentar tirar de debaixo do sofá uns assustados quinze centímetros de pêlo cinza e pernitas magricelas, já nomeados Silvestre à minha revelia, em homenagem ao incompetente dos desenhos animados que nunca conseguia abocanhar o enervante canário.

Durante os dias seguintes, testemunhei uma sucessão de pequenas alegrias – o Silvestre já comeu, já adormeceu, já arreou o calhau, olha entrou para dentro de um saco – alternadas com grandes dramas – o Silvestre engasgou-se ou, pior, o Silvestre desapareceu. Os desaparecimentos do Silvestre originavam grossas angústias e verdadeiras batidas pela casa, que podiam demorar horas, com lanternas e paus e que terminavam por norma quando o Silvestre de espontânea vontade se materializava debaixo dos nossos olhos, bocejando indiferente, acabadinho de chegar da quinta dimensão.

Descobri por essas alturas a monumental indústria que gravita à volta dos gatos. Um verdadeiro “cluster” da nossa economia, para usar a expressão do Michael Porter. Entrei então em corredores do supermercado cuja existência nem suspeitava, onde se amontoavam variedades impensáveis de comida para gato, em lata ou em sacas, pequenas, médias ou grandes, com diferentes cores e composições consoante as idades, para gatos gordos e para gatos débeis, de pelagem rala ou farfalhuda, activos ou mais dorminhocos, tónicas ou dietéticas, tudo a preço de caviar “beluga”. Rapidamente o Silvestre passou a ter despesas de veterinário e um boletim de saúde como não o têm os velhotes do interior, plano de vacinas e desparasitagens. Fiquei a saber que se o bichano viesse a andar enervado, existem psicólogos especializados em dar conforto mental à gataria, por valores menos que módicos. A antiga caixa de serradura das minhas memórias de infância fora substituída por uma autêntica estação de compostagem, com uma areia sintética cheia de aromas e agregantes, dispendiosíssima, que produzia uns calhaus muito práticos mas que provocavam o rápido desaparecimento da dita areia – e a consequente e irritante necessidade de comprar mais! A esta renda havia que somar os brinquedos, o tronco de afiar unhas, as cestas para dormir mais os cobertores, o cesto para deslocações e os “bibelots” que se iam partindo.

Perante a parafernália e a despesa, a minha mãe, que em criança sempre tivera gatos de quintal que comiam espinhas e bebiam água das poças, comentava com bastante filosofia que até para se ser gato é preciso ter sorte.




Passados uns tempos, o “lobby” da bichanada voltou a atacar e conseguiu-me convencer de que se um gato incomodava muita gente, dois gatos incomodariam muito menos. O argumentário girava à volta de que assim se fariam companhia um ou outro, andariam menos nervosos, encheriam menos o saco, etc. Deste modo mentiroso chegou o Tommy a nossa casa.

O Silvestre era um bicho com algum “pedigree”, arraçado de Bosque da Noruega, com uma belíssima pelagem cinzenta, luzidia e suave como uma gola de marta. O Tommy, malhado que nem uma charolesa, de pêlo áspero, assumidamente rafeiro e com a pata muito leve. Rapidamente pôs o mais velho na ordem. Passado poucas semanas, já comia primeiro da malga, numa lição de liderança. Pusemos uma segunda tigela para o Silvestre, e ainda assim este esperava que o outro terminasse, numa lição de submissão. Estranho mundo dos gatos que tão bem imita o dos homens!

Mudou a minha vida e mudou a minha casa. Nunca sabia quando um qualquer gesto do quotidiano, uma luz que se acendia, o sentar num sofá, um passo inadvertido, iriam desencadear um tropel pelo corredor fora, um eriçar de pêlo bufante ou um mero olhar redondo de desprezo. No desprezo, aliás, eram exímios. Tinham uma maneira de olhar de soslaio, erguendo o pescoço ao de leve, de bocejar num vago aborrecimento, de virar costas e seguir caminho sem passar cartão, que só poucas mulheres – e nenhum homem. Quando soube que a esperança de vida destes animais podia exceder os catorze anos, percebi o logro em que caíra: pela ordem natural das coisas, os meus filhos sairiam de casa antes dos gatos. Desesperei com a ideia dos dois em frente à têvê, cada um com o seu felino ao colo, esperando em vão um telefonema dos ingratos.

Mas, pouco a pouco, os gatos fizeram ninho nas nossas vidas. Impuseram os seus hábitos e a sua linguagem: um olhar para a janela, põe-me aqui um banco; um mio para a maçaneta, abre-me a porta; um rebolar aos pés, dá-me festas. Estabeleceram preferências: por pessoas, por lugares, por momentos. Havia uma hora para a Sofia, outra para cada miúdo e outra para mim (infelizmente a meio da noite). Numa palavra, tornaram-se da família, com aquele jeito insinuante e lunar que me lembra o poema do Alexandre O’Neill:

Que fazes por aqui, ó gato?
Que ambiguidade vens explorar?
Senhor de ti, avanças, cauto,
meio agastado e sempre a disfarçar
o que afinal não tens e eu te empresto,
ó gato, pesadelo lento e lesto,
fofo no pêlo, frio no olhar!

De que obscura força és a morada?
Qual o crime de que foste testemunha?
Que deus te deu a repentina unha
que rubrica esta mão, aquela cara?
Gato, cúmplice de um medo
ainda sem palavras, sem enredos,
quem somos nós, teus donos ou teus servos?


Sei que com os meus gatos aprendi a resposta, e não é “dono” de certeza.

5 comentários:

Cristina Rodo disse...

O cão olha para o dono e pensa: "dá-me de comer, serve-me água, dá-me banho, leva-me à rua, faz-me festas, fala-me com uma voz ternurenta... deve ser DEUS!!!"
O gato olha para o dono e pensa:"dá-me de comer, serve-me água, dá-me banho, abre-me a porta para que vá à rua, faz-me festas, fala-me com uma voz ternurenta... devo ser DEUS!!!"

Baixa-te perante os Deuses que tens em casa... LOL
E devo dizer que acho incrível que tenhas a sensação de ter sido enganado, para a próxima convenço-vos a arranjar um Yorkshire para veres o que é bom para a tosse...

NunoF disse...

Como sou ateu, não acredito em Deuses, logo não só não me armo em Deus como não os tenho em casa :-)

NunoF disse...

Tinham uma maneira de olhar de soslaio (...) que só poucas mulheres – e nenhum homem.

Carlos POR FAVOR explica-me o sentido desta frase que eu sinceramente não percebo.

Não faltará um conseguem no fim?

CMata disse...

Nuno,

Pode ser um "conseguem" ou um "têm" a seguir ao "mulheres". O verbo está implícito,mas o sentido é evidente (tu propões aliás um dos verbos que dá à frase o sentido pretendido).

Um abraço

CM

Cristina Rodo disse...

Toma lá que é para não armares em Deus da ortografia e gramática... LOL