domingo, dezembro 03, 2006

Mataspeak Intro

Newspeak era a linguagem oficial de Oceania e foi idealizada de modo a ir ao encontro das necessidades ideológicas do Ingsoc, ou Socialismo Inglês”, pode ler-se no apêndice a “Mil novecentos e oitenta e quatro” de George Orwell. “O objetivo do Newspeak era não só o de facultar um meio de expressão apropriado à mundivisão e aos hábitos mentais dos devotos do Ingsoc, mas ainda o de tornar todos os outros modos de pensamento impossíveis. Pretendia-se que, quando a Newspeak tivesse sido adoptada de vez e a Oldspeak esquecida, um pensamento herético- isto é, um pensamento divergindo dos princípios do Ingsoc- fosse literalmente impensável, pelo menos na medida em que necessitasse de palavras.”

Tinha apenas treze anos quando, em 1976, li “O triunfo dos porcos” e “Mil novecentos e oitenta e quatro”, dois livros que marcaram muito o meu modo de ver o mundo. Até hoje. Portugal começava por essa época a estabilização do seu processo revolucionário, que o dividira durante os dois anos precedentes, anos de excessos por vezes mais românticos do que revolucionários, de combates ideológicos de conversa e calçada, em que, parafraseando Thomas Paine, se seguiram mais bandeiras do que ideias. Anos com o seu próprio Newspeak.

Orwell ensinou-me três coisas: que ideias que se reclamam do bem comum podem ser manipuladas e dirigidas por uma minoria em proveito próprio, criando um sistema totalitário sob vestes formais de um regime representativo; que um sistema totalitário procurará os meios mais eficazes para perpetuar o seu poder, os quais passarão quase sempre pela limitação da capacidade crítica das massas controladas, ou seja, nós; e que a nossa mais poderosa arma contra o totalitarismo se encontra “nos poucos centímetros dentro do nosso crânio”.

Estes três conceitos simples, mas potentes, permitiram-me perceber com treze anos aquilo que gente hoje com responsabilidade não conseguiu nessa mesma época entender, pondo-se até a fazer figuras tristes. Coisas tão simples de ver como o não haver justificação possível para as matanças estalinistas, para quem se dissesse democrata. Como o não ser no melhor interesse dos povos apertar o cinto em prol de uma oligarquia partidária. Como o não parecer que o voto de braço no ar fosse a melhor maneira de perguntar ao pessoal o que é que queria ou não queria. Como o ser sempre coisa boa a liberdade. Fico por vezes banzado quando pessoas crescidas como Durão Barroso, Pacheco Pereira ou José Manuel Fernandes, só para nomear algumas, gente que até pode por vezes ser razoável, justificam as suas defesas passadas de algum totalitarismo qualquercoisista com o argumento lamparino que só teriam dezoito-vinte-vinte e cinco anos. Não havia Orwell à mão de ler, provavelmente.

Passados trinta anos, o mundo mudou e eu também. Fiquei mais velho e menos despreocupado. Cometi a imprudência de trazer aqui ao planeta dois tipos que, como todos nós, não pediram para cá estar e por isso ainda me podem vir pedir satisfações. Entretanto, alguns totalitarismos caíram, e bem. Soltaram-se foguetes. Cretinos anunciaram o fim da História. Outras formas de opressão surgiram, umas mais evidentes, outras mais subterrâneas. Caíram as torres e a onda tornou-se má.

Enquanto “Mil novecentos e oitenta e quatro” nos mostra a ditadura no seu estado puro, instalada como um cancro no mais recôndito de cada um de nós, “O triunfo dos porcos” descreve-nos, de forma efabulada, como o totalitarismo se vai cristalizando em pequenos passos, em “já agoras”, em pequenas concessões que são basicamente responsabilidade de todos e de ninguém. Às vezes, tenho um travo amargo na boca que me diz que algo de semelhante está a ocorrer à minha volta. Que pouco a pouco estamos a abrir as defesas e a alienar o que deveria ser inalienável. Que olhamos para as árvores e não só não vemos a floresta, como não prestamos atenção ao restolhar das folhas, que julgamos não ser nada, mas que é a víbora escondida que se prepara para nos ferrar as favolas. Por tudo isto, não me sinto confortável e este blogue será o palco desse desconforto.

Aqui, direi o que penso, sobre o que me apetecer. Darei largas ao que vai dentro dos poucos centímetros dentro do meu crânio. Mataspeak será um lugar de oposição ao actual Newspeak do política e socialmente correcto. Este novo Newspeak, que nos é debitado maciça e diariamente pelos jornais e telejornais, erigidos em púlpitos de igreja quando deviam ser ágoras, confunde aparência com essência ou acção com formação, quando não debate com peixeirada. Sobre este estado da coisa, neste cantinho da rede, afixarei as minhas preocupações e as minhas indignações e os meus argumentos, nem que seja para me ler a mim próprio e clarificar as minhas ideias. Às vezes alongar-me-ei, noutras serei sintético. Os assuntos poderão parecer mais sérios uns do que outros, embora para mim de igual relevo. Também cá porei, se estiver para aí virado, aquilo que, por ser belo, achar que deve ser partilhado, até para parecer um blogue à séria.

Só divulgarei o endereço deste lugar a alguns amigos. Se a eles, ou a alguém que ao acaso aqui passe, fizer bom proveito, ficarei contente. Senão, passem bem ou, melhor, vão-se catar.

Ao longo da vida, fui-me cruzando com pessoas livres ou quase, de olho de falcão, a quem o Newspeak nunca contaminaria. Uns, achei-os em livros: Camus e Queiroz causaram mossa a certa altura, entre muitos. Outros deram-me aulas e recomendaram-me que usasse a cabeça. Ainda de outros, sou amigo ou familiar. Estes últimos, em cada e dado momento, iluminaram-me com a sua presença, chegando a fazer o favor de me alertar quando eu me portei como um idiota.

A eles e a Orwell, que morreu na miséria com pouco mais do que a idade que tenho, dedico este Mataspeak.

4 comentários:

calhandramar disse...

Carloff,

com uma introdução destas, aguardam-se mais suculentos nacos de prosa, não necessariamente a tender para o formato "barrosão".

Um abraço amigo, gracias pela distinção e parabens pela ideia.

Carlos

PW$$$ disse...

A vereação da CML anunciou que pretende introduzir salas de "injecção assistida" ou de "consumo apoiado".

Custa muito chamar os bois pelos nomes?

Não está em causa o conceito em si. Pessoalmente tenho dúvidas que seja uma solução mas pago para ver.

Mas esta forma (pretensiosa para mais) de apresentar os conceitos desvia a atenção do essencial. E agrava à confusão.
O mundo talvez precise de 32.000 tonalidades de cinzento. Mas para se ter contraste, dá jeito de vez em quando ter cores mais marcadas e sem medos.

Por isso, o nosso dissidente Mata tem toda a razão na sua magna carta de princípios.

Guerra é paz.
Liberdade é escravidão.
Ignorância é força.

VMM disse...

Mata, és a base.
Como comnetário a esta introdução, apenas posso deixar um premonitório e singelo:

«Pela boca morre o peixe.»

(O que não se aplica nem ao lavagante nem à santola, como todos sabemos)

Pedro disse...

Mata & Esfola.

Carlos, espero sinceramente, que seja melhor que o teu Futebol-de-praia!


Diz-me, o Blog está relacionado com a recente mudança profissional? Então confirma-se o boato, não tens mesmo nada que fazer. Aproveita e vai treinando para Agosto.

Os meus votos são de parabéns pela iniciativa e vai contando com a minha leitura.

Abraço
Canelas


Devido a problemas de net, só agora consegui cá chegar.