sábado, dezembro 23, 2006

Espírito de Natal

Entre as novidades que folheei ontem na Virgin de Orly, aproveitando mais um useiro atraso da nossa companhia de bandeira, seleccionei uma banda desenhada de Jean-Philippe Stassen e Denis Lapière: Le bar du vieux français. Acabei de lê-la. Apreciei muitas BDs, algumas encantaram-me, esta foi das poucas que por momentos me comoveu. Conta a história não terminada de Leila e Célestin, de como os seus caminhos improvavelmente se cruzaram, de como por momento foram felizes e de como foram cada um à sua vida, porque caminhos que se cruzam têm que, por definição, separar-se.

Leila, francesa de segunda geração de imigração marroquina, vive entalada entre o mundo físico ocidental da escola e das suas amigas e o mundo mental muçulmano de pais e irmãos encaixotados num apartamento de periferia, e foge de casa na adolescência procurando um sul ancestral e, julga ela, livre. Célestin, nascido numa cubata da África Negra profunda, órfão como um terço das crianças da aldeia, escapa-se aos oito anos com a irmã para a salvar de uma excisão certa. Esta não sobrevive à caminhada e, a partir daí, Célestin vai continuar a fugir de poiso em poiso, empurrado pela culpa, biscateando para sobreviver, atraído para o norte pelo seu destino. O encontro dá-se num tasco no meio do deserto de Marrocos, propriedade de um francês senil, que nos faz o favor de narrar os acontecimentos.

Le bar du vieux français foi o meu conto de Natal deste Natal. Sem moralismos ou xaropadas, fez-me partilhar um pouco da vida dos que sofrem. Veio lembrar-me que há mais no mundo para emendar do que para deixar como está, coisa de que quase sempre, convenientemente, me esqueço. De certo modo, fez-me sentir pequeno diante daqueles que tendo menos, se contentam e até partilham. Veio indignar-me e ainda bem, porque a indignação não é só o muito falado direito, tem que ser sobretudo uma obrigação: não nos indignarmo-nos, nem que por um momento, com o sofrimento alheio, deveria estar à cabeça da lista de pecados com direito a forno quente no inferno.

E o Natal, ao fim e ao cabo, é suposto andar à volta disto. Celebrar a dádiva e não a compra. Pensar um instante em quem precise. Honrar, seja-se ou não crente, o que é nuclear na mensagem do tipo que nasceu por estas alturas: praticar o Bem, olhar pelos Outros e ser livre de o fazer ou não, o que é uma responsabilidade tramada. Um programa um pouco mais ambicioso do que o natal dos centros comerciais ou dos jantares de empresa.

A Leila e Célestin, vi-os neste Natal como são as Leilas e os Célestins deste mundo: basicamente como nós. E não como os vemos na televisão, como números numa estatística ou paramécias sociológicas numa lamela, cagando e andando. No fim, fiquei como o Chico Buarque da canção: e eu, que não creio, peço a Deus por minha gente.

Feliz Natal.

1 comentário:

VMM disse...

Este está muito bom e contradiz um pouco o meu comentátrio inicial... a ver vamos ...

Fiquei curioso de ler a BD. Ou me emprestas ou vou procurar...