Entre as novidades que folheei ontem na Virgin de Orly, aproveitando mais um useiro atraso da nossa companhia de bandeira, seleccionei uma banda desenhada de Jean-Philippe Stassen e Denis Lapière: Le bar du vieux français. Acabei de lê-la. Apreciei muitas BDs, algumas encantaram-me, esta foi das poucas que por momentos me comoveu. Conta a história não terminada de Leila e Célestin, de como os seus caminhos improvavelmente se cruzaram, de como por momento foram felizes e de como foram cada um à sua vida, porque caminhos que se cruzam têm que, por definição, separar-se.
Leila, francesa de segunda geração de imigração marroquina, vive entalada entre o mundo físico ocidental da escola e das suas amigas e o mundo mental muçulmano de pais e irmãos encaixotados num apartamento de periferia, e foge de casa na adolescência procurando um sul ancestral e, julga ela, livre. Célestin, nascido numa cubata da África Negra profunda, órfão como um terço das crianças da aldeia, escapa-se aos oito anos com a irmã para a salvar de uma excisão certa. Esta não sobrevive à caminhada e, a partir daí, Célestin vai continuar a fugir de poiso em poiso, empurrado pela culpa, biscateando para sobreviver, atraído para o norte pelo seu destino. O encontro dá-se num tasco no meio do deserto de Marrocos, propriedade de um francês senil, que nos faz o favor de narrar os acontecimentos.
Le bar du vieux français foi o meu conto de Natal deste Natal. Sem moralismos ou xaropadas, fez-me partilhar um pouco da vida dos que sofrem. Veio lembrar-me que há mais no mundo para emendar do que para deixar como está, coisa de que quase sempre, convenientemente, me esqueço. De certo modo, fez-me sentir pequeno diante daqueles que tendo menos, se contentam e até partilham. Veio indignar-me e ainda bem, porque a indignação não é só o muito falado direito, tem que ser sobretudo uma obrigação: não nos indignarmo-nos, nem que por um momento, com o sofrimento alheio, deveria estar à cabeça da lista de pecados com direito a forno quente no inferno.
E o Natal, ao fim e ao cabo, é suposto andar à volta disto. Celebrar a dádiva e não a compra. Pensar um instante em quem precise. Honrar, seja-se ou não crente, o que é nuclear na mensagem do tipo que nasceu por estas alturas: praticar o Bem, olhar pelos Outros e ser livre de o fazer ou não, o que é uma responsabilidade tramada. Um programa um pouco mais ambicioso do que o natal dos centros comerciais ou dos jantares de empresa.
A Leila e Célestin, vi-os neste Natal como são as Leilas e os Célestins deste mundo: basicamente como nós. E não como os vemos na televisão, como números numa estatística ou paramécias sociológicas numa lamela, cagando e andando. No fim, fiquei como o Chico Buarque da canção: e eu, que não creio, peço a Deus por minha gente.
Feliz Natal.
1 comentário:
Este está muito bom e contradiz um pouco o meu comentátrio inicial... a ver vamos ...
Fiquei curioso de ler a BD. Ou me emprestas ou vou procurar...
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