Deixei para aqui o blogue abandonado durante um ano e ele, como o Argos
da Odisseia, esperou pachola mas firmemente que eu voltasse das minhas andanças.
Passaram-se meses, de pouca vontade, durante
os quais outras prioridades, o trabalho, as leituras, a construção de uma casa,
o acabamento de dois filhos, me mantiveram ao largo. Voltei e encontrei-o no
mesmo sítio onde o tinha deixado, olhando para mim com um ar mesclado de
reprovação e boas-vindas. Pareceu-me ouvi-lo ladrar com um tom de “como é?”
enquanto eu me sentava ao teclado.
O mundo, esse, não esperou por mim e coisas notáveis ocorreram entretanto. O
califado continuou o seu labor de destruição dos homens e da memória, cada vez
mais confinado a meia-dúzia de montes de escombros na Síria e no Iraque, mas
não menos perigoso nos peçonhentos que envia para matar na Europa e na Ásia.
Falando em peçonha, o Benfica ganhou mais título, levado pela arbitragem como o
Menino numa estatueta de Santo António. Em França o sistema político da Quinta República
foi pulverizado por uma série de candidatos com o nome acabado em
"on", o que rima com "cons", uma vez que não souberam lidar
com a ascensão de uma fascista de nome acabo em "en". Em Portugal, a
gerigonça parecia estar a fazer a melhor volta do circuito, mas pegou fogo já
na recta da meta, coisa raríssima. E o Brasil continua lindo, já que falta de animação
lá é situação que não há que temer.
Mas o acontecimento magno deste período de jejum foi sem dúvida a eleição de
Donald Trump para o cadeirão do número 1600 da Pennsylvania Avenue em
Washington. A eleição de um novo presidente americano é sempre por si só um
facto da suma importância, com impacto maior ou menor na vida de todos os habitantes
do planeta. Sendo o eleito um garoto, a ocorrência ganha outra magnitude.
Devo dizer que este Trump me enganou bem, o malandreco. Faço parte daquele
grupo de ingénuos que julgava que uma vez que assumisse funções voltaríamos a
uma certa normalidade institucional, após as palhaçadas próprias da campanha à
americana, com tarjas azuis e vermelhas, chapéus de palha e parvoíces
solenemente prometidas. Não era afinal a primeira vez que o presidente
norte-americano estava longe de ser um Einstein. Já acontecera com Truman,
Reagan ou Bush filho e o mundo seguiu o seu caminho. Não vi então grandes
razões para alarme. Por um lado, algumas das suas ideias eleitorais pintadas
como mais escabrosas na imprensa europeia têm na realidade uma longa tradição
na política americana: a renúncia a um papel proselitista na política mundial
já vem do presidente James Monroe, quase um século antes do presidente Woodrow
Wilson a ter preconizado; a rejeição ou pelo menos minimização da interferência
do Estado central na vida dos estados e das pessoas está na origem da própria
União e vive muito no mito individualista do sonho americano; a redução de
impostos como motor da economia vem pelo menos de Reagan; e assim com outras. Por
outro, a América tem um sistema de separação e contenção mútua de poderes que
por regra funcionou bem no passado e que limitaria as intenções mais
descabeladas de Trump. Por fim, as potenciais alternativas para candidato
republicano mostravam-se todavia mais pindéricas, beatos do "Tea
Party", reaccionários até ao tutano como o Ted Cruz ou o Rick Santorum,
paridos no “Bible belt”. Trump pelo menos era um nova-iorquino vivaço casado
com uma europeia. Fiquei por isso relativamente tranquilo quando Trump emergiu
de um mar de sondagens adversas e comentários ridicularizantes com a vitória na
mão. Erro meu (e má fortuna pró pessoal em geral).

Uma vez entronizado, Trump conseguiu exceder as piores expectativas. Criou um
gabinete de milionários, geralmente com óbvios conflitos de interesse entre as
áreas que geriam e negócios próprios e ademais em média burros. Meteu na Casa
Branca e em estruturas do sistema de segurança nacional americano – que de
certo modo é o nosso sistema de segurança também – gente como Steve Bannon, um
nazizeco com problemas de pele, que lhe andou a fornecer algumas ideias de
campanha que a ele lhe faleciam. Assumiu um nepotismo descarado, levando filha
e genro para funções de topo da diplomacia americana, não se percebendo se
formal ou informalmente. E baralhou sempre que pode a função particular de
homem de negócios com a de presidente da república, já que a torre Trump e o
"resort" de Mar-el-lago passaram a ser palco de encontros com
presidentes e embaixadores mundiais: convidados privados a milhares de dólares
por refeição na mesa ao lado do presidente da China e ricaços meio grossos a
tirar "selfies" ao lado do segurança que carrega a mala com os
códigos do arsenal nuclear.
Isto já indiciava chatice da grossa, mas há pior,
estruturalmente pior.
Com Trump chegou ao poder nas democracias ocidentais, de
forma descarada, um relativismo total, em que a verdade e a mentira, o certo e
o errado, o factual e o inventado se diluem numa mistela que é servida à colher
e ao “tweet” às massas, com a maior cara de pau, com o apoio de uns lacaios de
menor ou maior envergadura como a Sara Huckabee Sanders ou o Rupert Murdoch, em
função das necessidades do momento. Seja para negar a verdade científica ou os
dados da economia, o montante de pessoas na tomada de posse ou as estatísticas
de segurança, a incapacidade de implementar políticas ou as próprias palavras
do mês anterior, o “fake news” dá para tudo. Tendo encontrado uma sólida base
eleitoral de alienados dispostos a confiar nele cegamente, basta-lhe “tweetar”
três palavras em maíusculas e pontos de exclamação reclamando contra as “fake
news”para manter a turba amestrada. A porta-voz na Casa Branca e a Fox nas
fibras ópticas encarregam-se de confirmar. Como diria o próprio: “SAD!”
Por outro lado, e falando em tipos para quem a mentira mil
vezes repetida se torna uma verdade, se no caso de Goebbels a loucura era a de
um adulto florentino, no de Trump a loucura é a de um fedelho mal-educado.
Qualquer uma pode pôr o mundo em maus lençóis. Isto é psiquiatria de bancada,
mas parece-me claro que Trump tem óbvias limitações de inteligência: possui um
vocabulário e uma expressão oral pobríssimos, é incapaz de suportar uma
contrariedade sem deslizar para a birra, não planifica em função do futuro e
tem uma frustração mal-resolvida com a popularidade dos outros, nomeadamente a
de Barack Obama, o que não será de espantar tendo Trump sido criado na casa de
Frederick Christ Trump Sr. Isto já vem do pai e passou também para o filho
Trump Jr., o que levanta algumas esperanças aos imbecis: se a cretinice é
hereditária, deve haver um gene responsável e portanto pode ser que um dia a
Ciência descubra a cura.

Como seria de esperar, um personagem destes fez as delícias
de toda a gente. As grandes potências rivais, a Rússia e a China, perceberam
rapidamente que estavam diante de um líder fraco e vão aproveitar para tomar
vantagem na corrida pelo poder global no século XXI. Os tiranos ou aparentados
regionais, da Turquia à Coreia do Norte às Filipinas, para não falar do
Netanyahu, sentiram-se de costas quentes para ir pisando risco após risco. Já na
Europa e “a fortiori” em Portugal, políticos, jornalistas e a bem dizer toda a gente,
das redes sociais às mesas dos restaurantes, entrou numa orgia de bater no
ceguinho, elegendo Trump como saco de pancada de estimação que representava a
boçalidade, a falta de sensibilidade, o recuo da inteligência, a aversão à
verdade, etc., etc., etc.
Ora se o aproveitamento da nabice “trumpiana” por parte de
uma série de dirigentes mundiais é perfeitamente racional, já esta última reacção
de massas é difícil entender, porque Trump, que de facto é uma caricatura, como
qualquer caricatura representa de forma grotesca uma realidade existente e essa
realidade é a nossa realidade. O Trump quer
fazer um muro a conter os emigrantes mexicanos? Pois a generalidade dos países
europeus não tem sido simpática para quem lhes aparece nas fronteiras: ainda esta
semana o civilizadíssimo novo chanceler austríaco afirmou que vai confiscar
dinheiro e telemóveis aos refugiados que batam à porta, e cortar-lhes o direito
ao segredo médico, sem que tenha havido grande alarido mediático. O Trump
insulta os tribunais e ameaça os juízes? Podíamos dissertar muito tempo sobre o
conceito de independência dos poderes que os polacos e húngaros manifestam, ou
já agora os portugueses: não é o polidíssimo João Miguel Tavares, com óculos da
moda e tudo, que se arroga de forma militante o direito de negar a presunção de
inocência, como se esta fosse uma tecnicalidade dos canhanhos e não um
princípio básico da pessoa civilizada? E aquela promessa de Trump que ia limpar
o pântano de Washington, porque estava cheio de políticos? Qual a diferença com
a oposição entre “casta” e “pessoas da rua” que o Podemos vocifera em Espanha e
o Bloco de Esquerda e a generalidade dos jornais papagueiam em Portugal? E já
agora, qual a diferença para a plataforma eleitoral que levou Macron ao Eliseu?
O Trump mente conforme lhe dá jeito e eleva a mentira a ferramenta do poder do
Estado? Não é coisa nova no mundo, mas nunca esteve tão na berra como hoje. Quem
se interessa pela verdade nos dias que correm? Pelo que vejo, muito pouca
gente: o debate factual desapareceu do espaço público, substituído pela monocordia
dos comentadores, pela construção da notícia pelos jornalistas (o recente caso
da Catalunha é emblemático) e pela mentira útil suportada em “likes” do
Facebook, tão de gosto por exemplo do novo fascismo ambientalista.
O Trump? Não me venham com o Trump. O Trump somos nós.