sábado, março 05, 2016

A incongruência tem duas mães



Na semana anterior à que ora finda, a política nacional tremelicou-se toda com um cartaz da lavra do Bloco de Esquerda em que a um Cristo em tonalidades delicodoces se associava a frase “Jesus também tinha dois pais”. Como se a coisa merecesse tanto, a Igreja, a direita política e o reaccionarismo sociológico abespinharam-se. Usaram palavras caras demais para o dinheiro que as circunstâncias traziam no bolso, como sejam blasfémia ou afronta, palavras que se deviam guardar para assuntos efectivamente graves. 

No “As cidades e as serras” há um jantar oferecido por Jacinto no 202 em que um dos comensais se lamenta: “Que pena! Só falta aqui um general e um bispo!”. Sorte a dele estar em Paris, porque por cá nunca faltam bispos. Tivemos logo que levar com a Conferência Episcopal Portuguesa a invocar o respeito pelo próximo como a misteriosa essência primeira da liberdade de expressão, a qual seria assim mais respeitadora do que livre.


Bom! Vamos começar pelo acessório e logo à frente falaremos do essencial. E o acessório é que os bloquistas são uns chatos de uns imbecis, que conseguiram trazer para a política a pior prosápia da adolescência, toda superficialidade e mania. Eu também tive catorze ou quinze anos e lembro-me de nessa altura ler um livro do surrealista francês Benjamin Péret – “Les rouilles encagées” – em que numa fotografia bastante desfocada alguém fazia um manguito a um vulto vestido de escuro que passava. A legenda explicava: o autor, insultando um padre. De trás das minhas borbulhas, achei aquilo o máximo de ousadia intelectual. Fui mostrar ao meu pai que nem perdeu tempo a me explicar a falta de espessura daquela imagem e do meu entusiasmo. Esperou pacientemente que os anos e alguns sucessos na frente hormonal me trouxessem juízo, o que creio veio a acontecer.

Aconteceu comigo, vai acontecendo com os meus filhos, mas nunca mais acontece com o pessoal do Bloco. Chegam os trinta e os quarenta e continuam a achar que as questões são simples e monolaterais, que os outros que não concordam a cem por cento são uns mentecaptos e provavelmente uns perversos lacaios do obscurantismo, e que os temas de moral privada num pais genericamente liberal em que se pode fumar, beber e folgar à vontade sem que ninguém chateie é que são bons para bandeira e “slogan”.

Tal imberbidade intelectual não seria particularmente grave se não estivesse a contagiar completamente a classe média, que em vez de discutir aquilo que interessa (por exemplo quais as funções do Estado que queremos mesmo assegurar e como as podemos financiar com a riqueza que o pais gera ou como podemos fazer para eliminar o clientelismo partidário) passa o tempo no Facebook a achar-se vanguardista com partilhas sobre temas da treta: o fim das touradas, os riscos do “fracking”, os perigos do milho transgénico e outras relevâncias do mesmo quilate. Sobre este contágio conto escrever muito em breve.


Mas, como acima referi, a imaturidade dos bloquistas é um detalhe nesta história. O essencial está em que neste país a liberdade de expressão continua a ser a minha liberdade de expressão com exclusão da liberdade de expressão do outro ou do todo. Há sempre um argumento de direito da maioria para calar uma minoria e há sempre um argumento de respeito pela minoria para silenciar a maioria. Tudo se alvitra, em prejuízo de qualquer coerência, para justificar que o outro lado da questão não tem direito a existir.

E isto vale para aquilo que por cá se chama Direita, como se viu há uma semana com o cartaz do Cristo bi-filho, como para aquilo que por cá se denomina Esquerda, que esta semana fez triste figura por causa de um livro do Henrique Raposo sobre o Alentejo, que mereceu ameaças ao autor, um artigo como seria de esperar asqueroso do Louçã e até um vídeo no Youtube com um idiota qualquer a queimar exemplares do livro, coisa que é sintomática da cultura da Internet e que não incomodou muito os comentadores à canhota. Eu não li o livro do Raposo, nem precisava de ter lido para ter opinião sobre estas opiniões. Bastam-me as palavras proféticas do poeta alemão Heine: onde se queimarem livros, a seguir queimar-se-ão pessoas.

Na minha esfera de conhecimentos, foram muitos os que se apressaram a ir ao Facebook partilhar a sua indignação com o desrespeito do cartaz do Jesus bloquista. Muitos deles, senão todos, aquando do ataque ao Charlie Hebdo, tinham acorrido ao mesmo foro para se afirmarem solidários com o jornal, enchendo as páginas de tarjas negras “Je suis Charlie”. Ora o humor do Bloco é copinho de leite comparado com o ácido clorídrico da sátira do Charlie Hebdo. Onde ficamos? Somos Charlie ou não somos Charlie? Quando é com a moirama pode-se malhar até ao tutano mas com a figura de Cristo nem um toquezinho se aceita? Um pouco curto para conceito de liberdade, parece-me.


O problema é de fundo. O respeito pela liberdade é um trabalho de sapa, que dura séculos. E nisto não temos séculos, nem temos trabalhado muito. Gostamos de ter liberdade para falar, mas não aceitamos a obrigatoriedade de ouvir. O regime democrático criou na lei os direitos mas ainda não conseguiu infundir nas pessoas a cultura da liberdade, que é uma cultura de debate, de confronto de ideias, de respeito pela liberdade do próximo como parte integrante e indissociável da nossa liberdade, de valorização da existência de uma pluralidade de conceitos como essência de uma vida livre. Mas infelizmente não é isso que ensinamos nas escolas, nem o que ouvimos nas ruas ou nas televisões. Convençamo-nos disto: como povo, valorizamos pouco a liberdade de expressão e confundimo-la demasiadas vezes com o direito a dizer aquilo que nos apetece. Ora são coisas diferentes.

A liberdade de expressão não é o monocromática nem isotrópica. Não é a liberdade de impormos aos outros a cor com que se pinta a sala de estar colectiva e a música que nela se ouve. É a consciência de que ao entrar nessa sala seremos assaltados por uma multiplicidade de imagens e de sons, que poderemos sentar-nos numa cadeira a apreciar aqueles que escolhermos e que estaremos ao lado de outras pessoas que terão feito escolhas diferentes. E é sermos felizes assim e acharmos que assim é que deve ser.

Só que em Portugal estamos longe disto. Por cá, a liberdade de expressão é um chavão que serve para tudo e qualquer coisa, decorando uma incongruência de discurso que tem sempre duas mães: a Esquerda e a Direita.

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