1) O projecto com o cê lá no meio
Dias atrás, fui palestrar num evento da empresa em que
trabalho. Na véspera, recebi um telefonema da menina da Direcção de
Comunicação, avisando como quem chama a atenção para um botão desabotoado que o
“Power Point” que eu enviara não respeitava o acordo ortográfico. Ainda se
propôs poupar-me trabalho:
- Quer que eu corrija?
- Não, deixe ficar assim que está bem - respondi, usando a
autoridade que ainda vou tendo na companhia para incumprir a norma que prevê a
adopção (com pê) das regras do acordo na documentação da empresa.
Já faz anos, escrevi aqui no blogue um abardinanço à volta
deste tema do acordo ortográfico. Na altura não tinha ideias claras sobre o
assunto, nem partido tomado entre ilustres que defendiam e ilustres que
denegriam. Hoje, passados estes anos de exame, estou convencido que se perdeu
uma excelente ocasião para se estar quieto e que a adopção unilateral do acordo
por Portugal é uma teimosia típica e algo saloia de um país em que se preza
pouco o reconhecimento dos erros.
Por isso por mim os actos e as actas e os factos e os projectos e os objectos e até os dejectos vão continuar lá com o cêzito da praxe, o mesmo cêzito ínfimo mas presente que ouvido que me oiça atento poderá ouvir quando falo. E manterei aquele micro-segundo de respiração que o hífen me proporciona.
Pelos mesmos dias da minha palestra e da conversa com a
menina da comunicação que me queria normalizar a apresentação, recruzei-me no
som do carro com as “Águas de Março”, do Tom Jobim e pela Elis Regina. As águas
entraram-me pelos ouvidos e ficaram lá uns dias a rolar, sem que as conseguisse
tirar cá para fora, que pensei ter que ir a um otorrino. De vez em quando lá
estava eu, murmurando: é pau, é pedra. Na letra dessa canção aparece por acaso
a palavra projecto (É o projecto da casa, é o corpo na cama/É o carro enguiçado,
é a lama, é a lama). Tentei por isso perceber como é que a Elis a pronunciava,
se com cê se sem ele. Ouvi no “Youtube” várias versões e aventuro-me a concluir
que está lá. Quase sumido como deve ser, ainda para mais perdido no doce da
pronúncia, mas é o projecto da casa e não o projeto da casa.
Não me espanta que assim seja: eu, Elis Regina e António
Carlos Jobim falamos a mesma língua, que se chama português e que é árvore de
mil ramos. Criou-se por cá uma ideia peregrina de que o acordo é coisa de
brasileiros, que curam menos da nossa língua, o que está totalmente errado. O
acordo tanto corta o esquerdo a Pessoa como a Drummond.
E isto é ensinamento que trago da casa paterna. Portugueses
e brasileiros acotovelavam-se na mesma estante, só que os portugueses vinham do
encadernador vestidos de azul e os brasileiros de verde. Lá estavam de várias
épocas Machado de Assis, Guimarães Rosa, Erico Veríssimo, Ubaldo Ribeiro ou
Graciliano Ramos, de quem me recordo em pequeno o meu pai me pôr o “Vidas
Secas” nas mãos, para que eu sentisse – dizia ele – um dos melhores livros da nossa
literatura. Notem o nossa. E todo o Jorge Amado, que tanto apreciava, do
militante comunista do “Cavaleiro da esperança” à lágrima dos “Capitães da
areia” ao Eça tropical de “Gabriela, cravo e canela”, muito antes da novela o
popularizar por cá.
Por isso não há nesta história eles e nós, há nós e nós.
Tanto é nosso o baiano Amado como o lisboeta Cardoso Pires, não menos que são
nossos o açoriano Nemésio e o beirão Aquilino, com escreveres tão distantes
entre eles. O que não é nosso é o acordo, que estropeia esta variedade. O que
me chateia profundamente na natureza do acordo ortográfico, para além da
prosápia, é a ideia de uniformizar o que só pode ser rico na riqueza e nunca no
estereótipo.
2) O fecho dos nossos Verões
Jobim escreveu “Águas de Março” com quarenta e cinco anos, num
período de muitos problemas pessoais: perseguição política, problemas de saúde,
alguma redução de notoriedade, o que o levava a sentir que estaria acabado. Sua
irmã Helena Jobim contaria mais tarde que nessa altura ele temia “encerrar a
carreira aos 80 anos, cantando Garota de Ipanema num circo do interior e sendo
vaiado”. “Águas de Março” começa por isso com um muro na nossa frente: É pau, é
pedra, é o fim do caminho/É um resto de toco, é um pouco sozinho.
À medida que a canção começa a fluir, os elementos pessimistas
(“É a noite, é a morte”; “Tombo da ribanceira”;”É o fim da ladeira”;”É o fim da picada”) alternam com as pequenas
coisas que fazem a grandeza da vida (“É a vida, é o sol”; “É a luz da manhã, é
o tijolo chegando”, “É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão”; “É o queira
ou não queira” – esta última uma bonita metáfora da liberdade). O poema vai
escorrendo e o ritmo saltitante e a magia das palavras vão fazendo das suas. “Águas
de Março” transforma-se numa alegoria da vida, singela, refrescante e positiva.
A vida é feita de coisas boas e coisas más: sem uma dessas metades, a vida não seria
vida e não sentiríamos a completude que Tom Jobim nos instila. E a vida mesmo
no início do Outono é também esperança, pelo menos enquanto houver amor, como
conclui Jobim: são as águas de Março, fechando o Verão/é a promessa de vida no
teu coração.
Tal como a Jobim, também sobre mim caem as águas de Março.
Ando pela mesma idade, um pouco mais: estou a chegar ao fim do primeiro quarto
de hora da segunda parte, aquela fase do encontro em que ainda há jogo para jogar
mas em que se começa a pensar no apito final, gerindo o resultado, o esforço e
o tempo.
Em minha casa, o corredor tem agora duas portas entreabertas,
permitindo ver as camas feitas que em recato esperam outros mais sonoros dias
como aqueles que troam na minha memória, motivando uma lágrima ao canto do
olho. O meu filho mais velho está em Manila, a “fazer voluntariado”, como se
diz agora, ensinando em orfanatos o que já aprendeu a quem teve muito menos
sorte do que ele. O mais novo empina em Bruxelas químicas e matemáticas para os
exames que se aproximam. Estão nas suas vidas e eu devia ter-me por feliz com
isso e até me tenho. Desde o dia em que me vieram mostrar o primeiro, atabafado
em mantas, numa porta lateral da Alfredo da Costa, que o que desejei para eles
era que fossem pessoas de bem e homens livres e com mundo nos olhos. Não devia
portanto protestar por estar aparentemente a conseguir. Mas há momentos em que
sinto, como Jobim, um resto de toco e um pouco sozinho.
Que fazer então? Como sugere a canção, aceitar que o Verão
também tem o seu fim e beber das águas de Março, procurando a promessa de vida
no coração dela, que me espera na sala para percorrer a dois um colorido Outono
e um suave Inverno.
3) A peroba do campo e o nó da madeira
“Águas de Março” foi escrito no sítio – no sentido
brasileiro – que Jobim possuía em Poço Fundo, nas serranias a norte do Rio de
Janeiro. Essa vizinhança do campo permeia quase todos os versos, desde o sapo,
a cobra e a rã à febre terçã que molesta homens de nome simples como João e
José, que imaginamos trabalhando a roça encimados por chapéus redondos de palha,
ou construindo uma casa com o tijolo que chega, lançando a viga que vence o vão
e permite a festa da cumeeira.
A natureza que envolvia Jobim enquanto este escrevia o seu
maravilhoso português num papel de embrulho de pão não é selvagem nem deserta.
É uma natureza que vive simbioticamente com o Homem e que sem este não se
entende nem se justifica. Isto está traduzido numa das mais belas linhas da canção:
É peroba do campo, é o nó da madeira.
A peroba é uma árvore de algum porte cuja madeira é muito
usada no Brasil para carpintaria. Neste
verso coincidem a árvore silvestre, alta dos seus vinte e tal metros e a árvore
cortada em tábua, permitindo ver os nós da madeira, para uso das pessoas.
Coincidem a natureza livre e a utilidade que os homens dela tiram. Esta é uma
visão algo diferente da perspectiva hoje dominante entre os chamados ambientalistas,
que muitas vezes prescrevem aos outros como valor absoluto a natureza no seu
estado selvagem, isto enquanto abrem uma embalagem plástica de brócolos que
foram comprar ao volante do seu carro.
A palavra ecologia tem raiz no grego “oikos” que significa “casa”
e é pois o estudo da nossa casa comum. Houve tempos, nos anos setenta e oitenta,
em que a ecologia foi uma ciência que usava as ferramentas da matemática, da
física e da química para investigar problemas e melhorar processos e tornar
viável a existência conjunta de alguns biliões de seres humanos. Em paralelo, a
preocupação pela sustentabilidade do nosso planeta ganhou notoriedade pública e
política, o que foi bom. Percebemos agora todos, ou quase, que a água, o ar, o
petróleo, os minérios ou os campos aráveis são bens escassos que há que gerir. Dinheiro,
conhecimento e trabalho foram investidos para evitar cenários catastróficos e conseguimos
múltiplos avanços: poluímos muito menos o ar e a água, reciclamos, gerimos
melhor os recursos, gastamos menos energia para fazer mais, produzimo-la de
modo mais renovável. No fundo, introduzimos nas nossas vidas e nas nossas
economias o conceito de ciclo. Apesar de haver ainda imenso por fazer, melhorámos.
Podemos dizer que em trinta ou quarenta anos passámos a conhecer um pouco melhor
a nossa casa e como tratar dela. Quem vive nesta casa são pessoas e a ecologia
tinha no seu centro as pessoas e o seu saber e por isso foi um razoável sucesso.
Hoje, pelo que leio e oiço, temo que tenhamos passado do
tempo da ecologia, uma ciência, para o do ambientalismo, uma ideologia e um
negócio. Vendo como tantas vezes os ambientalistas e o jornalismo que patetamente
os idolatra fogem ao debate dos factos para papaguear e impor ideias feitas, muitas
vezes de um absolutismo em que não há espaço para os homens, nem mesmo para
aqueles que durante gerações coexistiram com a natureza, aí já não reconheço a
ecologia e o que sobra é só política e política de fraca qualidade. Por vezes
por mero sectarismo, e dá-me pena. Outras, por manifesto interesse particular,
e dá-me raiva.
Em “Águas de Março”, há o seguinte par de versos: Passarinho
na mão, pedra de atiradeira/ É uma ave no céu, é uma ave no chão. Tal como na peroba do campo e no nó da
madeira, estabelece o paralelo entre a natureza livre e o seu uso pelo homem,
neste caso com uma caça artesanal. O ecologista perceberia estes versos, embora
preocupando-se que a pedrada ao passarinho não se tornasse desequilibrada e
levasse ao seu desaparecimento. O ambientalista acharia estes versos uma
barbárie e lançaria uma campanha no Facebook que receberia milhares de polegarzinhos
para cima, com o objectivo de censurar o texto de “Águas de Março”, propondo no
seu lugar uma versão sanitizada que não chocasse as modernas sensibilidades.
Estou a exagerar, eu sei. O problema é que infelizmente não estou a exagerar muito.
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