sábado, junho 13, 2015

Três mergulhos nas águas de Março


1) O projecto com o cê lá no meio


Dias atrás, fui palestrar num evento da empresa em que trabalho. Na véspera, recebi um telefonema da menina da Direcção de Comunicação, avisando como quem chama a atenção para um botão desabotoado que o “Power Point” que eu enviara não respeitava o acordo ortográfico. Ainda se propôs poupar-me trabalho:

- Quer que eu corrija?
- Não, deixe ficar assim que está bem - respondi, usando a autoridade que ainda vou tendo na companhia para incumprir a norma que prevê a adopção (com pê) das regras do acordo na documentação da empresa.

Já faz anos, escrevi aqui no blogue um abardinanço à volta deste tema do acordo ortográfico. Na altura não tinha ideias claras sobre o assunto, nem partido tomado entre ilustres que defendiam e ilustres que denegriam. Hoje, passados estes anos de exame, estou convencido que se perdeu uma excelente ocasião para se estar quieto e que a adopção unilateral do acordo por Portugal é uma teimosia típica e algo saloia de um país em que se preza pouco o reconhecimento dos erros.

Por isso por mim os actos e as actas e os factos e os projectos e os objectos e até os dejectos vão continuar lá com o cêzito da praxe, o mesmo cêzito ínfimo mas presente que ouvido que me oiça atento poderá ouvir quando falo. E manterei aquele micro-segundo de respiração que o hífen me proporciona.

Pelos mesmos dias da minha palestra e da conversa com a menina da comunicação que me queria normalizar a apresentação, recruzei-me no som do carro com as “Águas de Março”, do Tom Jobim e pela Elis Regina. As águas entraram-me pelos ouvidos e ficaram lá uns dias a rolar, sem que as conseguisse tirar cá para fora, que pensei ter que ir a um otorrino. De vez em quando lá estava eu, murmurando: é pau, é pedra. Na letra dessa canção aparece por acaso a palavra projecto (É o projecto da casa, é o corpo na cama/É o carro enguiçado, é a lama, é a lama). Tentei por isso perceber como é que a Elis a pronunciava, se com cê se sem ele. Ouvi no “Youtube” várias versões e aventuro-me a concluir que está lá. Quase sumido como deve ser, ainda para mais perdido no doce da pronúncia, mas é o projecto da casa e não o projeto da casa.

Não me espanta que assim seja: eu, Elis Regina e António Carlos Jobim falamos a mesma língua, que se chama português e que é árvore de mil ramos. Criou-se por cá uma ideia peregrina de que o acordo é coisa de brasileiros, que curam menos da nossa língua, o que está totalmente errado. O acordo tanto corta o esquerdo a Pessoa como a Drummond. 

E isto é ensinamento que trago da casa paterna. Portugueses e brasileiros acotovelavam-se na mesma estante, só que os portugueses vinham do encadernador vestidos de azul e os brasileiros de verde. Lá estavam de várias épocas Machado de Assis, Guimarães Rosa, Erico Veríssimo, Ubaldo Ribeiro ou Graciliano Ramos, de quem me recordo em pequeno o meu pai me pôr o “Vidas Secas” nas mãos, para que eu sentisse – dizia ele – um dos melhores livros da nossa literatura. Notem o nossa. E todo o Jorge Amado, que tanto apreciava, do militante comunista do “Cavaleiro da esperança” à lágrima dos “Capitães da areia” ao Eça tropical de “Gabriela, cravo e canela”, muito antes da novela o popularizar por cá.

Por isso não há nesta história eles e nós, há nós e nós. Tanto é nosso o baiano Amado como o lisboeta Cardoso Pires, não menos que são nossos o açoriano Nemésio e o beirão Aquilino, com escreveres tão distantes entre eles. O que não é nosso é o acordo, que estropeia esta variedade. O que me chateia profundamente na natureza do acordo ortográfico, para além da prosápia, é a ideia de uniformizar o que só pode ser rico na riqueza e nunca no estereótipo.





2) O fecho dos nossos Verões


Jobim escreveu “Águas de Março” com quarenta e cinco anos, num período de muitos problemas pessoais: perseguição política, problemas de saúde, alguma redução de notoriedade, o que o levava a sentir que estaria acabado. Sua irmã Helena Jobim contaria mais tarde que nessa altura ele temia “encerrar a carreira aos 80 anos, cantando Garota de Ipanema num circo do interior e sendo vaiado”. “Águas de Março” começa por isso com um muro na nossa frente: É pau, é pedra, é o fim do caminho/É um resto de toco, é um pouco sozinho.

À medida que a canção começa a fluir, os elementos pessimistas (“É a noite, é a morte”; “Tombo da ribanceira”;”É o fim da ladeira”;”É o  fim da picada”) alternam com as pequenas coisas que fazem a grandeza da vida (“É a vida, é o sol”; “É a luz da manhã, é o tijolo chegando”, “É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão”; “É o queira ou não queira” – esta última uma bonita metáfora da liberdade). O poema vai escorrendo e o ritmo saltitante e a magia das palavras vão fazendo das suas. “Águas de Março” transforma-se numa alegoria da vida, singela, refrescante e positiva. A vida é feita de coisas boas e coisas más: sem uma dessas metades, a vida não seria vida e não sentiríamos a completude que Tom Jobim nos instila. E a vida mesmo no início do Outono é também esperança, pelo menos enquanto houver amor, como conclui Jobim: são as águas de Março, fechando o Verão/é a promessa de vida no teu coração.

Tal como a Jobim, também sobre mim caem as águas de Março. Ando pela mesma idade, um pouco mais: estou a chegar ao fim do primeiro quarto de hora da segunda parte, aquela fase do encontro em que ainda há jogo para jogar mas em que se começa a pensar no apito final, gerindo o resultado, o esforço e o tempo.

Em minha casa, o corredor tem agora duas portas entreabertas, permitindo ver as camas feitas que em recato esperam outros mais sonoros dias como aqueles que troam na minha memória, motivando uma lágrima ao canto do olho. O meu filho mais velho está em Manila, a “fazer voluntariado”, como se diz agora, ensinando em orfanatos o que já aprendeu a quem teve muito menos sorte do que ele. O mais novo empina em Bruxelas químicas e matemáticas para os exames que se aproximam. Estão nas suas vidas e eu devia ter-me por feliz com isso e até me tenho. Desde o dia em que me vieram mostrar o primeiro, atabafado em mantas, numa porta lateral da Alfredo da Costa, que o que desejei para eles era que fossem pessoas de bem e homens livres e com mundo nos olhos. Não devia portanto protestar por estar aparentemente a conseguir. Mas há momentos em que sinto, como Jobim, um resto de toco e um pouco sozinho.

Que fazer então? Como sugere a canção, aceitar que o Verão também tem o seu fim e beber das águas de Março, procurando a promessa de vida no coração dela, que me espera na sala para percorrer a dois um colorido Outono e um suave Inverno.


3) A peroba do campo e o nó da madeira

“Águas de Março” foi escrito no sítio – no sentido brasileiro – que Jobim possuía em Poço Fundo, nas serranias a norte do Rio de Janeiro. Essa vizinhança do campo permeia quase todos os versos, desde o sapo, a cobra e a rã à febre terçã que molesta homens de nome simples como João e José, que imaginamos trabalhando a roça encimados por chapéus redondos de palha, ou construindo uma casa com o tijolo que chega, lançando a viga que vence o vão e permite a festa da cumeeira.

A natureza que envolvia Jobim enquanto este escrevia o seu maravilhoso português num papel de embrulho de pão não é selvagem nem deserta. É uma natureza que vive simbioticamente com o Homem e que sem este não se entende nem se justifica. Isto está traduzido numa das mais belas linhas da canção: É peroba do campo, é o nó da madeira.

A peroba é uma árvore de algum porte cuja madeira é muito usada no Brasil para  carpintaria. Neste verso coincidem a árvore silvestre, alta dos seus vinte e tal metros e a árvore cortada em tábua, permitindo ver os nós da madeira, para uso das pessoas. Coincidem a natureza livre e a utilidade que os homens dela tiram. Esta é uma visão algo diferente da perspectiva hoje dominante entre os chamados ambientalistas, que muitas vezes prescrevem aos outros como valor absoluto a natureza no seu estado selvagem, isto enquanto abrem uma embalagem plástica de brócolos que foram comprar ao volante do seu carro.

A palavra ecologia tem raiz no grego “oikos” que significa “casa” e é pois o estudo da nossa casa comum. Houve tempos, nos anos setenta e oitenta, em que a ecologia foi uma ciência que usava as ferramentas da matemática, da física e da química para investigar problemas e melhorar processos e tornar viável a existência conjunta de alguns biliões de seres humanos. Em paralelo, a preocupação pela sustentabilidade do nosso planeta ganhou notoriedade pública e política, o que foi bom. Percebemos agora todos, ou quase, que a água, o ar, o petróleo, os minérios ou os campos aráveis são bens escassos que há que gerir. Dinheiro, conhecimento e trabalho foram investidos para evitar cenários catastróficos e conseguimos múltiplos avanços: poluímos muito menos o ar e a água, reciclamos, gerimos melhor os recursos, gastamos menos energia para fazer mais, produzimo-la de modo mais renovável. No fundo, introduzimos nas nossas vidas e nas nossas economias o conceito de ciclo. Apesar de haver ainda imenso por fazer, melhorámos. Podemos dizer que em trinta ou quarenta anos passámos a conhecer um pouco melhor a nossa casa e como tratar dela. Quem vive nesta casa são pessoas e a ecologia tinha no seu centro as pessoas e o seu saber e por isso foi um razoável sucesso.

Hoje, pelo que leio e oiço, temo que tenhamos passado do tempo da ecologia, uma ciência, para o do ambientalismo, uma ideologia e um negócio. Vendo como tantas vezes os ambientalistas e o jornalismo que patetamente os idolatra fogem ao debate dos factos para papaguear e impor ideias feitas, muitas vezes de um absolutismo em que não há espaço para os homens, nem mesmo para aqueles que durante gerações coexistiram com a natureza, aí já não reconheço a ecologia e o que sobra é só política e política de fraca qualidade. Por vezes por mero sectarismo, e dá-me pena. Outras, por manifesto interesse particular, e dá-me raiva.

Em “Águas de Março”, há o seguinte par de versos: Passarinho na mão, pedra de atiradeira/ É uma ave no céu, é uma ave no chão. Tal como na peroba do campo e no nó da madeira, estabelece o paralelo entre a natureza livre e o seu uso pelo homem, neste caso com uma caça artesanal. O ecologista perceberia estes versos, embora preocupando-se que a pedrada ao passarinho não se tornasse desequilibrada e levasse ao seu desaparecimento. O ambientalista acharia estes versos uma barbárie e lançaria uma campanha no Facebook que receberia milhares de polegarzinhos para cima, com o objectivo de censurar o texto de “Águas de Março”, propondo no seu lugar uma versão sanitizada que não chocasse as modernas sensibilidades. Estou a exagerar, eu sei. O problema é que infelizmente não estou a exagerar muito.

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