Este texto podia começar assim: “Querido rei, era uma vez um
país... Um país onde grassava uma terrível epidemia que dizimava a população
outrora feliz. Os mais velhos caiam vergados à peste, os mais novos fugiam para
outros reinos para não sofrer o mesmo destino, só os nobres, resguardados nos
seus palácios, pareciam ao abrigo. Incrédulos com a amplitude da maleita, os
habitantes não percebiam: uns opinavam que a doença viera de fora, que os
atingira como a muitos outros reinos e que espiões e esbirros traidores ao
serviço do Imperador haviam envenenado a água com peçonha para melhor calcarem os
povos do império; outros insistiam que não, que a praga sempre cá estivera e
que fora a vida dissoluta do povo que diminuíra as defesas das pessoas
permitindo ao micróbio corroer os corpos e exasperar as mentes. O mal tomou
tais proporções que vieram médicos enviados pelo Imperador, que receitaram
remédios amargos e duras dietas. A gente queixava-se da doença e queixava-se da
cura. Não havia consenso. Um terço da população clamava contra o doutor estrangeiro,
o estranho que trouxera o vírus. Outro terço insultava esse terço, que, dizia,
vivia sem emenda uma vida que só podia dar naquilo. E o outro terço olhava sem
saber que dizer para os outros dois terços vociferando um contra o outro.
Certo dia, cartazes pelas ruas e arautos nas praças
anunciaram um espectáculo inovador. Um artista magnífico vinha cantar as dores
do povo. Trazia rasgados elogios dos sítios por onde passara. Pela sua poesia,
as pessoas olhariam finalmente para a sua realidade e compreenderiam. Nos
albergues e tabernas, os entendidos explicavam aos basbaques a melodia da voz,
a harmonia da rima e a profundidade da metáfora. Caída a noite, o principal
largo da capital encheu-se para ouvir o cantor. O povo ouviu, ouviu aplaudir e
aplaudiu também, ao princípio timidamente, depois arrebatado. No final, todos
comentavam o grande sucesso. Só um homem destoava do consenso geral e não
percebia tanta unanimidade. Na sua opinião, a voz era pífia, a rima coxa e a
metáfora inexistente, substituída que estava por umas piadolas ao pior gosto.
Esse homem usava pala, porque perdera um olho numa batalha. Era o rei do
atormentado país.”
Esse homem podia ser eu, apesar de só ser rei de um
apartamento em Campolide. A verdade é que podia ter sido quase a obrigação
patriótica a levar-me a entrar pela primeira vez no cinema Ideal, na rua do
Loreto, para ver o episódio um da trilogia “As 1001 noites”, do realizador
português Miguel Gomes. A tripla fita tem recebido prémios e honrarias diversas
no circuito internacional de festivais. A crítica nacional e estrangeira não
poupa na loa, encomiasta e até extática: ele é Economist, ele é Cahiers du Cinéma,
mais jornais americanos, a francesada do costume, toda a roda enfim de cadernos
de fim-de-semana da imprensa que por cá se diz e tem por séria. Como corolário desta unanimidade acabou
nomeada para representar Portugal nos Óscares.

Mas não foi este forrobodó elegíaco que me levou naquele
domingo, patroa pelo braço, até à sala do Chiado. Sei do que a casa gasta: há
suplementos culturais para encher e vaidades para cutucar, pelo que ligo pouco e
sempre muito prudentemente ao que se diz. Determinante na minha decisão de ida
foi o facto de uma amiga muito estimada ter trabalhado no filme. O nome de uma
amiga nossa no elenco que desliza a grande velocidade enquanto os espectadores
abandonam a sala cria uma relação de proximidade com o objecto, feita de ónus
afectivo e cerimónia. Ficamos compelidos a não faltar tal como não faltamos a
aniversários, casamentos e baptizados mesmo que a cabeça nos doa ou seja para
lá de Foz Coa. À toa destes sentimentos, lá fui.
Fui e saí com um problema. Dado o trabalho que a minha amiga
empenhou na produção do filme, dado o carinho que sei que nutre pelo resultado
final, como vou poder dizer o que penso sem causar excessivo melindre? Talvez
com alguma franqueza: “olha minha querida I, a culpa não será tua mas o filme é
bastante mau, pelo menos o primeiro da trilogia que os outros ainda não vi”. De
facto aquilo é fraquinho e achei um dos episódios, intitulado “Homens de pau
feito”, do mais medíocre que vi em cinema desde uma cena no “Armagedeão” em que
um Bruce Willis todo esgatanhado trava, com esgares faciais, patriotismo
peganhento e força de braços, um meteorito grandalhão que ameaçava pulverizar a
Terra. Algo do género.
“1001 noites” anuncia-se como um olhar sobre o Portugal
intervencionado pela “troika”. A estrutura é de uma sucessão de episódios, em
teoria contados pela Xerazade de umas quaisquer mil-e-uma-noites, referindo-se
a um certo país que é o nosso. Na crítica tem-se feito um festival à volta
deste recurso narrativo como se fosse a descoberta da perspectiva, o que só não
me surpreende porque tal como o próprio filme testemunha em Portugal a
tendência para o foguetório é grande. O recurso é este como podia ser outro
qualquer, os contos de Grimm ou as fábulas de La Fontaine, e está lá para
permitir um toque às vezes fantasioso, às vezes surrealista aos episódios, mas
a oscilação entre estes registos e o realismo documental pareceu-me francamente
desequilibrada. Verdade que quem sou eu para estar aqui com
estes papos, mas também não é por aqui que o filme mais afocinha.
O primeiro episódio narrado pela nossa Xerazade alfacinha, o
tal “Homens de pau feito”, conta-nos o encontro numa tasca manhosa entre o
pessoal da “troika” e o lado português, representado por um primeiro-ministro e
uma ministra das Finanças engomadinhos e um sindicalista que passa o episódio a
dizer palavrões. Parece-me que o realizador nos oferece este palavreado para
por um lado tipificar a personagem (genuína, “do povo”, diz palavrões) e por
outro para criar um registo cómico (riam-se todos que ele disse “porra”). Só
que..
(Parêntese 1: O palavrão
Mais ou menos de duzentos em duzentos anos há um terramoto
de grande dimensão em Lisboa. E mais ou menos de duzentos em duzentos anos,
acontecimento tão telúrico como o embate de placas tectónicas, nasce em
Portugal um autor de envergadura capaz de utilizar o palavrão com graça.Tivemos
Gil Vicente, dois séculos, Bocage, dois séculos, Manuel João Vieira agora e
possivelmente mais dois séculos escoarão até que venha o próximo, porque a arte
do palavrão é das mais difíceis. Acompanhando estes generais, tivemos alguns
bons lugar-tenentes, como Lobo de Carvalho, o abade de Jazente, o recentemente
falecido Vilhena e o anónimo autor de "O meu pipi". E ainda o meu prezado
amigo VM, a quem qualquer palavra acabada em alho dirigida ao parceiro de jogo
sai daquele vozeirão com as mesmas subtis graça e pertinência de um remoque de Churchill.
Como a arte do palavrão é difícil, o uso do palavrão em arte difícil é, e
portanto o autor prudente não se aventura. Eça tem, que eu me lembre, um
palavrão em toda a sua obra, uma "sorte de cabrão" desabafada em
"Os Maias". A melhor literatura vive desafogadamente sem ele: não
quero garantir, mas não me recordo de qualquer alarvidade em Tolstoi, Proust,
Borges, Mann, Camus, só para citar alguns que jogam no primeiro time. Mesmo nos
mais contemporâneos, prefiro por cá a continência de um Cardoso Pires ao
desbragamento de um Lobo Antunes. Um romance é um quadro, não uma fotografia de
repórter. Não precisa de ter nele toda a bruta realidade, a menos que sirva o
propósito e se saiba geri-la. Para dar o tom ambiente, o mais das vezes um
plebeísmo chega.
Quando ouvi o personagem do sindicalista soltar o seu chorrilho de sessenta
segundos de palavras com hífen e referências à mãe perguntei a mim próprio que
m... Que coisa seria aquela. Duas ou três velhotas na fila de trás soltaram um
risinho nervoso. Tinham idade para ser daquelas gerações ancestrais, de tempos
mais cerrados, quando qualquer historieta que metesse puns passava por boa anedota.
Não percebi se se tratava de uma tentativa de recurso humorístico ou se a
narrativa pretendia fazer-nos notar que aquele senhor pertencia ao bom povinho.
Dada a visão de esguelha que o filme tem sobre o povo, até podiam ser as duas.)
Fechado este parêntese, regressemos ao país intervencionado
pela “troika”, visto através da óptica de Miguel Gomes, e ao tal primeiro
episódio.
A intervenção da “troika” será o acontecimento mais
traumático da nossa história colectiva no presente regime. Constituiu uma perda
de facto da nossa independência, um anti-clímax para o ego nacional após a
bebedeira do euro barato e do crédito fácil, da Expo 98 e do Euro 2004, um
desbaratar cruel e infame da nossa melhor juventude, um regresso à menoridade
europeia depois de mais uma vez nos termos julgado no centro do mundo. E, ao
mesmo tempo que parece um evento singular, sente-se como uma recorrência, a
mera consequência de uma alarvidade que nos está colectivamente no sangue desde
o tempo da ingovernabilidade dos lusitanos e que regressa como um sismo, a cada
dez ou cinquenta anos, para abalar o chão debaixo dos nossos pés.
Que reflexão nos traz o realizador Miguel Gomes sobre isto?
Que aprendemos sobre o contexto, as causas, as culpas, as lições de um dos mais
dramáticos acontecimentos da nossa história recente? Que faceta de um assunto
tão complexo escolhe para nos mostrar? Não vos vou contar detalhes para não vos
estragar o filme (embora não haja muito para estragar), mas sempre vos adianto
que o tal episódio dos “homens de pau feito” sugere que o cerne do nosso
problema está na falta de robustez sexual dos nossos governantes e dos homens
da “troika”, estes últimos com a carga acrescida de terem sido gozados na
escola quando eram pequenos. Portanto a magna tese política é esta, de que
somos vítimas de uns frustrados com carências de rigidez.
(Parêntese 2: Só para respirar um bocadinho, para acalmar)
É só a mim que isto parece pouco? Não há mais nada para
dizer? Falta de pila? A sério? Houve aqui alguma vaga tentativa de reflexão
política ou filosófica ou ética ou social ou económica ou qualquer coisa? Ou é
meramente o grau zero de tudo, a imagem acabada de uma preguiça em fazer bem
que tem a sua parte de culpa em termos chegado a esta situação? Se alguma
metáfora há neste episódio é justamente essa, e involuntária: a falta de
empenho do cineasta em puxar pela cabeça e fazer bem feito espelha aquela falta
de seriedade política que nos levou a este assado.
Já que estamos falando de cinema, compare-se com a
policromia com que os norte-americanos abordaram um acontecimento traumático
deles: a guerra do Vietname. Vejamos o que nos trouxeram John Wayne, Elia
Kazan, Michael Cimino, Francis Ford Coppola, Milos Forman, Oliver Stone,
Stanley Kubrick ou Barry Levinson, entre dezenas de outros. Filmaram várias
perspectivas sobre o tema: a do patriota, a do soldado eternamente marcado na
mente ou no corpo, a do jovem que não quer ir, a do homem totalmente lúcido que
percebe o absurdo e a do homem que desce aos infernos para se encontrar com ele
e cumprir esse absurdo, a do companheiro de armas, a política, até a lúdica.
Nenhum deles se reduziu ao mínimo, todos procuraram trazer algo e olhar mais
além. Claro que estes nomes tiveram grandes meios, mas não foi por aí porque um
grande filme nunca depende de meios, depende da inteligência que se acomete.
A título de contra-exemplo, existe felizmente muita boa obra
em Portugal sobre a “troika”, só que escrita antes da “troika” cá ter vindo. Eça
tem um curto e belíssimo conto chamado “A catástrofe” que relata o ambiente
numa Lisboa submetida a uma imaginária invasão externa. Nesse conto, o narrador
desenvolve os sentimentos que lhe vêm ao olhar da sua janela no Largo do
Pelourinho para uma sentinela estrangeira que guarda o Arsenal. No final do
conto, diz-nos esse narrador:
“Por mim, todos os dias levo os meus filhos à janela,
tomo-os sobre os joelhos e mostro-lhes a sentinela! Mostro-lha, passando
devagar, de guarita a guarita, na sombra que faz o edifício ao cálido sol de
Julho e embebo-os do horror, do ódio daquele soldado estrangeiro...
Conto-lhes então os detalhes da invasão, as desgraças, os
episódios temerosos, os capítulos sanguinolentos da sinistra história... Depois
aponto-lhes o futuro – e faço-lhes desejar ardentemente o dia em que, desta
janela, vejam , sobre a terra de Portugal, passear outra vez uma sentinela
portuguesa! E para isso, mostro-lhes o caminho seguro – aquele que nós devíamos
ter seguido: trabalhar, crer, e sendo pequenos pelo território ser grandes pela
actividade, pela liberdade, pela ciência, pela coragem, pela força de alma... E
acostumo-os a amar a Pátria, em vez de a desprezarem, como nós fizéramos
outrora.”
Não será certamente a única, nem será sequer a minha, mas é
pelo menos uma perspectiva, e com a riqueza que falta às larachas sobre molezas
inoportunas.
(Parêntese 3 – O frenesim
Independentemente de perceber as razões comerciais e de
satisfação dos egos que concorrem no frenesim mediático à volta do filme,
admira-me um pouco que não haja qualquer tentativa de crítica, mesmo que ténue.
Li duas entrevistas com o realizador do filme e as perguntas perguntam pouco
pelo que as respostas não respondem muito. Há bajulação e auto-satisfação, “qb”,
e nenhuma interrogação que vá à canela. Depois este ambiente repercute-se pelas
curtas das páginas culturais, pelas rodas de copos e pela atmosfera de miasma
das redes sociais, num jogo de espelhos em que nunca se salta para o outro lado
do espelho, em que nunca se parte algum vidro para olhar para os cacos e interrogar
o que eles ocultavam.)
Mal começados com este primeiro episódio, entramos numa
sucessão de histórias que se passam num Portugal rural e operário e
genericamente lá das berças. A abordagem é documental, garatujada aqui ali por
umas pinceladas surrealistas. Aqui, sofro nova irritação porque a perspectiva é
sobretudo a do olhar sobre o castiço. O castiço é a imagem, vista de cima para
baixo, que o lisboeta com aspirações a intelectual, que frequenta o Bairro, tem
do povo. É uma praga que permeia também o jornalismo português, que assim que
tira o carro de reportagem da autoestrada corre de microfone ansioso à procura
da pronúncia beirã. É uma perspectiva soberba e sobretudo muito pouco carinhosa
para com os visados. Trazem-se uns pategos para diante da lente para fazer
sorrir os intelectuais do subúrbio, que inconscientemente se sentirão aliviados
das suas culpas com o estado da nação: com um país profundo destes, que é que
eles poderiam fazer?
Já citei aqui no blogue uma notável frase de Doisneau sobre
o mais profícuo modo como a arte pode olhar para os mais desfavorecidos. Dizia
ele que os rostos dos que madrugam são muito comoventes. Esta comoção, este
movimento conjunto, é algo que não encontro de todo neste filme. Esbarrei
sempre numa capa de sobranceria que me impediu de aceder aquela gente e ao que ela
nos tinha para dizer sobre o drama que a tantos caíu em cima. Faltou ali já não
digo amor mas pelo menos respeito, o respeito de Rossellini, de Mizoguchi, de
Huston ou de Tati, o respeito com que Caravaggio ia buscar prostitutas e
camponeses para os pintar como virgens marias ou santos de altar nunca mascarando
os traços que os revelavam, para
escândalo dos patronos. O respeito não é ir beber minis com os “populares” a
uma associação recreativa de um bairro degradado. O respeito é respeito, só
isso.
Pergunta-me a I: mas não achaste comovente as entrevistas às
pessoas que sofreram? Achei algumas, em particular a do pequeno empresário que
tudo perde, porque a história dele comove e ele é sincero a contá-la. Mas esse
mérito foi das lentes da câmara, que não distorceram o que viram. Ao contrário,
sempre que entrámos na perspectiva do realizador, sempre que ele colocou o
filtro da sua arte na ponta da objectiva, esse filtro tapou em vez de sugerir, revelar
ou amplificar. Aí deixei de ver as pessoas e a sua dor.

Porquê? Para além da já referida atitude, Miguel Gomes tem
uma dificuldade que me parece óbvia com a metáfora. A boa metáfora é
simultaneamente subtil e evidente, e serve um propósito. Ao revés, neste filme há
metáforas evidentes sem subtileza (a fuga a correr do realizador no início do
filme, ridícula) e metáforas tão subtis, tão subtis que de evidentes nada têm,
até para o próprio Miguel Gomes. Diz Gomes numa entrevista que a cena da explosão
da baleia que deu à praia é uma metáfora, só que não sabe de quê. Pois. Aí
reside o problema: uma baleia a rebentar é espectacular, podia até ser um vídeo
do Youtube cheio de visionamentos, mas que propósito serve neste filme? Se ele
não sabe, quem sou eu para saber?
Enfim, este queixume já vai longo por isso concluo dizendo
que no sucesso de “1001 noites” deslindam-se afinal as raízes do insucesso que
nos levou ao jugo da “troika”: muita fanfarra, alguma farra, pouca garra. Será
esse o seu mérito.
Como te prometi, querida I, irei ver os episódios dois e
três, à espera do milagre. Mas por enquanto ficas-me a dever seis euros.