Hoje sou eu e Maradona (mais os uruguaios) contra o resto do
mundo.
Só eu e o grande Diego é que achamos que o castigo de quatro
meses e noves jogos ao uruguaio Luis Suarez foi uma crime de lesa-futebol, um
atentado ao mais alto património da humanidade que compara em sebo com a
destruição dos budas de Bamiyan.
Sobre o pretexto que demonstrarei irrisório de que Suarez
afinfou uma dentada no ombro débil do Chiellini, todos os jornais do mundo,
todos os analistas de bancada e de ecrã, todos os furiosos que cospem chispas
na páginas de comentário da “net”, se uniram numa corrente solidária para
considerar que Suarez cometera na pessoa do meigo Chiellini, com os seus
olhinhos doces de ferrolho com metro e oitenta e seis, um crime contra a
humanidade que faz Pol Pot parecer um filantropo.
Até o meu filho me diz: “Pai, ele mordeu-lhe!”
Pois mordeu e então? Foi uma estupidez. Deveria ter levado
um vermelho e rua. Como o Neymar deveria ter pela cotovelada nos dentes do
croata no jogo inaugural do Mundial. Só que o Neymar, com a sua popa capilar e
a sua camiseta amarela, é um produto que para muitos interesses tem que sair da
prova cheio de “goodwill” ou seja a valer mais no mercado do que o valor que efectivamente
tem nas pernas. Se para mim há uma diferença entre os dois é que no caso do
Suarez me parece uma reacção de garoto e no de Neymar uma manha de sabido,
bastante mais nojenta aliás.
Com as boas repetições que a têvê brasileira tem mostrado,
farto-me de ver trincos já com muita tarimba a entrar com os pitons ao
calcanhar-de-Aquiles dos adversários, deixando estar o pé e rodando-o
devagarinho para ter alguma probabilidade de lesionar. E levam uma repreensão
ou um cartão amarelo. Cada vôo de muitos defesas-centrais graduados é feito de
braço puxado atrás para melhor cotovelar, num movimento de grande naturalidade,
o nariz dos avançados. E à quinta ou sexta lá vêem um amarelito para não
abusarem. Por isso repito: Suarez mordeu e então? Foi uma criancice e a uma
criança que faz uma asneira não se proíbe de durante quatro meses ir à escola. O futebol, na sua melhor essência, é
coisa de crianças, de meninos que nunca crescem. Não há lugar para
racionalidades, quanto mais para calvinismos. Em criança, joguei partidas no
recreio em que a bola era uma pedra e garanto-vos que a todos parecia redonda.
Em que as balizas eram dois bancos de jardim lado-a-lado e em que para se
passar o meio-campo se tinha que ir lá ao fundo. Nesse futebol não-euclidiano
havia no entanto uma coisa que era linear: em caso de falta ninguém era
expulso. As coisas resolviam-se com uma discussão ou uma pancadaria mas depois
tudo seguia porque estávamos lá todos para jogar antes que a campaínha da
escola apitasse para o final da partida.
E quando temos a sorte de ter um Suarez em campo, é dar
graças ao Senhor. O gozo que me deu aquele golo aos ingleses, ele correndo
matreiro por trás dos defesas como um miúdo que vai ao pote do doce e com um
pulinho curvando de cabeça para dentro da baliza o passe perfeito de Cavani.
Mas isto é para quem gosta de futebol, não é para os guardas suiços da Fifa. Suarez
tem um toque de genialidade e os génios desculpam-se e aproveitam-se. Van Gogh
não batia bem da bola e felizmente ninguém se lembrou de lhe tirar os pincéis.
Newton não jogava com o baralho todo, mas nenhuma Fifa das físicas foi lá
mandá-lo para casa, o que teria sido um drama para o avanço da ciência.
Em todo o caso, quando eu li as primeiras notícias, quando reparei
que os jornais dos ingleses, esse povo tão dado ao castigo exemplar especialmente se houver 379 indianos e uma
metralhadora à mão de semear, falavam mais da mordidela do Suarez do que dos
golos que lhes meteu, quando ouvi os comentadores “desportivos” da nossa
televisão, essas bestas iletradas, dissertar a propósito de Suarez sobre ética
e psiquiatria num português sem fluência nem predicados, dando vazão a esse
sentimento tão rasteiro no ser humano que é o espírito de matilha, percebi que
Suarez estava feito.
E percebi-o também porque a Fifa é basicamente a Fifa. A
Fifa só não é a Máfia siciliana porque não tem a componente de apoio às viúvas
que esta última originalmente tinha. A Fifa é uma entidade que organiza
campeonatos do mundo no deserto. Uma entidade em que o secretário-geral, um
burocrata francês de quinta tabela, afirma que se trabalha melhor em regime
ditatoriais. E em que o presidente, Sepp Blatter, talvez não por coincidência,
partilha o apelido com um célebre almanaque satírico nazi, o Lustigge Blatter.
Com este pessoal, não admira que pareçam mais vocacionados para gerir campos de
concentração, com as suas necessidades de registos em escrita cursiva, do que
campos de futebol, com a sua alegria e irracionalidade. Desgostou-me
particularmente ver o tal francês de quinta casa, Jérôme Valcke, falar da
necessidade de um castigo exemplar a Suarez com um ar de ranço que
provavelmente teria servido ao general alemão Heinz Lammerding da divisão “Das
Reich”, se este alguma vez tivesse tido que justificar em público o “castigo
exemplar” de Oradour-sur-Glane, momento a que se safou graças à surpreendente
benevolência das autoridades – “guess who ?” – britânicas.
A Fifa tem como “slogan” um mentiroso “We love football”. Mais real seria “We hate football” e
mais sincero “We love money”.
Felizmente, logo no dia seguinte à barbárie, apareceu Maradona.
Ele sabe o que é estar isolado contra muitos, porque em 1986 levou sózinho a
Argentina ao colo. Eram 529 adversários e se aparecessem todos ao mesmo tempo seriam
todos fintados, contra tudo o que seria razoável esperar. Seis ingleses pela
frente: golo! Quatro belgas pela frente: golo! E na final aquele passe
telepático pelo meio dos alemães para Burruchaga matar o jogo e levar a copa. E
Maradona, sózinho mais uma vez contra todos, expôs o assunto como ele é,
denunciando o ridículo: “porque não o levam algemado para Guantanamo?”. Temo apenas
que a ironia que Maradona usa seja demasiado complexa para os equiláteros
suiços sequer perceberem o sentido.
Os uruguaios, esses, defenderam e bem Suarez. E o
seleccionador do Uruguai, Oscar Tabarez, deu uma lição de cavalheirismo, pedagogia
e decência que poderia servir não apenas à esquadria helvética mas também aos
Ribeiros Cristovãos e Costas Lobos desta vida (vide neste “link”).
Comentário final: contrariamente ao que se possa pensar,
este “post” não é sobre futebol. É sobre algo mais do que isso.
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