domingo, junho 29, 2014

Em defesa do que (quase) ninguém defende




Hoje sou eu e Maradona (mais os uruguaios) contra o resto do mundo. 

Só eu e o grande Diego é que achamos que o castigo de quatro meses e noves jogos ao uruguaio Luis Suarez foi uma crime de lesa-futebol, um atentado ao mais alto património da humanidade que compara em sebo com a destruição dos budas de Bamiyan.

Sobre o pretexto que demonstrarei irrisório de que Suarez afinfou uma dentada no ombro débil do Chiellini, todos os jornais do mundo, todos os analistas de bancada e de ecrã, todos os furiosos que cospem chispas na páginas de comentário da “net”, se uniram numa corrente solidária para considerar que Suarez cometera na pessoa do meigo Chiellini, com os seus olhinhos doces de ferrolho com metro e oitenta e seis, um crime contra a humanidade que faz Pol Pot parecer um filantropo. 

Até o meu filho me diz: “Pai, ele mordeu-lhe!”

Pois mordeu e então? Foi uma estupidez. Deveria ter levado um vermelho e rua. Como o Neymar deveria ter pela cotovelada nos dentes do croata no jogo inaugural do Mundial. Só que o Neymar, com a sua popa capilar e a sua camiseta amarela, é um produto que para muitos interesses tem que sair da prova cheio de “goodwill” ou seja a valer mais no mercado do que o valor que efectivamente tem nas pernas. Se para mim há uma diferença entre os dois é que no caso do Suarez me parece uma reacção de garoto e no de Neymar uma manha de sabido, bastante mais nojenta aliás.

Com as boas repetições que a têvê brasileira tem mostrado, farto-me de ver trincos já com muita tarimba a entrar com os pitons ao calcanhar-de-Aquiles dos adversários, deixando estar o pé e rodando-o devagarinho para ter alguma probabilidade de lesionar. E levam uma repreensão ou um cartão amarelo. Cada vôo de muitos defesas-centrais graduados é feito de braço puxado atrás para melhor cotovelar, num movimento de grande naturalidade, o nariz dos avançados. E à quinta ou sexta lá vêem um amarelito para não abusarem. Por isso repito: Suarez mordeu e então? Foi uma criancice e a uma criança que faz uma asneira não se proíbe de durante quatro meses ir à escola. O futebol, na sua melhor essência, é coisa de crianças, de meninos que nunca crescem. Não há lugar para racionalidades, quanto mais para calvinismos. Em criança, joguei partidas no recreio em que a bola era uma pedra e garanto-vos que a todos parecia redonda. Em que as balizas eram dois bancos de jardim lado-a-lado e em que para se passar o meio-campo se tinha que ir lá ao fundo. Nesse futebol não-euclidiano havia no entanto uma coisa que era linear: em caso de falta ninguém era expulso. As coisas resolviam-se com uma discussão ou uma pancadaria mas depois tudo seguia porque estávamos lá todos para jogar antes que a campaínha da escola apitasse para o final da partida.


E quando temos a sorte de ter um Suarez em campo, é dar graças ao Senhor. O gozo que me deu aquele golo aos ingleses, ele correndo matreiro por trás dos defesas como um miúdo que vai ao pote do doce e com um pulinho curvando de cabeça para dentro da baliza o passe perfeito de Cavani. Mas isto é para quem gosta de futebol, não é para os guardas suiços da Fifa. Suarez tem um toque de genialidade e os génios desculpam-se e aproveitam-se. Van Gogh não batia bem da bola e felizmente ninguém se lembrou de lhe tirar os pincéis. Newton não jogava com o baralho todo, mas nenhuma Fifa das físicas foi lá mandá-lo para casa, o que teria sido um drama para o avanço da ciência.

Em todo o caso, quando eu li as primeiras notícias, quando reparei que os jornais dos ingleses, esse povo tão dado ao castigo exemplar  especialmente se houver 379 indianos e uma metralhadora à mão de semear, falavam mais da mordidela do Suarez do que dos golos que lhes meteu, quando ouvi os comentadores “desportivos” da nossa televisão, essas bestas iletradas, dissertar a propósito de Suarez sobre ética e psiquiatria num português sem fluência nem predicados, dando vazão a esse sentimento tão rasteiro no ser humano que é o espírito de matilha, percebi que Suarez estava feito.

E percebi-o também porque a Fifa é basicamente a Fifa. A Fifa só não é a Máfia siciliana porque não tem a componente de apoio às viúvas que esta última originalmente tinha. A Fifa é uma entidade que organiza campeonatos do mundo no deserto. Uma entidade em que o secretário-geral, um burocrata francês de quinta tabela, afirma que se trabalha melhor em regime ditatoriais. E em que o presidente, Sepp Blatter, talvez não por coincidência, partilha o apelido com um célebre almanaque satírico nazi, o Lustigge Blatter. Com este pessoal, não admira que pareçam mais vocacionados para gerir campos de concentração, com as suas necessidades de registos em escrita cursiva, do que campos de futebol, com a sua alegria e irracionalidade. Desgostou-me particularmente ver o tal francês de quinta casa, Jérôme Valcke, falar da necessidade de um castigo exemplar a Suarez com um ar de ranço que provavelmente teria servido ao general alemão Heinz Lammerding da divisão “Das Reich”, se este alguma vez tivesse tido que justificar em público o “castigo exemplar” de Oradour-sur-Glane, momento a que se safou graças à surpreendente benevolência das autoridades – “guess who ?” – britânicas.


A Fifa tem como “slogan” um mentiroso “We love football”. Mais real seria “We hate football” e mais sincero “We love money”. 

Felizmente, logo no dia seguinte à barbárie, apareceu Maradona. Ele sabe o que é estar isolado contra muitos, porque em 1986 levou sózinho a Argentina ao colo. Eram 529 adversários e se aparecessem todos ao mesmo tempo seriam todos fintados, contra tudo o que seria razoável esperar. Seis ingleses pela frente: golo! Quatro belgas pela frente: golo! E na final aquele passe telepático pelo meio dos alemães para Burruchaga matar o jogo e levar a copa. E Maradona, sózinho mais uma vez contra todos, expôs o assunto como ele é, denunciando o ridículo: “porque não o levam algemado para Guantanamo?”. Temo apenas que a ironia que Maradona usa seja demasiado complexa para os equiláteros suiços sequer perceberem o sentido.

Os uruguaios, esses, defenderam e bem Suarez. E o seleccionador do Uruguai, Oscar Tabarez, deu uma lição de cavalheirismo, pedagogia e decência que poderia servir não apenas à esquadria helvética mas também aos Ribeiros Cristovãos e Costas Lobos desta vida (vide neste “link”). 

Comentário final: contrariamente ao que se possa pensar, este “post” não é sobre futebol. É sobre algo mais do que isso.

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