Num dos cadernos do Expresso deste sábado, a Clara Ferreira
Alves, uma das campeãs nacionais do mandar-se para fora de pé, escreve a
propósito do centenário do nascimento de Camus que este é um autor que já não
se lê. Não é bem verdade: esta semana, em Paris, no aeroporto Charles de Gaulle,
encontrei os escaparates das tabacarias a abundarem de estrangeiros, homens
revoltados e justos. Ora nos aeroportos vende-se aquilo que se vende e por isso
certamente Camus continua lido, pelo menos nas salas vidradas onde se espera
o embarque.
Eu voava uma vez mais para Argel, onde o tempo se anunciava
chuvoso e até de trovoada. No regresso, aliás, levaria com o segundo raio em
avião da minha carreira: uma pancada seca no casco, aparentemente junto às
nossas orelhas, e um “flash” mais efémero que o das máquinas fotográficas, tão
rápido que apenas nos deixa no cérebro uma ideia de luminosidade violenta, que
na realidade não vimos. O primeiro fora sobre Barcelona e então como agora o
Faraday fez bem as coisas, conduzindo pela sua gaiola a descarga eléctrica de
uma ponta à outra do aparelho e mandando-a borda fora, sem outros danos que a
ansiedade de alguns passageiros.
Ao aterrar em Argel, havia poças no chão reflectindo o sol que
caía radiante, aproveitando o descanso da tormenta. Iluminadas pela luz branca,
as palmeiras, com a ramagem amarrada para o inverno, as mulheres de cabelos cobertos
pelo véu, as ruas pintalgadas de cartazes em árabe, faziam pressentir o Sahara
que espreitava lá no horizonte, por trás das montanhas do Atlas. Argel, a “Alger
la blanche” que se tornou mítica para os franceses, tem hoje em dia a sua cara de
cidade linda desfeada por uma adolescência de guindastes, betão anárquico e
contentores à beira do mar. Certamente, quando passada esta fase de crescimento
perturbado Argel assentar como cidade madura, como a senhora que é, encostada
ao monte Bouzareah a olhar para o marulhar da baía, o que continuará igual será
essa luz, esse tesouro único que banha Argel e Lisboa, Roma e Tanger, Nice e o
Cairo, Atenas e Sevilha.
Quando eu andava na primária, ofereceram-me um livro que me
marcou chamado “La civilization du soleil” que à volta deste título unificador
narrava, em pequenos textos ilustrados por figuras coloridas que me deleitaram,
as grandezas dos povos que ao redor do Mediterrâneo até fizeram umas coisas
engraçadas em prol da humanidade: a agricultura, a escrita, a matemática, a
filosofia, os aquedutos e as redes viárias, o Partenon e o tecto da Capela
Sistina, a descoberta do caminho para a Índia por terra e mil anos depois por
mar. Será talvez o efeito de uma memória ingénua dessa leitura de criança, mas
em qualquer das cidades que referi sinto sempre algo de privilegiado, de
destino senhorial que as agruras momentâneas do tempo podem moer mas não matam,
de quintessencialmente humano e anárquico, algo de civilizacional que se opõe à
barbárie, uma intuição de grandeza que vem das lonjuras do tempo e que esta
dádiva do sol alimentou, mantém e nos faz comungar. É este sol que insistiu em brilhar
em Argel contra os ditames da previsão meteorológica, este sol que faz medrar e
civiliza, que nos une de Lisboa a Beirute e que os países do norte da Europa, presos
no seu cinzento a régua e esquadro, não podem deixar de secretamente invejar.
Curiosamente, esta semana encontrara esse mesmo sol argelino
pintado por Jacques Ferrandez, um autor francês de banda desenhada cujos
trabalhos procuram justamente a luz desse sol, seja em Lisboa, para a qual
ilustrou as crónicas de uma viagem imaginária, seja em Argel, sua terra natal,
onde localizou muito da sua principal obra, os “Carnets d’Orient” sobre a
Argélia ainda colonial. Desta feita li-lhe uma adaptação de “O estrangeiro” de –
outra vez curiosamente – Camus, o Camus que capturou para as suas linhas o
saber dessa luminosidade que o banhou nos pátios da escola primária de Oran ou
nos jogos em que defendia a baliza do Racing Universitaire Algérois. Fascina-me
como as boas obras são férteis, inspirando outras coisas boas, nem que sejam
boas adaptações. Este estrangeiro, por exemplo, motivou esta razoável versão de
Ferrandez, quente e meridional, e uma excelente canção dos Cure, que do original
guarda a reflexão inquieta mas troca o ambiente, que passa a frio e distante.
Regresso ao artigo do Expresso do primeiro parágrafo, onde ainda
assim aprendi alguma coisa. Camus, que tinha tuberculose, foi albergado por um
tio talhante quando aos dezassete anos se lhe declarou a doença. Este senhor,
para além de um talho tinha uma biblioteca bem recheada, o que permitiu ao
jovem Camus tomar contacto com a literatura clássica, encontro que até aí a sua
pobreza lhe negara. Não creio que hoje em dia se encontrem muitos talhantes com
largas bibliotecas, nem provavelmente muitos licenciados. Mas que naquele tempo
o tio de Camus ao fim de um dia de trabalho retirasse o avental sujo de sangue
e se afundasse num cadeirão e num Balzac, tal não me surpreende. Afinal, o meu
pai, oriundo de uma burguesia pequena de serviços, que não tivera acesso à
faculdade, tinha em casa próximo de três milhares de livros, de boa cepa, e isto
estava longe de ser caso único entre a sua roda de amigos ou conhecidos, quase
todos da mesma condição social. Nessa
altura prezava-se a leitura como hoje se preza os telemóveis e o livro das
faces. Portanto a Clara Ferreira Alves, citada lá em cima, não está a ver bem a
coisa. Não só Camus deixou de ser lido: foram os livros em geral.
Lá fora, o sol da civilização do sol convida ao passeio. Vou
pegar em mim e sair.
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