sexta-feira, junho 15, 2012

Cenas malaias



Infelizmente de toca e foge como é frequente em trabalho, passei três dias em Kuala Lumpur, na Malásia. O meu dia passava-se entre Bukit Bintang, uma zona de modernos e pujantes centros comerciais onde ficava o meu hotel, e o centro de congressos das torres gémeas da Petronas, outra zona de modernos e pujantes centros comerciais. Entre uma e outra, um passeio de cinco minutos a pé por um ponte pedestre, fechada e com ar condicionado, que me salvou de uma morte certa destilado no meu fato e gravata pelos trinta e muito graus e noventa por cento de humidade que esperavam cá fora.

Não sei se se pode aprender alguma coisa sobre um país cirandando entre centros comerciais de aço e vidro, mais duas viagens de táxi por modernas autoestradas de e até ao aeroporto. Talvez sim.

  Modesto centro comercial em Bukit Bitang, onde começava o meu dia.

A bendita passadeira com ar condicionado.

 As torres gémeas da Petronas, até 2004 o maior edifício do mundo, 452 metros de aço, vidro e orgulho nacional junto às quais eu congressava.

Ainda a passadeira, agora vista de dentro.

Tirei esta foto num corredor pouco iluminado num centro comercial, com 1/4 de segundo de velocidade de obturação e com um gesto rápido para não me fazer notar, sabendo que iria ficar tremida. Mas esta imagem capta muito da cor desta cidade, que é também trazida pelas pessoas e pelos trajes tradicionais que convivem com naturalidade com a roupa ocidentalizada, ou melhor dizendo, universal nos dias de hoje.

A Malásia é multi-étnica. Localmente, definem-se como malaios de estirpe, ou "bumiputra", aqueles que professam a religião muçulmana e seguem os costumes tradicionais. Os "bumiputra" são um pouco mais de metade da população e a constituição local dá-lhes um estatuto politicamente preferencial. Independentemente da etnia, os malaios são atenciosos, sorridentes e simpáticos.

É manifesto que o islamismo em Kuala Lumpur é muito mais tolerante do que noutras partes do globo. É normal ver raparigas jovens que usam o véu sobre o cabelo, mas estão de "tee-shirt" justa, "jeans" apertados ou "leggings" e vão de mão dada com o namorado, coisa impensável no mundo árabe, mesmo nos mais abertos Dubai ou Qatar. Kuala Lumpur mostra-nos que o fundamentalismo islâmico é fundamentalista porque é fundamentalista e não porque é islâmico, coisa que nós, portugueses, deveríamos saber lendo a História do nosso país.

Num supermercado, a zona do talho tranquiliza o consumidor: a carne é "halal", como o Profeta faz questão.

Cerca de um quarto da população da Malásia é chinesa e budista. A comunidade chinesa, muito presente no comércio, distingue-se bem da malaia (em particular por não usar véu).

Esta imagem poderia simbolizar a convivência natural entre duas culturas: chinesa e malaia cruzam-se em Jalan Raja.


Kuala Lumpur oferece de facto mil grandes possibilidades de refeição, para quem tenha o estômago recauchutado. Um dos meus pequenos-almoços foi arroz com camarão picante.

Os táxis de Kuala Lumpur dão muita cor à cidade. A minha única conversa a sério com um malaio, tive-a com o taxista que me levou ao aeroporto. Começámos a trocar bolas sobre Cristiano Ronaldo, continuámos com a má forma da seleção da Malásia, com o tempo instável que fazia, a construção do novo bairro governamental, a política local, a obra do anterior presidente da república e acabámos a falar dos nossos filhos (os dele, de oito e dez anos, gostavam muito de McDonalds). Tudo com uma naturalidade que eu julgaria impossível num carro de praça. Em Kuala Lumpur não se constata só que se pode ser muçulmano sem se ser fundamentalista. Também se descobre que se pode ser taxista sem se ser básico.


A economia malaia está com uma saúde que nós, europeus, andamos a invejar. Muito desse dinheiro passa por bancos islâmicos, como este. Estes bancos fazem finança sem fazer empréstimos com juros, que são proibidos pelo Corão. É a finança islâmica. Como é que funciona? Já me tentaram explicar, mas eu não captei a subtileza e fiquei com a impressão que faziam o mesmo que os outros, só que com outro nome.

Essa saúde económica traduz-se numa cidade moderna, uma pequena Manhattan dos trópicos. Aqui, à direita, o luxuoso hotel Mandarin Oriental.

sábado, junho 09, 2012

O milagre de cada dia nos dai hoje



“Então Jesus disse às autoridades dos Judeus: “Eu vos garanto: o Filho não pode fazer nada por sua própria conta; Ele faz apenas o que vê fazer ao Pai. O que o Pai faz, o Filho também o faz.””
João  5,19


O meu sogro esperava pela visita num banco do bonito claustro do Hospital de Santa Marta, numa tarde de sábado primaveril após uma delicada operação em que substituíra ambas as carótidas. Assim que chegámos levantou-se e perguntou, com um ligeiro tremor na voz, com aquela ânsia por um momento de quem certamente pensou que poderia não ter mais momentos e por isso lhes dá um novo valor:

- O menino?

Respondemos-lhe mentindo que não viera e ele esboçou um ar desapontado. De repente, o meu primeiro filho, à altura seu único neto, surgiu de trás da sebe pela mão da minha sogra, bamboleando no andar trôpego próprio do seu ano de idade. E imediatamente, ao vê-lo, o meu sogro sorriu incontido, um sorriso feito de uma felicidade radiante e de olhos embargados por lágrimas.


Há dias, o meu sogro precisou de mais uma manutenção, desta vez de motor aberto para substituir uma válvula da aorta. O menino que saíra de trás da sebe foi visitá-lo após a intervenção ao mesmo hospital de Santa Marta, só que desta vez conduzindo o seu carro. Tinham passado vinte anos na vida de ambos.

Ora isto parece-me caber razoavelmente na descrição de milagre, tal como a afiança o dicionário: acto ou acontecimento fora do comum, inexplicável pelas leis naturais. Pelas leis naturais, o meu sogro teria morrido aos cinquenta e tal anos e não teria tido a hipótese de uma segunda, e agora terceira, oportunidades. Há trinta ou quarenta anos, seria o que teria acontecido. Entretanto a ciência e a vontade dos homens de boa vontade permitiram que se desenvolvesse e divulgasse esta coisa tão bizarra: abrir o pescoço a um tipo à facada, cortar-lhe as artérias, pôr-lhe lá umas novas e fechar deixando tudo a funcionar mais ou menos como dantes: milagre, sem dúvida.

Os cirurgiões que levaram a cabo essa proeza, uma de muitas no seu dia e na sua semana, concentrados que estavam na minúcia que o seu labor exige, não pensaram provavelmente que com os seus golpes de bisturi estavam a criar tempo. Mais vinte anos de neto para este avô e mais vinte anos de avô para este neto. Vinte mais vinte somam quarenta anos, o que faz já meia vida bem vivida. E se adicionarmos os vinte anos do marido, os da esposa, do pai, da filha, do filho, dos netos que ainda não tinham nascido, para além dos do próprio, começamos a falar de séculos de vida que tiveram origem naquela sala de operações, nas mãos enluvadas daqueles médicos e enfermeiros que como num retábulo desenharam o peculiar milagre. Um milagre que não aconteceu nas azinheiras de Fátima nem nas águas do lago Tiberíades, mas sim na Rua de Santa Marta, na freguesia do Coração de Jesus em Lisboa. O nome da freguesia não podia ser aliás melhor coincidência porque, ao fim e ao cabo, entre Aquele que deu vida à filha de Jairo e aqueles que deram vida ao meu sogro, a única diferença relevante são dois mil anos. Um como outros partilharam um dom divino, como bem explica São João Evangelista no versículo em epígrafe.

Com maravilhas tão quotidianas e tão evidentes no meio da sala à vista de todos, espanta-me que tantos neste mundo procurem milagres esotéricos por detrás dos cortinados herméticos do saber dito verdadeiro ou do conhecimento dito ancestral. Apetece-me gritar-lhes, como no “Ensaio sobre a Cegueira”: se puderem olhar, vejam; se puderem ver, reparem.