“Então Jesus disse às autoridades dos Judeus: “Eu vos
garanto: o Filho não pode fazer nada por sua própria conta; Ele faz apenas o
que vê fazer ao Pai. O que o Pai faz, o Filho também o faz.””
João 5,19
O meu sogro esperava pela visita num banco do bonito claustro do Hospital de Santa Marta, numa tarde de sábado primaveril após uma delicada operação em que substituíra ambas as carótidas. Assim que chegámos levantou-se e perguntou, com um ligeiro tremor na voz, com aquela ânsia por um momento de quem certamente pensou que poderia não ter mais momentos e por isso lhes dá um novo valor:
Respondemos-lhe mentindo que não viera e ele esboçou um ar
desapontado. De repente, o meu primeiro filho, à altura seu único neto, surgiu
de trás da sebe pela mão da minha sogra, bamboleando no andar trôpego próprio
do seu ano de idade. E imediatamente, ao vê-lo, o meu sogro sorriu incontido,
um sorriso feito de uma felicidade radiante e de olhos embargados por lágrimas.
Há dias, o meu sogro precisou de mais uma manutenção, desta
vez de motor aberto para substituir uma válvula da aorta. O menino que saíra de
trás da sebe foi visitá-lo após a intervenção ao mesmo hospital de Santa Marta,
só que desta vez conduzindo o seu carro. Tinham passado vinte anos na vida de
ambos.
Ora isto parece-me caber razoavelmente na descrição de
milagre, tal como a afiança o dicionário: acto ou acontecimento fora do comum,
inexplicável pelas leis naturais. Pelas leis naturais, o meu sogro teria
morrido aos cinquenta e tal anos e não teria tido a hipótese de uma segunda, e
agora terceira, oportunidades. Há trinta ou quarenta anos, seria o que teria
acontecido. Entretanto a ciência e a vontade dos homens de boa vontade
permitiram que se desenvolvesse e divulgasse esta coisa tão bizarra: abrir o
pescoço a um tipo à facada, cortar-lhe as artérias, pôr-lhe lá umas novas e
fechar deixando tudo a funcionar mais ou menos como dantes: milagre, sem
dúvida.
Os cirurgiões que levaram a cabo essa proeza, uma de muitas
no seu dia e na sua semana, concentrados que estavam na minúcia que o seu labor
exige, não pensaram provavelmente que com os seus golpes de bisturi estavam a
criar tempo. Mais vinte anos de neto para este avô e mais vinte anos de avô
para este neto. Vinte mais vinte somam quarenta anos, o que faz já meia vida
bem vivida. E se adicionarmos os vinte anos do marido, os da esposa, do pai, da
filha, do filho, dos netos que ainda não tinham nascido, para além dos do
próprio, começamos a falar de séculos de vida que tiveram origem naquela sala
de operações, nas mãos enluvadas daqueles médicos e enfermeiros que como num
retábulo desenharam o peculiar milagre. Um milagre que não aconteceu nas
azinheiras de Fátima nem nas águas do lago Tiberíades, mas sim na Rua de Santa
Marta, na freguesia do Coração de Jesus em Lisboa. O nome da freguesia não
podia ser aliás melhor coincidência porque, ao fim e ao cabo, entre Aquele que deu
vida à filha de Jairo e aqueles que deram vida ao meu sogro, a única diferença
relevante são dois mil anos. Um como outros partilharam um dom divino, como bem
explica São João Evangelista no versículo em epígrafe.
Com maravilhas tão quotidianas e tão evidentes no meio da
sala à vista de todos, espanta-me que tantos neste mundo procurem milagres
esotéricos por detrás dos cortinados herméticos do saber dito verdadeiro ou do
conhecimento dito ancestral. Apetece-me gritar-lhes, como no “Ensaio sobre a
Cegueira”: se puderem olhar, vejam; se puderem ver, reparem.
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:)))
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