sábado, março 03, 2012

EUA (I) - Passeando no Harlem a um domingo de manhã

O forasteiro que saia em Nova Iorque do túnel de metro para a superfície rodopia algumas vezes sobre si próprio de cabeça para o ar e mapa na mão para se localizar na quadrícula ortogonal das ruas de Manhattan. Um erro de orientação e podem ser uns quarteirões em vão, com um ir incerto e um vir desapontado.

Cumprido esse ritual, seguimos pela 125ª, também Martin Luther King Boulevard, para um primeiro passeio nova-iorquino pelas ruas de Harlem. Apesar de ser domingo, muito comércio não perde oportunidade. Bancas na beira das calçadas generosas propõem roupa barata ou enigmáticos perfumes caseiros, embalados em vidrinhos refundidos com etiquetas escritas à mão. A personalidade de bairro da comunidade negra ou, como aqui recomenda o politicamente correcto, afro-americana,  é inequívoca: os quantos brancos e amarelos que se vêem estão a passeio, de máquina fotográfica a tiracolo, guia na mão ou olhar hesitante. De conversa animada à porta dos cafés, carregando pesados sacos com as compras matinais ou janotas e de andar célere a caminho da missa, vê-se que os negros estão em sua casa. Chegam-nos laivos de vozeiro dominical com um sotaque que conhecemos dos filmes discutindo as primárias republicanas ou os resultados do basquete.

Do outro lado da rua, o centenário teatro Apollo aparece como primeira referência. Olho para o mapa, vamos no sentido certo. O Apollo foi construído em 1913 como casa de ópera reservada a brancos. Só em 1934 o empresário Frank Schiffman, ele próprio um branco, o abriu a todas as raças na plateia e a ases de espadas e paus no palco como Duke Ellington ou Billie Holiday. Às quartas-feiras tinha lugar a “amateur night”, um concurso em que o público votava o vencedor, premiando ilustres desconhecidos como a menina Sarah Vaughan ou o jovem James Brown. Todo o grande “jazz” por ali passou com regularidade: as “big bands” de “swing”, Charlie Parker, Thelonius Monk, Dizzy Gillespie, etc., etc. Como infelizmente sofre obras de restauro, deixamos para trás aquele pedaço de História entaipado e viramos para norte na sétima avenida, aqui já crismada Adam Clayton Powell Junior Boulevard em homenagem ao primeiro negro congressista.

A mitologia induzida nas nossas ignorantes cabeças por anos de cinema e séries policiais levava-nos a vir com receio de encontrar um lugar perigoso e algo miserável. Burrice: o Harlem é um bonito bairro residencial seguro, de avenidas largas, passeios amplos e prédios de estatura moderada com a típica arquitectura nova-iorquina do princípio do século XX. Se algo o diferencia dos seus vizinhos brancos mais a sul é a ausência do frenesim perpétuo de Times Square ou da quinta avenida.

Domingo de manhã é manhã de missa no Harlem. Nas ruas vemos grupos dirigindo-se de passo estugado para as celebrações ou vindo delas, em alegre conversa. Em Harlem a missa é assunto sério e vai-se como se vai a um casamento: os homens de fato e gravata, as mulheres de vestido de cerimónia. As mais jovens com vestidos coleantes sem ser ousados, as mais idosas com pregadores luzentes e vastos chapéus espectaculares que lembram os das inglesas nas aristocráticas corridas de cavalos em Ascot. Vários pequenos locais de culto espalham-se pela avenida, sumidos no casario dos quarteirões. Quando a porta de um deles se abre, ouve-se o coro num sonoro “gospel” e o pastor num cantar gritado lembrando à congregação que há que louvar o Senhor.

Tentamos ir assistir à cerimónia na Igreja Baptista Abissínia, a mais célebre do bairro. Infelizmente não somos os únicos: a fila de estrangeiros multilingues dá a volta ao quarteirão, organizada por dois ou três paroquianos – se é que esta palavra se aplica entre protestantes, o que duvido. Vão-nos repetindo que apenas há duzentos lugares para visitantes e informando-nos das datas das próximas celebrações. Enquanto aguardamos um rapaz aproveita a aglomeração para tenta vender o seu próprio cêdê pirata, apregoado como o verdadeiro “hip-hop” do Harlem: “the real thing”. A dado momento, um faíscante Ferrari vermelho descapotável estaciona em segunda fila e dele saiem dois jovens negros impecáveis nos seus fatos cinzentos e gravatas lisas. Deixam o Ferrari aberto e seguem tranquilamente para a missa. Manifestamente sabem que não lhes mexerão na viatura, o que nos leva a suspeitar de malta da pesada (cá está a má influência das séries policiais).


Infelizmente não conseguimos entrar nos duzentos eleitos e seguimos caminho. Contornamos o quarteirão e passamos no número 108 da rua 139, onde morou uma Billie Holiday à procura do primeiro emprego, depois pela burguesa Strivers Row onde alguns portões ainda recomendam cautelas de outras eras: “ leve os cavalos a passo”. Deixamos o bairro pela avenida Saint Nicholas, em direcção à vizinhança chique de Hamilton Heights, dominados lá do alto pelo xisto e a arquitectura gótica do “City College” e pela colunata colonial da residência de Alexander Hamilton. Para trás fica o sossego do Harlem de domingo de manhã que apagou da minha memória o Harlem suspeito e inquietante das histórias filmadas como um ficheiro esmaga outro no ronronar de um disco rígido de computador.

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