domingo, outubro 16, 2011

Férias (VIII) - Um suave milagre

Nos dias de Agosto que passámos no sul de Espanha, àquela hora lusco-fusca em que o sol partindo leva com ele a brasa africana da tarde, reparámos em muitas famílias que passeavam pela marginal que bordeja a praia empurrando carrinhos ou cadeiras de rodas levando crianças com deficiências.

Sei que o termo “deficiência” pode levantar protestos de horror afectado entre aqueles que pensam que o que importa são os vocábulos. Pois não quero saber. Gostaria que a sociedade gastasse menos tempo a indignar-se por não se dizer “pessoa de mobilidade reduzida” ou “portador do síndrome de Down” ou qualquer outro termo de hipócrita satisfação de consciências e mais a horrorizar-se por os recursos dos nossos impostos não serem afectados na proporção necessária a essas pessoas e às suas famílias. O politicamente correcto é uma sarna da nossa sociedade, uma erupção de pele originada pelo mal colectivo de que padecemos. Não deveríamos ter medo das palavras. Afinal, um coxo é um coxo, um paralítico é um paralítico e um liberal que tenta usar as leis do mercado para explicar que não é papel do Estado ajudar essas crianças é um atrasado mental.

Mas, voltando, espantámo-nos pelo número. Não me recordo de em Portugal, nas zonas de férias, nas ruas mercantes em que se passeia de alto a baixo ao final do dia, serem comparativamente tantas. Espero que por casualidade. Quero acreditar que já não vigorará por cá aquela mentalidade de que me lembro de presenciar em criança, quando um filho deficiente era uma culpa que se expiava e uma vergonha que se escondia. Em todo o caso, ali, fosse pela largura do calçadão que convidava ao passeio, fosse pela largura das ideias, lá andavam grupos em fim de tarde, gozando o crepúsculo de Verão, iguais aos outros e apenas um pouco diferentes dos outros.


Numa dessas noites, em que jantámos no “chiringuito” Varela, uma esplanada humilde de cadeiras da Pepsi à babuja da areia, entrou a dado momento uma destas famílias: pai, mãe, avó e uma criança de pouca idade num carrinho, cuja deformação do crânio não deixava dúvidas. Ficaram próximos de nós e pudemos assistir a como durante toda a refeição pai e mãe sorriam para aquele filho, lhe falavam, lhe acenavam com brinquedos, o apaparicavam e lhe voltavam a sorrir um sorriso genuinamente feliz, de jovens pais que curtem a meninice do seu filho. Aquele bebé não viera apenas por ter que vir, por não ter onde ficar. Estava a jantar com eles de pleno direito, por distante que parecesse.

Ora eu, que com os anos esfolados me vou comovendo mais com estas coisas, maravilhei-me e pensei cá para comigo que aquela cena era o mundo ao contrário do mundo que por aí anda à nossa volta. Ali estavam dois pais que certamente sofriam as limitações do filho, que possivelmente penavam entre médicos ou terapeutas, que talvez fizessem das fraquezas forças ao fim de um dia de trabalho para lhe dar a atenção especial que aquela criança especial requeria, mas que pegavam em todas essas provações, trituravam, processavam e as transformavam num amor incondicional que parecia a quem assistia do mais genuíno que pode haver. E este quadro, feito de devoção e entreajuda, de vitória da essência sobre a aparência, de abnegação substituindo o egocentrismo, contrastava de modo berrante com os tempos que vivemos, de individualismos de freio nos dentes, de “darwinismos” sociais, de belezas de celofane e sensualidades recortadas a bisturi, em que as leis ditas do mercado justificam uma certa insídia de eugenia social e em que a solidariedade se abastardou frequentemente em caridadezinha, por vezes promovida a ferramenta de “marketing” empresarial, segundo novas modas, por vezes em modalidades paternalistas que por erro julgámos arcaicas.
 

Este choradinho poder-vos-á parecer um lugar-comum. Provavelmente será, concordo convosco. Mas não creio que deixe por isso de ser verdade. Os lugares-comuns também são gente.

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