quinta-feira, julho 08, 2010

A carne para canhão

Durante o fim-de-semana que passou (mais depressa do que eu queria), entre mergulhos no tanque onde o termómetro flutuante ia ostentando uns 29 Celsius bem satisfatórios, encetei a leitura de “A Argélia argelina”, um livro de Jean Lacouture sobre o processo de independência daquele país. Reúno muitas vezes com argelinos por osso de ofício e pouco conhecia sobre a sua história. Nem tarde, nem cedo, foi desta, à torreira dos 38 que esbraseavam a serrania alentejana.


Ainda não acabei o volume, mas já fui aprendendo umas coisas que para mim são de utilidade muita relativa mas que para outros poderiam dar algum jeito: por exemplo àqueles que ainda hoje se aventuram na aventura colonizadora.


A França ocupou a Argélia em 1830, terminava o reinado de Carlos X. Até ao final do mono-império de Napoleão III, a política oficial para a colónia oscilou entre uma tutela teoricamente benevolente delegando alguns poderes nos locais e grandes e deliberados ensaios de porrada. Pelo meio foram espoliando terras e trazendo colonos. Contas feitas, estima-se que entre 1830 e 1872 um argelino em cada três morreu de morte violenta, epidemia ou fome, tudo brilhantemente patrocinado pelo humanismo gaulês. Compreende-se que ainda hoje os tipos não gostem deles.


À medida que o tempo passou, que a França perdeu potência e que as condições políticas mundiais se tornaram pouco afáveis para os colonizadores, o problema foi-se complicando. Desde a metrópole, a política oscilava entre uma visão integradora que preconizava que a Argélia fosse parte do território nacional, o que acarretava a chatice de ter que dar aos indígenas os mesmos direitos e voto nas matérias e tudo o mais e outra que a definia como colónia a manter “manu militari”. No local, a tendência era para não ligar puto aos telegramas de Paris. A influência conservadora dos colonos, que tinham tudo a perder (e que acreditavam no “status quo” eterno), e a rédea solta dos militares impediam qualquer actuação que fosse favorável à autonomia, à independência ou mesmo a alguma justiça para a arabiada.


Do lado dos argelinos, uma elite pensante foi-se desenvolvendo e dividindo entre os que preconizavam uma via reformista, de lenta aquisição de direitos, de uma Argélia argelina dentro de uma França amiga, e os que preconizavam a acção directa e violenta para uma separação total entre povos que tinham apenas em comum os metros quadrados que pisavam. A tendência francesa foi a de perseguir uns e outros.


A seguir à guerra mundial, a situação agudizou-se após os massacres de Constantine, em Maio de 1945, quando cerca de uma centena de colonos foram mortos por extremistas argelinos e a reacção francesa foi completamente desproporcionada: estimam-se quinze mil mortos. Quando no final dos anos quarenta os franceses foram à procura dos moderados argelinos para falar, já não os encontraram. Só a guerra e a independência estavam em cima da mesa. O confronto armado, uma guerra suja de parte a parte, começou em 1954 e os franciús fecharam discretamente a sua loja colonial em 19 de Março de 1962. Quanto aos colonos, piraram-se em massa para o outro lado do Mediterrâneo, às centenas de milhar, muitos com uma mão à frente e outra atrás. Afinal, aquele peito todo não lhes serviu de muito.


Ao ler este pedaço de tempo passado, não me pude impedir de fazer um paralelo com a situação dos colonatos que Israel vai alegremente estabelecendo pelos territórios palestinos da vizinhança, aproveitando o facto de não se lhe aplicarem as resoluções da ONU que se lhe aplicam. O uso da força, o sentimento de superioridade, a criação de uma massa de colonos como força de bloqueio, a hesitação entre o discurso da integração e o da divisão, tudo parece tirado a papel químico.


O que o governo israelita está a fazer àquela gente, à sua gente, raia a indecência. É pô-la do lado errado da História onde será fatalmente atropelada, mais cedo ou mais tarde. Se não ela, os seus filhos ou netos. A força pode aguentar a situação dez, vinte, cinquenta, cem anos, mas um dia fraqueja. Depois vai tudo a eito como foi na Argélia. E aí, tarde demais, vão perceber que os usaram como carne para canhão.


As situações meta-estáveis têm destas coisas: um dia, de repente, instabilizam mesmo.

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