domingo, março 22, 2009

Já somos bilionários

Em “Slumdog Millionaire”, há uma cena em que uma criança é propositadamente cegada para a tornar um mendigo mais compassivo, a bem dos adultos que a exploram.

Nesse momento do filme, quando se pressente a barbárie que vai surgir na tela, a minha vizinha de cadeira, uma mulher ainda jovem, baixou a cabeça e pôs as mãos à frente dos olhos, soltando um “meu Deus!”, discreto mas sentido.

Com esse gesto, disse muito sobre o nosso mundo, longe dessoutro em que vive Jamal K. Malik, um servente de chá em Mumbai, a Bombaim de outras eras.


Só quando passou o genérico final percebi que o realizador se chamava Danny Boyle, o autor de um dos meus filmes preferidos, na forma e no conteúdo: “Trainspotting”. O que explica algumas coisas. “Slumdog Millionaire” demonstra como um conto de fadas pode ser uma obra militante. Possui aquela realidade ferina que encontramos na boa caricatura: usa o humor e a verdade. Embora o enredo principal seja o de uma sempre eterna busca do amor e da felicidade, pelo caminho mostra-nos a Índia como ela é: não o tigre tecnológico, com brutos crescimentos económicos, ou a maior democracia do mundo, em número de votantes, mas um atraso de vida feito país.

Nessa Índia, ainda se pode morrer com uma paulada na cara por se praticar a religião errada, ou chafurdar nas lixeiras por se encontrar órfão, ou ser-se torturado pela polícia por mera suspeição. Sobretudo, nessa Índia, é-se o que se nasce. O bairro, a religião, a casta de origem determinam a vida possível e funcionam como barreiras que mantêm cada um no “seu lugar”. Como Jamal não passa de um servente de chá e vive em Juhu, um “slum”, o apresentador do concurso sente-se à vontade para o achincalhar diante de milhões de espectadores. A realidade quotidiana, no entanto, revela-se pior ainda: um intocável pode morrer de sede numa cidade de milhões sem que alguém se proponha à caridade de lhe dar um copo de água.

Desconhecíamos que esta Índia existia? Não, mas habituámo-nos a ouvir falar dela em estatísticas anuais ou notícias de oitava página de jornal, com números de mortes e feridos e palavras vãs como tragédia ou desastre – normalmente, o segundo ou terceiro mais grave dos últimos xis anos. Aqui levamos com ela com imagens em grande plano de gente com nomes e caras e tudo.


Voltando à senhora que comigo partilhava o braço da cadeira. O tapar dos seus olhos simboliza, num gesto simples, toda uma postura do Ocidente para com os deserdados deste mundo. Vivemos – comparativamente – uma existência confortável, de ecrãs de plasma e férias de mar. De automóveis a crédito e velhices octogenárias. Dos quatro cavaleiros do apocalipse, só o da morte ainda nos apoquenta, já que os da peste, da fome e da guerra andam a varejar por outros paragens, mais longínquas, como a Mumbai de Jamal.

Por isso, tapamos, todos ao mesmo tempo e eu incluído, os olhos. Preferimos não acreditar. Julgamos que o que não se vê não existe. Na realidade, apreciamos, nas Índias e nas Áfricas, o exotismo e um certo ideal de inocência perdida mas seríamos incapazes de viver, por um segundo que fosse, o verdadeiro dia-a-dia da maior parte daquela gente. Mais: seríamos, provavelmente, incapazes de sobreviver nas selvas quotidianas, de Bombaim a Caracas, de Joanesburgo a Mogadíscio.


Acomodámo-nos muito. Por um lado, isso é bom: quer dizer que soubemos construir uma sociedade em que nos sentimos melhor do que na caldeirada dos bairros de lata indianos e que já não poderíamos viver sem ela. Na óptica de lá, já nos saiu a sorte grande. Por outro lado, isso é mau: tornámo-nos indiferentes, perdendo a capacidade de nos condoer. O que Danny Boyle pretende, quando nos mostra um plano a cegarem uma criança, é que soframos. E devemos fazê-lo, por duas razões. Porque só assim percebemos. E porque só assim manifestamos compaixão para com aquelas crianças que aquela criança de celulóide representa. O que, na realidade, é o mínimo dos mínimos. Compaixão vem de um vocábulo latino que significa “comunidade de sentimentos” e tem feito alguma falta nos tempos que correm.

Ver. Não tapar os olhos. Condoer-nos. Eis o ponto de partida para que o conforto das nossas vidas não nos aliene e não as torne na descrição vácua narrada em “Trainspotting” pela personagem principal, Mark “Rent-boy” Renton, para justificar a sua toxicodependência:

“Choose Life. Choose a job. Choose a career. Choose a family. Choose a fucking big television, choose washing machines, cars, compact disc players and electrical tin openers. Choose good health, low cholesterol, and dental insurance. Choose fixed interest mortgage repayments. Choose a starter home. Choose your friends. Choose leisurewear and matching luggage. Choose a three-piece suite on hire purchase in a range of fucking fabrics. Choose DIY and wondering who the fuck you are on Sunday morning. Choose sitting on that couch watching mind-numbing, spirit-crushing game shows, stuffing fucking junk food into your mouth. Choose rotting away at the end of it all, pissing your last in a miserable home, nothing more than an embarrassment to the selfish, fucked up brats you spawned to replace yourselves. Choose your future. Choose life... But why would I want to do a thing like that? I chose not to choose life. I chose somethin' else. And the reasons? There are no reasons. Who needs reasons when you've got heroin?”

Terminado este texto, dou comigo a reconhecer que também tenho feito pouco. Vou ter que fazer mais. Até porque, para encontrar os Juhus deste mundo, não preciso de ir à Índia. Basta-me rolar uns quilómetros.


1 comentário:

NunoF disse...

Mas por favor, não vás agora também tu atirar crustáceos ao Atlântico...