domingo, abril 27, 2008

O meu Vinte e Cinco de Abril

Na manhã de vinte e cinco de Abril de 1974, a minha mãe acordou-nos à hora do costume. Só que nos anunciou, com um ar que recordo grave, que não iríamos à escola porque estava a acontecer uma revolução. E saiu para o trabalho, sem mais explicações.

Eu não sabia bem o que era uma revolução. Faláramos nas aulas da primária da Revolução Francesa, que trouxera liberdade, fraternidade e igualdade em tons de vermelho, branco e azul. A imagem do livro de História, pintada a aguarela, representava o general Lafayette a andar em passo de ganso frente a uma linha de soldados de farda de gala e tricórnio a tocar tambores, durante a Festa da Fraternidade, tudo de libré na cabeça. Outra fonte de confiança encontrava-se nas minhas leituras do Tintin, em que aparecia muito o general Alcazar, o qual volta e meia alternava no poder com o general Tapioca, recorrendo ambos ao método revolucionário para subjugar o adversário, com tropas de cartucheiras cruzadas no peito, uma espingarda na mão e uma garrafa de tequilha na outra, em permanente bezana. Mas havia uma imagem que no meu íntimo mais fortemente representava a revolução: o mexicano zapatista das bandas desenhadas, de bigodes farfalhudos, poncho, chapéu sombreiro e máscara de zorro, a arremessar bombas esféricas, negras e de pavio curto, que lhe rebentavam por vezes na cara sem outro efeito que o deixar mascarrado.

Durante o dia, gozei a conquista revolucionária de uma jornada de gazeta forçada. Pela televisão, fui seguindo os eventos. Não recordo ninguém de libré nem de poncho, embora houvesse muitos bigodes farfalhudos. Afinal, quem estava a fazer a revolução eram meros magalas, daqueles que eu via pelas ruas nos dias de licença, ou na televisão, pelo natal, a debitar em cinco segundos: “Barnabé Policarpo, de A-dos-cunhados, envia um beijo a pai, mãe, irmãos, tios, primos e avó entrevada, que nós por cá ficamos be….” e já o microfone tinha fugido para o Zé Maria de Alcoutim recitar a mesma ladainha.

Em vez de bombas esféricas usavam espingardas e tanques a sério, não como aquele que tínhamos na marquise, mas como os dos filmes de guerra, com um grande canhão que nem o do cartaz gigante que, no Monumental, anunciava “A batalha das Ardenas”. As ruas pareciam cheias de gente, de óculos de massa, gola alta e calças à boca-de-sino, apinhadas como se no futebol. A certo momento, a minha empregada (à época dizia-se criada) indignou-se com as imagens da detenção do Marcelo Caetano. Expliquei-lhe, do alto das minhas habilitações literárias, que as revoluções eram mesmo assim, e que ele havia de voltar no momento próprio, de cartucheiras, carabina e tequilha, para trocar com estes que entravam agora ao serviço.

No dia seguinte, a televisão transmitiu, de uma cadeia em Caxias, os mesmos soldados a libertarem presos, que saíam eufóricos, acartando malas, abraçando efusivamente a família que os esperava, gritando nomes e vivas, com muitos “pás” à mistura. Não percebi bem a ideia dos tropas em soltar aquela malta e inquietei-me que, com tanta bandidagem de repente à solta, a cidade ficasse menos segura. Foi então que o meu pai me explicou que aquelas pessoas eram presos políticos, gente detida por ter ideias diferentes dos que mandavam.

Fiquei confuso. Sempre tinha aprendido que as pessoas podiam ser presas se fizessem o mal e um mal bem tipificado: bater, roubar, matar. Prender quem não estivesse de acordo connosco não fazia muito sentido no quadro de valores em que eu fora educado, em que o bem era o bem e o mal era o mal, independentemente de quem o praticasse. O bem e o mal eram conceitos absolutos e não definidos por oposição ao que pensava este ou aquele. Para além disto, na escola, incentivavam-nos a levantar o braço e a dizer o que pensávamos. Alguns colegas meus recebiam más notas por não o fazer, mas não por pensar de forma diferente. Prender gente só por isto não lembraria ao careca, mas pelos vistos lembrara a alguém.

Por estas razões, a minha sensibilidade ofendeu-se e senti-me indignado que tivessem engaiolado pessoas que, para mim, não tinham feito nada. Sugeri ao meu pai que os antigos captores, que tinham perpetrado tal injustiça, tivessem o castigo adequado: atados a uma via-férrea até que um comboio os estraçalhasse, o pior tormento que eu – ainda solteiro – conseguia conceber. Em resposta, recebi dele a primeira de muitas lições sobre o que é a democracia: “Não, porque a democracia não é vingativa”. Lição número um: uma democracia, para funcionar, deve ser moralmente superior. Colocar num envelope, selar e entregar no nº 1600 da Pennsylvania Avenue, em Washington.

Nos dias seguintes tive direito a novas lições. Fui entendendo não só o que se passava nas ruas, mas tive a explicação para pequenas coisas passadas que eu, no próprio momento, não entendera. Recordei-me de, muito pequeno, ir no carro, no banco de trás e o meu pai apontar para algo que levava ao lado e dizer à minha mãe “este livro foi proibido”. Como nesse tempo não se usava cinto de segurança, pude-me pendurar nas costas do banco corrido do Simca, muito curioso em saber como seria um livro proibido. Para meu desapontamento, vi um calhamaço igual aos outros que ele lia, com capa, lombada e folhas. Mas como poderia aquele livro ser proibido, se estava ali? Percebia que um gesto fosse proibido, como entrar de carro nas ruas que tinham uma placa vermelha com um risco branco ou mexer em facas, mas não conseguia conceber que um objecto, algo existente e que eu podia tocar se me pendurasse mais no banco do Simca e esticasse a mão, fosse proibido. Mais: parecia-me ridículo. E de facto era-o, como compreendi antes que chegasse ao fim o mês de Abril de 74.

Fez-se-me também claro porque minha mãe me interditara, com cara de caso e uma firmeza inusitada, de repetir uma anedota que eu aprendera na escola: pescadores pescavam uma sardinha, depois concluíam que não tinham dinheiro nem para batatas, nem para legumes, nem para azeite para acompanhar o peixe e decidiam devolvê-lo ao mar; de imediato a sardinha começava a pular fora da água, dando vivas a Marcelo Caetano. Em Abril de 74 compreendi o receio da minha mãe, mas pareceu-me absurdo, como ainda hoje me continua a parecer, que um regime se preocupasse com anedotas deste fraco calibre e que mães proibissem a sua contagem por temor, que não por bom gosto.

Seguiram-se dois anos em que tive a percepção que o tempo, à minha volta, tinha acelerado como a nave “Enterprise”: “Warp” cinco ou seis, pelo menos. Aconteceram coisas grandes, outras graves, muitas divertidas, com folclore vário à mistura. Foram as dores de crescimento do presente.

Nós, crianças, tínhamos a mania que sabíamos de política, adoptávamos partidos e emblemas como quem torce por um clube, pedíamos para ir às manifestações, jogávamos jogos de tabuleiro em que saíam cartões que diziam “pertenceu à PIDE/DGS, fica uma vez sem jogar”. Depois a revolução serenou, como todas as revoluções um dia serenam, e deixou um legado a esses miúdos como eu.


Hoje em dia, poderíamos discutir, com outra maturidade, com outra distância, os ganhos e as perdas do regime salazarista. Poderíamos focar a pobreza ética, a debilidade da visão, o insucesso económico, a anomia social. Mas tudo isto são canhões demasiado grandes para tão pequena mosca. Para debate conclusivo, bastaria apenas perguntar aos pequenos de 2008 sobre que sentido teriam para elas o medo de contar anedotas, a proibição de livros ou a prisão de pessoas só por não concordarem com outras. Estou certo que achariam estas coisas ridículas.

A revolução de Abril não foi uma vitória sobre o fascismo. Foi uma vitória sobre o ridículo. Um ridículo com medo de livros, de ideias ou de anedotas na boca das crianças. Um ridículo de fato coçado e botas, balhelha e míope. Mas um ridículo que às vezes matava.

Para terminar: sei que alguns vão achar parolo ou popularucho, comuna ou esquerdizante ou outra abéculice qualquer do mesmo calibre, mas eu estou-me a … nas tintas, e de alto! Que viva o Vinte e Cinco de Abril, sempre!

sexta-feira, abril 04, 2008

U akordo orthugráphiko

Tive uma educação bilingue, o que me facultou o privilégio de assassinar duas gramáticas e espezinhar duas ortografias. Dava erros tanto a português como a francês, com a mesma desenvoltura e igual cara-de-pau. Por alguma razão misteriosa, beneficiei de uma certa condescendência dos professores de português, mas não dos de francês, que se entretiveram catorze anos a fazer-me a vida negra, os cães!

Certa vez, num ditado em língua francesa, consegui acumular asneiras suficientes numa única palavra para levar logo ali com um zero sobre vinte. O professor, pai de uma coleguinha esquálida que sofria de baixas de tensão quando a interrogavam na sala de aula mas que era hipertensa nas festarolas de sexta à noite, tinha fama e proveito de tramado: cortava quatro valores por cada ocorrência que assinalasse na folha de ponto, com um frenético círculo vermelho, por mínima que fosse. Para além deste mau feitio, ainda era fanhoso e as palavras saíam-lhe coladas umas às outras pelo cuspo que se ia acumulando nas comissuras dos lábios, o que lhe dava um ar de buldogue em hora de refeição.

Recordo que era um texto de Camus, tirado do “Estrangeiro”, quando Meursault observa os seus conterrâneos passeando endomingados pela cidade. O feroz docente foi narrando nasalmente, enquanto circulava desconfiado entre carteiras. A dado passo, ditou uma frase que referia uns sapatos de biqueira quadrada – “des souliers à bouts carrés”. Só que eu, talvez na lua ou então confundido pela verborreia assalivada do professor, transformei a tirada em “souliers zaboucarés”, um adjectivo que me pareceu exótico e apropriado aos pezinhos da personagem. Resultado: levei menos quatro pelo “à”, outro tanto pelo “bouts”, idem pelo “carrés”, ainda quatro por inventar uma palavra que não existia e os quatro finais possivelmente como bónus para não ser parvo. Zero.

Bom! Com tais dotes linguísticos e posto perante o problema de ter que acabar os meus estudos liceais, vi-me na contingência de ter que adoptar uma estratégia adequada para as cadeiras humanísticas. Optei por aquela que o Paços de Ferreira utiliza com grande proveito no campeonato da primeira divisão: mais vale não perder do que perder. Lutei pois pelo mediano dezito e dediquei-me mas é às ciências, onde a frase mais complicada que precisava de escrever era “implica que”. E assim obtive meus canudos.

Entretanto passou tempo, o tempo que tudo cura, mesmo algumas faltas de jeito. Fui lendo, bastante, e escrevendo, um pouco. Pedia opiniões e forçava-me a corrigir. Diziam-me: “tens períodos muito longos e vírgulas a mais”. Escrevia e logo em seguida obrigava-me a retirar trinta por cento das vírgulas e introduzir o mesmo número de pontos finais, como se fossem objectivos de gestão. Fui colmatando as minhas lacunas ortográficas. Evoluí. Sem grandes conceitos teóricos, como os músicos que tocam de ouvido, até fui recebendo elogios pelos textos que alinhava. E assim cheguei aos quarentas, mais ou menos seguro dos meus efes-e-erres.


Há dias, li no jornal que o Brasil e Portugal iam finalmente pôr em prática um acordo ortográfico, celebrado nos anos noventa, que alterava quase dois por cento do léxico. Li, não sem alguma perplexidade. Então não é que é logo agora, que eu finalmente conseguia alinhar sem vergonha duas frases no papel, que aparece o raio deste acordo mudando, à má fila e sem avisar, a escrita de uma catrefa de palavras? Como diria o meu bisavô, posto perante a reforma ortográfica da primeira república: já me phoderam!

Corri a verificar as alterações. Não sendo realmente muitas, são de monta. Desaparece, por exemplo, o cê mudo. Logo, o acto passa a ato. Acho fraco e de pouco respeito para com um vocábulo tão simbólico, que usamos para significar o momento de grande pagode responsável pela nossa presença neste triste mundo, onde se mudam regras a meio do campeonacto. Digo, do campeonato. O cê do acto tinha um valor simbólico importante, representando as partes de um todo: afinal, os principais participantes no acto escrevem-se todos com cê no princípio. Todos os quatro, se não houver ninguém aleijado. A palavra acto tem uma pujança que não encontramos em ato, que é vocábulo que não ata nem desata. O cê do acto é mudo mas não está calado: o acto é mais akto do que ato. Um acto sem cê é um acto astrado, que não chega a ser onsumado.

E facto, que passa a fato? Há frases que perdem, de facto, em sentido o que ganham em cómico. Como a senhora, confessando à amiga: “o meu marido anda a enganar-me, de facto”. Agora passa a enganar de fato, levando a cabo o traiçoeiro acto – digo, ato – discretamente pela braguilha da calça cinzenta, sem se dar à maçada de tirar a gravata.

Será que os beligerantes, pondo fim à guerra, vão assinar um pato? Imagino os generais, aprumados e reluzentes nos seus uniformes de cerimónia, de caneta em riste, agarrando o marreco a quatro mãos para poderem firmar a rendição. Talvez exagere: não tenho a certeza que o acordo vá tão longe. Mas que o pê de óptimo também foi à vida, lá isso foi. Assim sendo, no final do ato poderemos passar a sussurrar, com enlevo, enquanto acendemos o tradicional cigarro: “querida, foi ótimo”.

Como afectará o acordo as marcas comerciais? Calculo que o X-acto passe a X-ato, isto no exato segundo em que o acordo entrar em vigor, que não sabemos bem quando é, já que exacto também vai à vida.

As alterações são variadas, e vão-nos permitir que quando viajarmos ao Cairo, na receção do hotel, o diretor (um corruto de mau aspeto) nos diga, perentório, que nos desertos do Egito não há catos mas há reptis.

Aparecem também muitas novas regras à volta do hífen. Uma consequente ironia histórica é que antissemita se passa a escrever com “ss”, o que não espanta ninguém.

E entram no nosso abecedário o dâbliu, o ípsilon e o capa, uma boa notícia para os polícias franceses, que vão poder usar képi, e para os amantes de finlandês. A possibilidade de poder usar o “k” com mais liberalidade agradará também à nossa digital juventude, grande consumidora de capas nas suas mensagens de SMS, que pode agora ansiar por um futuro em que o “esse-eme-essês” se torne língua oficial. Provavelmente, na reforma ortográfica de 2040, os “ke keres?” e os “kando axares ké pussível” deixarão de ser grandes asneiradas.

Já expressei o meu mau humor perante as mudanças e a perspectiva de ter que continuar a engrossar a conta do Bill Gates, agora pela aquisição de um “upgrade” do “Word”, para aí uma “Orthographic Deal Deluxe Edition”. Mas tenho que aceitar que, por bera que esteja a minha disposição, a língua evolui, fatalmente como o destino, e não espera por ninguém. Atente-se no seguinte exemplo:

“E que mais querya morrer em o provar, fazendo seu dever, que de tal guisa se partir, ca dos synnaes e ventuiras de boos hoomêes nom ham fazer conta onde fossem certos que obram dereitamente, mais devyam continuar ataa mais nom poderem. E que, nom embargando todas suas rezõoes, com a graça do senhor deos entendia filhar a cidade. E por sua merceee foy melhor que se podia peensaar.”

Que acham? Conversa de putos no Messenger entre Chelas e o Seixal? Não. É o nosso rei D. Duarte, escrevendo no “Leal Conselheiro”, explicando as razões que levaram seu pai, o rei D. João I, a arriscar a conquista de Ceuta contra a opinião dos seus … euh... konselheiros.