sexta-feira, abril 04, 2008

U akordo orthugráphiko

Tive uma educação bilingue, o que me facultou o privilégio de assassinar duas gramáticas e espezinhar duas ortografias. Dava erros tanto a português como a francês, com a mesma desenvoltura e igual cara-de-pau. Por alguma razão misteriosa, beneficiei de uma certa condescendência dos professores de português, mas não dos de francês, que se entretiveram catorze anos a fazer-me a vida negra, os cães!

Certa vez, num ditado em língua francesa, consegui acumular asneiras suficientes numa única palavra para levar logo ali com um zero sobre vinte. O professor, pai de uma coleguinha esquálida que sofria de baixas de tensão quando a interrogavam na sala de aula mas que era hipertensa nas festarolas de sexta à noite, tinha fama e proveito de tramado: cortava quatro valores por cada ocorrência que assinalasse na folha de ponto, com um frenético círculo vermelho, por mínima que fosse. Para além deste mau feitio, ainda era fanhoso e as palavras saíam-lhe coladas umas às outras pelo cuspo que se ia acumulando nas comissuras dos lábios, o que lhe dava um ar de buldogue em hora de refeição.

Recordo que era um texto de Camus, tirado do “Estrangeiro”, quando Meursault observa os seus conterrâneos passeando endomingados pela cidade. O feroz docente foi narrando nasalmente, enquanto circulava desconfiado entre carteiras. A dado passo, ditou uma frase que referia uns sapatos de biqueira quadrada – “des souliers à bouts carrés”. Só que eu, talvez na lua ou então confundido pela verborreia assalivada do professor, transformei a tirada em “souliers zaboucarés”, um adjectivo que me pareceu exótico e apropriado aos pezinhos da personagem. Resultado: levei menos quatro pelo “à”, outro tanto pelo “bouts”, idem pelo “carrés”, ainda quatro por inventar uma palavra que não existia e os quatro finais possivelmente como bónus para não ser parvo. Zero.

Bom! Com tais dotes linguísticos e posto perante o problema de ter que acabar os meus estudos liceais, vi-me na contingência de ter que adoptar uma estratégia adequada para as cadeiras humanísticas. Optei por aquela que o Paços de Ferreira utiliza com grande proveito no campeonato da primeira divisão: mais vale não perder do que perder. Lutei pois pelo mediano dezito e dediquei-me mas é às ciências, onde a frase mais complicada que precisava de escrever era “implica que”. E assim obtive meus canudos.

Entretanto passou tempo, o tempo que tudo cura, mesmo algumas faltas de jeito. Fui lendo, bastante, e escrevendo, um pouco. Pedia opiniões e forçava-me a corrigir. Diziam-me: “tens períodos muito longos e vírgulas a mais”. Escrevia e logo em seguida obrigava-me a retirar trinta por cento das vírgulas e introduzir o mesmo número de pontos finais, como se fossem objectivos de gestão. Fui colmatando as minhas lacunas ortográficas. Evoluí. Sem grandes conceitos teóricos, como os músicos que tocam de ouvido, até fui recebendo elogios pelos textos que alinhava. E assim cheguei aos quarentas, mais ou menos seguro dos meus efes-e-erres.


Há dias, li no jornal que o Brasil e Portugal iam finalmente pôr em prática um acordo ortográfico, celebrado nos anos noventa, que alterava quase dois por cento do léxico. Li, não sem alguma perplexidade. Então não é que é logo agora, que eu finalmente conseguia alinhar sem vergonha duas frases no papel, que aparece o raio deste acordo mudando, à má fila e sem avisar, a escrita de uma catrefa de palavras? Como diria o meu bisavô, posto perante a reforma ortográfica da primeira república: já me phoderam!

Corri a verificar as alterações. Não sendo realmente muitas, são de monta. Desaparece, por exemplo, o cê mudo. Logo, o acto passa a ato. Acho fraco e de pouco respeito para com um vocábulo tão simbólico, que usamos para significar o momento de grande pagode responsável pela nossa presença neste triste mundo, onde se mudam regras a meio do campeonacto. Digo, do campeonato. O cê do acto tinha um valor simbólico importante, representando as partes de um todo: afinal, os principais participantes no acto escrevem-se todos com cê no princípio. Todos os quatro, se não houver ninguém aleijado. A palavra acto tem uma pujança que não encontramos em ato, que é vocábulo que não ata nem desata. O cê do acto é mudo mas não está calado: o acto é mais akto do que ato. Um acto sem cê é um acto astrado, que não chega a ser onsumado.

E facto, que passa a fato? Há frases que perdem, de facto, em sentido o que ganham em cómico. Como a senhora, confessando à amiga: “o meu marido anda a enganar-me, de facto”. Agora passa a enganar de fato, levando a cabo o traiçoeiro acto – digo, ato – discretamente pela braguilha da calça cinzenta, sem se dar à maçada de tirar a gravata.

Será que os beligerantes, pondo fim à guerra, vão assinar um pato? Imagino os generais, aprumados e reluzentes nos seus uniformes de cerimónia, de caneta em riste, agarrando o marreco a quatro mãos para poderem firmar a rendição. Talvez exagere: não tenho a certeza que o acordo vá tão longe. Mas que o pê de óptimo também foi à vida, lá isso foi. Assim sendo, no final do ato poderemos passar a sussurrar, com enlevo, enquanto acendemos o tradicional cigarro: “querida, foi ótimo”.

Como afectará o acordo as marcas comerciais? Calculo que o X-acto passe a X-ato, isto no exato segundo em que o acordo entrar em vigor, que não sabemos bem quando é, já que exacto também vai à vida.

As alterações são variadas, e vão-nos permitir que quando viajarmos ao Cairo, na receção do hotel, o diretor (um corruto de mau aspeto) nos diga, perentório, que nos desertos do Egito não há catos mas há reptis.

Aparecem também muitas novas regras à volta do hífen. Uma consequente ironia histórica é que antissemita se passa a escrever com “ss”, o que não espanta ninguém.

E entram no nosso abecedário o dâbliu, o ípsilon e o capa, uma boa notícia para os polícias franceses, que vão poder usar képi, e para os amantes de finlandês. A possibilidade de poder usar o “k” com mais liberalidade agradará também à nossa digital juventude, grande consumidora de capas nas suas mensagens de SMS, que pode agora ansiar por um futuro em que o “esse-eme-essês” se torne língua oficial. Provavelmente, na reforma ortográfica de 2040, os “ke keres?” e os “kando axares ké pussível” deixarão de ser grandes asneiradas.

Já expressei o meu mau humor perante as mudanças e a perspectiva de ter que continuar a engrossar a conta do Bill Gates, agora pela aquisição de um “upgrade” do “Word”, para aí uma “Orthographic Deal Deluxe Edition”. Mas tenho que aceitar que, por bera que esteja a minha disposição, a língua evolui, fatalmente como o destino, e não espera por ninguém. Atente-se no seguinte exemplo:

“E que mais querya morrer em o provar, fazendo seu dever, que de tal guisa se partir, ca dos synnaes e ventuiras de boos hoomêes nom ham fazer conta onde fossem certos que obram dereitamente, mais devyam continuar ataa mais nom poderem. E que, nom embargando todas suas rezõoes, com a graça do senhor deos entendia filhar a cidade. E por sua merceee foy melhor que se podia peensaar.”

Que acham? Conversa de putos no Messenger entre Chelas e o Seixal? Não. É o nosso rei D. Duarte, escrevendo no “Leal Conselheiro”, explicando as razões que levaram seu pai, o rei D. João I, a arriscar a conquista de Ceuta contra a opinião dos seus … euh... konselheiros.

5 comentários:

Cristina Rodo disse...

Karlinhos, estiveste muito bem!!!
Sim senhor, os meus parabéns... Quando li o título do post pensei "ai, ai, ai... lá vem mais um daqueles posts de que não percebo um k...".
Mas não... está acessível, bem esgalhado e divertido.
U R the Man! ;)

PW$$$ disse...

Bravo!
A aldeia gaulesa resiste ainda e sempre ao invasor!

NunoF disse...

Meu caro Carlos, estás algo equivocado.

Apesar das mudanças a nível de ortografia, as pronúncias próprias de cada país continuam iguais.

De forma a contemplar as diferenças fonéticas existentes, aceitam-se duplas grafias em algumas palavras (ex.: António/Antônio, facto/fato, secção/seção).

O que muda realmente não é assim tão radical quanto isso (pelo menos não tão grave quanto o Vasco Graça Moura diz, que ainda há dias apelidou de anti-constitucional, perdão, anticonstitucional este tratado.

Presumo que no início do século XX também houve uns tipos que não gostaram nada de se passarem a enviar àquela parte com F em vez de Ph...

;-)

NunoF disse...

Btw, o link da Wikipedia é bastante informativo.

p.s. Finalmente o "k", "w" e "y" entram no alfabeto oficial.

As Kátias, Wandas e Yolandas deste mundo já podem respirar de alívio!

JPG disse...

Peço imensa desculpa, desde já, por ter deixado de ler o seu "post" a partir do parágrafo iniciado a palavras "As alterações são variadas" mas, confesso, é para mim tarefa realmente insuportável levar com a carga de "neologismos" e calinadas a granel que o AO implica. Os meus cumprimentos pelo texto dali para cima, porém, escorreitamente legível como cumpre.

Duas ressalvas, no entanto.

A entrada lexical (lema, em jargão linguístico) FACTO manterá dupla grafia, como se pode ver na base-de-dados atinente (MorDebe): http://www.portaldalinguaportuguesa.org/index.php?sel=exact&query=facto&action=simplesearch&base=form .

Quanto ao lema PACTO, o qual, de resto, sendo um bonito lema, a calhar para universal e tudo, nunca terá passado pela cabeça de ninguém, digo eu, nem do mais careca dos burocratas que tal coisinha cozinharam, português ou brasileiro, mudá-lo de honesto substantivo para a condição de pobre palmípede, ou assim. Ficará como sempre foi, por conseguinte, cá e lá: http://www.portaldalinguaportuguesa.org/index.php?sel=exact&query=pacto&action=simplesearch&base=form .
Saúde.