sábado, março 15, 2008

A gente que madruga

Provavelmente o último alfacinha a fazê-lo, entrei finalmente na Byblos, a nova e tão publicitada mega-livraria de Lisboa. Gostei. Contra as expectativas que a berraria mediática me impingira, achei-a pouco mega e muito livraria: tem livros, tem luz, tem recato. Apreciei, como se aprecia uma prenda inesperada, a frase de Jorge Luís Borges inscrita numa das paredes, encimando uma larga e bem recheada estante: “sempre pensei que o paraíso fosse uma espécie de biblioteca”. Faz sentido: um pouco de teologia barata levar-nos-á a concluir que havendo livros divinos e autores tocados por Deus, sem dúvida encontrar-se-ão todos no paraíso, que é o lugar das coisas boas.

Borges constará sempre de qualquer pequena lista dos meus ene escritores favoritos. Sobre livros, sabe do que fala: escreveu contos fantásticos sobre calhamaços que se liam circularmente e bibliotecas de geometrias e propriedades raras. Livros sobre livros e sobre lugares de livros. E quando não, escreveu sobre pessoas reais que só poderiam na realidade ser personagens de outros livros, que não dele.

Voltando à Byblos e deixando o Borges lá onde ele deve estar, refastelado numa nuvem acolchoada a folhear algum compêndio divinal, informo que padeço de doença neurológica que me impede de sair de uma livraria de mãos a abanar. Compro, portanto, mais leitura do que aquela que consigo ler. Mantenho a esperança que quem me emprega perceba finalmente, um belo dia, o logro em que caiu e me ofereça uma indemnização e uma reforma antecipada que me permitam pôr em dia as prateleiras de leitura que tenho em atraso.

Desta feita, e agora que a fotografia regressou à esfera central dos meus interesses, comprei um pequeno volume da Taschen sobre Robert Doisneau.


De entre a centena de magníficas fotos que o livrinho reproduz, houve uma que me captou a atenção e que abaixo reproduzo. Mau grado esta minha preferência, reconheço que não possui nem a originalidade temática, nem o enquadramento inesperado que fazem a glória de outras fotografias deste mestre. Procurei-a em vão na “internet”, apesar desta disponibilizar inúmeras galerias com fotografias de Doisneau. Provavelmente não fará parte das suas imagens mais conhecidas. “Scannei-a” por isso do próprio livro – o que, infelizmente, lhe retirou detalhe e qualidade.



Representa um operário, o senhor Mouchonnet, engastador de jóias, atarefado no seu labor. A legenda proposta por Doisneau esclarece-nos que se trata do melhor operário de França. O que me chamou a atenção nesta fotografia e nela me deteve mais demoradamente? A começar, a construção concêntrica: ao meio, a obra em progresso – o maçarico, o alicate e a jóia que a chama fustiga. Ao seu redor, o artífice: o rosto e as mãos. Depois, por detrás, o ambiente industrial: a oficina e, ainda mais além, a fábrica. Destes círculos, o operário é o que a composição mais destaca, pela artificiosa utilização da luz.

Continuando, o conteúdo: vemos um homem de idade, de mãos rugosas, até algo toscas. A que segura o alicate aparece amplificada pela perspectiva, com dedos grossos, apertando com força segura as pegas da ferramenta. A outra, pelo contrário, dir-se-ia leve, mas firme, manejando uma fina vareta, trabalhando a jóia. O olhar é vivo, porém tranquilo e talvez até um pouco cansado, mas, por outro lado, muito focado. Este homem está concentrado, a fazer algo realmente importante. Conseguimo-lo imaginar só naquela oficina, tranquilo no seu mester, num silêncio apenas pontuado pelo sopro do maçarico, sem a pressão do tempo, a engastar uma pedra num anel que selará um noivado feliz.

A testa enrugada, o cabelo branco já sumido, os óculos auxiliando a vista, dão-nos uma medida da idade e das marcas que o tempo deixa, mas também uma secreta lição de serenidade. A fotografia foi tomada na Rue du Mail, em 1941. Sabendo isto, podemos deduzir uma biografia do senhor Mouchonnet, imaginária, mas com alguma probabilidade realista: terá nascido pelos anos 1880; no início do século, seria possivelmente aprendiz junto de um mestre engastador, talvez depois de uma infância de algum aperto; eventualmente, viveu o horror das trincheiras em 1915. Na altura da foto, sofria a amargura de ver a sua terra invadida pela barbárie. Mas mesmo arrastando como uma canga esta história triste, o homem que temos na fotografia alheia-se na hora de exercer o seu ofício. Pelo contrário: no seu labor, conta-nos uma história diferente da sua própria história. Uma história de pacífica dignidade, de prioridade ao ofício e de amor sofrido. Naquela bancada, o senhor Mouchonnet é mais do que ele. Representa milhares de artesãos e representa uma certa ética: a imagem podia intitular-se “A paciência”, “A minúcia”, “A nobreza” ou, mais simplesmente, “O Trabalho”.


Em fotografia existe o conceito de profundidade de campo, definido como o conjunto dos sucessivos planos em que a imagem se apresenta focada. Por extensão de ideias, poderíamos desenvolver um conceito análogo a que chamaríamos “profundidade de tema”: esta seria tanto maior quanto maior fosse o conjunto de temas abordados, evidenciados ou sugeridos, mas presentes na obra. Tal conceito aplica-se bem à fotografia como a qualquer forma de criação artística. Uma criação com grande profundidade de tema é densa e rica. Permite que as nossas razão e emoção, irmãs que nunca deveriam andar separadas, se aventurem à descoberta, se divirtam e, ao mesmo tempo, se apetrechem de novas ideias que possam frutificar de maneiras diversas: pela simpatia, pela consciência, pela acção ou mesmo por via de nova criação.

Desde sempre, os homens procuraram que a sua obra artística dissesse mais do que aquilo que meramente os olhos vêem. Através de símbolos, de referências fugazes, de composições dinâmicas, concentraram no pequeno espaço de uma pintura, de uma partitura ou de um livro, os constituintes de um microcosmos mais ou menos complexo cuja descoberta por nós, que abordamos a obra, é uma forma de conversa intemporal com o autor, através da qual ele comunga connosco as suas ideias, o seu sentir e as suas vivências. Quando os nossos antepassados de Altamira ou do Tassili pintaram na rocha cenas de caça, não representavam apenas bichos e lanças. Contavam-nos da dificuldade e do risco, da esperança de uma boa caçada e da sobrevivência da tribo. As suas obras possuíam profundidade de tema.

A profundidade de tema não é condição necessária para uma grande obra, mas ajuda. O criador fecundo maneja este parâmetro como o fotógrafo roda o anel da sua objectiva à procura da profundidade de campo adequada, o que lhe permite transmitir o necessário e o suficiente.

Doisneau fotografou sempre com grande profundidade de tema, fugindo à platitude do mau fotojornalismo, que é hoje o mais das vezes pobre, quer em fotografia, quer em jornalismo. Disse: “apenas devemos fotografar quando nos sentimos cheios de amor pelo próximo”. Homem de extracção modesta, nunca esqueceu as suas origens. Testemunhou, com enorme sensibilidade e carinho, o dia do povo parisiense mais pobre, as suas alegrias e as suas agruras, as suas dificuldades e as suas lutas. As chapas que bateu suscitam entendimento, empatia e por vezes uma inesperada e saudável revolta. Num certo sentido, Doisneau foi um fotógrafo militante, de uma militância suave mas penetrante. Fotografias como a que figura abaixo, de uma criança que desce a ladeira em direcção à fábrica, ao mundo esconso do trabalho na linha, longe da vista como na Metropolis subterrânea de Fritz Lang, são disto exemplo.

Robert Doisneau comentou certa vez que “os rostos dos que madrugam são muito comoventes”. Existe, na nossa civilização ocidental, uma venerável e já longa tradição de arte empenhada ou pelo menos inquieta, que deu voz, brilho e respeito à vida, aos sucessos e aos desaires dos mais humildes. De Bruegel a Rosselini, de Goya a Hemingway, de Zola a Aquilino, de Gil Vicente aos The Clash, muitos buscaram o melhor de si para narrar a história dos que madrugam.

Hoje em dia, parece-me que esta preocupação da obra artística com os mais desmunidos atravessa tempos menos felizes. Não que não exista, mas não está de moda e é pena. Uma criação empenhada funciona como um grilo falante, soprando ao ouvido da sociedade, abrindo-lhe os olhos, indignando-a, gerando mudança. Sem essa forma de consciência colectiva, sem novos Doisneaus que nos acudam, corremos o risco de cair que nem uns patinhos e acreditar piamente, como o Cândido de Voltaire em pleno terramoto de 1755, que tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos.

segunda-feira, março 03, 2008

Pouca vergonha

Li há dias nos jornais que a administração do metropolitano de Londres, num rasgo de pudibunda clarividência, proibiu a afixação nos espaços do metro londrino de cartazes anunciando uma exposição, na Royal Academy of Arts, de obras do pintor renascentista alemão Lucas Cranach, o Velho. Parece que a veterana academia, fundada no século XVIII pelo rei Jorge III para promoção da pintura e outras belas-artes, esqueceu-se momentaneamente de que não é bem o Olímpia da Rua das Portas de Santo Antão e cometeu o grosseiro deslize de escolher para cartaz uma imagem pornográfica, uma Vénus datada de 1532. Ora Vénus, apesar de ver o seu nome frequentemente associado a uma peça de vestuário, costumava andar nua e tal exibição de carne foi considerada pelos pressurosos gestores imprópria para consumo dos – supõe-se que acéfalos – passageiros que se acotovelam pelas manhãs enevoadas nos vetustos corredores do “tube”, apressados e remelentos, a caminho de Marble Arch ou de Holborn.


Cranach, nascido Lucas Sunder em Kronach, na Alta Francónia, viveu entre 1472 e 1553. Em 1504, o eleitor da Saxónia, o duque Frederico III o Sábio, já lhe reconhecera dotes artísticos, dedicando-lhe uma renda de cinquenta florins e contratando-o como pintor ducal. Frederico III seria provavelmente um tarado sexual, sem as fortes referências morais dos administradores do metro londrino, para se pôr a delapidar o tesouro saxão com um autor de obras debochadas. Igualmente doidonas – ou pior – teremos que considerar os imperadores Maximiliano de Habsburgo e Carlos V, os quais, não sendo nenhuns badamecos, se deixaram pintar por Cranach. Ou Martinho Lutero, outro possível amante do porno, que foi amigo e compadre do desbragado pintor.

Naqueles tempos devassos, em que ainda não tinha sido providencialmente inventada a administração do metro de Londres para acabar com a pouca-vergonha, Cranach acabou por ser coberto de honrarias e vantagens por andar a pintar aquelas porcarias. Vivendo na cidade de Wittenberg, atribuíram-lhe o monopólio da venda de medicamentos, uma licença de impressor com direitos exclusivos de publicação da Bíblia, o posto de burgomestre, tudo coisas de bom rendimento que um ordinário daqueles não mereceria. Incompreensivelmente, até a igreja luterana reservou um dia feriado no calendário para o desavergonhado e incontinente artista.

Felizmente, o “board” do “underground” não dorme em serviço e, do alto da sua pureza de princípios e de dentro dos seus fatos de Saville Row, lá tratou de equiparar a maligna obra do pornógrafo Cranach ao pior ou melhor que ofereciam as páginas da “Gina”, esse verdadeiro manual de biologia do terceiro ano de liceu que pontificou nos escaparates lisboetas dos anos setenta, arregalando olhos e partindo pulsos.


Agora falando sério: eventos como este ou como a famosa histeria colectiva norte-americana a propósito do seio da Janet Jackson têm um ar inócuo, de tão ridículos. Mas não são. Parecem um eczema, mas são um tumor, minando a sociedade por dentro. Revelam uma visão puritana, estreita – melhor dizendo, estúpida – da vida, que está no poder em muitos sítios, dos Estados Unidos ao mundo muçulmano e que começa a fazer preocupantes incursões na Europa Ocidental, até em locais tão insuspeitos como a Grã-Bretanha. Esta tendência contraria uma evolução libertária dos anos sessenta e setenta que enformou a nossa educação e que muitos dávamos por adquirida. Excesso de optimismo…


A visão do corpo como algo eminentemente negativo, corrupto e corruptível, tem raízes profundas na História e está bem estabelecida nas religiões, que opõem geralmente as actividades do espírito, superiores, às do corpo, meramente rasteiras. Encontramo-la em Platão, na sua teoria das Ideias, perfeitas por oposição à imperfeição das coisas reais – leia-se materiais. A influência platónica passou para dentro do Cristianismo através de São Paulo e depois de Santo Agostinho, que andou uns anos na paródia mais devassa e só depois se dedicou às coisas da santidade.

Santo Agostinho, antes de se tornar cristão e doutrinário do Catolicismo, foi adepto do Maniqueísmo, religião que concorreu com o Cristianismo pela maior quota de mercado no Baixo Império Romano, mas cuja influência perdurou muito para além da sua existência enquanto culto organizado. Se entendermos o Maniqueísmo, percebemos de onde vêm muitas das tontices que ainda rastejam no interior dos crânios dos puritanos dos nossos dias, de que os administradores do metropolitano de Londres são apenas um triste exemplo.

O Maniqueísmo foi fundado na Pérsia no século III por um tal Mani. Segundo este, no início de tudo havia dois reinos: o do Bem, simbolizado pela luz e o do Mal, pela escuridão. Viviam separados, mas do lado do Mal, por definição, não se sentiam lá muito bem. Um dia, o Diabo, que chefiava o reino do Mal, espreitou para o outro lado, achou piada e decidiu invadir o reino do Bem. Houve porrada cósmica, da qual resultou o mundo tal como o conhecemos. A matéria do universo resultou da decomposição dos corpos dos príncipes do mal. Ainda mais escatológico, a terra, o húmus, resultou das fezes dos mesmos malignos príncipes. Por isto, o Maniqueísmo determinava um mundo a preto e branco, dividido entre Bem e Mal, representados por Espírito e Matéria.

Tudo o que fosse material era mau, porque oposto ao espiritual, o qual era bom. A matéria decompunha-se, o espírito perdurava. Como consequência, aquilo que se relacionasse com o lado material da existência tinha uma conotação negativa: isso incluía o corpo, a sexualidade, gozo da matéria e fonte de mais matéria, e a mulher, indutora de sexualidade e, pela maternidade, vector de geração de mais matéria. Mas também o materialismo económico, que valoriza de “per se”o crescimento da componente material da vida.

Encontramos esta perspectiva, sob diversos graus e formas, mais ou menos explícita, nas grandes religiões modernas: os Cristianismos, o Judaísmo, os Islamismos ou o Budismo. Em determinadas circunstâncias, esta visão amplifica-se, dando origem a extremismos políticos e puritanismos morais. Para termos uma ideia do ponto irracional a que estas ideias podem chegar, veja-se o Mohammed Atta, um dos terroristas que pilotou um dos aviões que embateram nas “Twin Towers”. O moço deixou instruções expressas para que “mulheres grávidas ou pessoas não limpas” não se aproximassem do seu corpo, para se despedir. São de facto dois portentos de estupidez: já o pedido em si, mas também a esperança que lhe encontrassem qualquer pedaço maior do que um centímetro.


O puritano, no sentido mais lato, é aquele fulano que dorme mal à noite, atormentado pela ideia de que alguém, algures, se possa estar a divertir à grande. É essencialmente um obcecado sexual, que não pensa noutra coisa e vê mal em todo o lado. Tal e qual como os administradores do metro de Londres. Há que dar com os pés nessa malta nojenta, senão qualquer dia estamos a lapidar adúlteras e a excisar crianças.

Por isto, se por acaso pretenderem admirar a obra de Lucas Cranach, o Velho, na Royal Academy of Arts, façam-me um favor. Não apanhem o metro. Tomem um táxi ou vão a pé.