domingo, julho 22, 2007

Do rigor do texto


Perguntou-me um amigo se eu pensava usar de rigor nos meus textos do “Mataspeak”.

Respondi que sim, mas em bom rigor deveria primeiro ter tentado compreender rigorosamente de que rigor me falava o perguntante. O Dicionário Houaiss apresenta oito sentidos diferentes para o vocábulo. Entendo que aquele que melhor se aplicaria à pergunta seria “exactidão extremada; rectidão; precisão”. E neste caso a minha resposta afirmativa poderia ser, afinal, mentirosa. De exactidão extremada deverão preocupar-se os editores do “New England Journal of Medicine” e de precisão os fabricantes de cronómetros da “Tag-Heuer”, não eu ou o meu modesto blogue. Da rectidão, talvez já me interesse. Aliás, interpretei a questão que me fora posta no seguinte sentido: “escrevo para defender uma perspectiva, para estabelecer uma “verdade”, usando de seriedade?” Neste sentido, certamente restrito, penso ser rigoroso. Porque o exercício da escrita permite usar caminhos ínvios e na aparência incoerentes para chegar a uma compreensão das coisas, que por vezes não estão ao alcance de abordagens mais… euh… rigorosas. Deus escreve direito por linhas tortas e os homens às vezes também.

Associamos muitas vezes o rigor ao raciocínio dedutivo. Neste, de um conjunto de premissas retiramos uma conclusão que, no fundo, não traz mais informação do que a que já existia nas próprias premissas. Se eu pegar em duas frases que por alguma razão sei de fonte segura serem verdadeiras – por exemplo, “qualquer sportinguista é mais abonado do que qualquer benfiquista” e “eu sou sportinguista” – concluirei que sou mais abonado do que qualquer benfiquista, o que até parece razoavelmente evidente. A matemática funciona assim e por isso, por trás da sua aparente complexidade formal, reveste-se de uma enorme simplicidade: compõe-se de afirmações que se puxam umas às outras, de sucessivas verdades de La Palisse. Como temos que começar nalgum sítio, para servir de motor de arranque desta construção intelectual precisamos de umas verdades irrefutáveis, os axiomas, que irão servir de base a todas as outras. Algumas destas verdades básicas são evidentes na nossa óptica quotidiana, como por exemplo, estabelecer que um e zero não são iguais (com mais rigor, que os elementos neutros da adição e da multiplicação são diferentes). Outras, como a existência de um número imaginário que é igual à raiz quadrada de menos um, não fazem sentido físico nenhum mas permitem construir resultados práticos interessantes, como sejam sintonizar uma telefonia ou pôr as asas de um avião a levantar vôo.



Infelizmente, verdades irrefutáveis não andam para aí aos pontapés e por isso a maioria do nosso saber, mesmo em disciplinas tão insuspeitas como a física ou a medicina, obtém-se por um método dito indutivo, segundo o qual, em bom rigor, nunca temos bem a certeza absoluta de nada. Mas podemos pelo menos chegar a fundamentadas desconfianças – a que também chamaremos, ironicamente, “verdades”.

Como funciona o método indutivo? Vejamos! O tal amigo que me pôs a pergunta joga comigo e com outros colegas a jogos de batota. Por vezes, tem o mau gosto de ostentar uma mão com os trunfos quase todos, o que normalmente provoca nos outros jogadores reacções de desagrado e comentários a despropósito sobre a virtude de parentes próximos. Suponhamos que a primeira vez que tal aconteceu, os parceiros tenham pensado “este tipo tem um chouriço que não é normal”. Ora esta conclusão estaria a ser induzida por única ocorrência e portanto a probabilidade de estar certa seria bastante reduzida.

Se ao longo do tempo a situação se repetisse sistematicamente, para choro e ranger de dentes dos restantes jogadores, a hipótese do “chouriço não normal” poderia ir saindo reforçada, se nenhum outro facto a ela se opusesse. A certo momento, todos acabariam por aceitar como um dado adquirido possuir o meu amigo um “chouriço filha-da-mãe”. Nada garantiria a veracidade deste facto como uma certeza absoluta, apesar de a todos parecer que sim. A hipótese de ele gozar de uma sorte de predestinado teria meramente uma probabilidade elevada de ser verdade, a qual resultaria do grande número de ocorrências verificadas e de nada de evidente a ela se opor.

Agora, se um amigo desse amigo – eu, por exemplo – se desse ao trabalho de verificar o bloquinho onde estavam apontados os resultados dos últimos dois anos e concluísse que os tais “grandes chouriços” estavam contrabalançados por outras tantas derrotas, tão espectaculares como desonrosas, de tal modo que o resultado agregado fosse igual ou pior que o de qualquer outro jogador – eu, por dizer qualquer coisa – então a hipótese “da paia enorme” cairia por terra, varrida para sempre por um simples contra-exemplo. Haveria a partir daí que procurar uma outra explicação para o conjunto das duas observações (sorte aparente e resultados medíocres), como por exemplo “tem vaca mas joga com os pés” ou “faz um espalhafato de cada vez que tem um jogo imbatível, por isso nota-se mais”.

O facto de se proporem ideias sobre qualquer assunto a partir de um número reduzido de observações não revela por si só falta de rigor, se a coisa se fizer com seriedade intelectual. Assim nasce e se desenvolve grande parte do nosso conhecimento. Depois, a consolidação deste saber pode resultar da sua confirmação por uma abordagem intelectualmente honesta, estudiosa, sistemática, analítica, como a que tem o químico no seu laboratório ou o arqueólogo no seu buraco. Mas tal não é a única via. Existem outros mecanismos que, não usando do rigor no sentido da “exactidão extremada”, permitem com “rectidão” construir com “rigor” o conhecimento. Um destes mecanismos encontra-se na literatura.

Ocasionalmente, a arte e nomeadamente a literatura conseguem a surpresa de induzir em nós (ou de reforçar) a compreensão de factos ou fenómenos que o trabalho científico – dito rigoroso – só com dificuldade esclarece. Um bom livro, a vibração de um poema, uma tirada feliz, um sarcasmo ou mesmo um simples verso operam por vezes o milagre suave de acender luzes nas nossas vidas, permitindo que num momento de magia entendamos aquilo de que nem suspeitávamos, apesar de sempre ter estado sob os nossos olhos.

Um exemplo: sobre o nazismo escreveram-se já milhões de páginas, compilaram-se filmes e fotografias aos milhares, acumularam-se números e testemunhos inúmeros. Todo este manancial de reportagens e teses sempre me pareceu desaguar na mesma pergunta: como foi possível? Como aconteceu que um povo inteiro, para mais dos mais cultos da sua época, se deixasse enrolar por um bando de palhaços fardados liderados por um louco estrangeiro e conduzir de mansinho a colaborar, mais ou menos activamente, numa máquina de morte bárbara que os levou à ruína e à vergonha por muitas gerações? O conhecimento dos factos históricos ou a leitura de explicações ideológicas ou sociológicas ajudava-me a entrever uma parte da resposta, mas sempre de uma forma insatisfatória e incompleta, como se o tempo tivesse lançado uma penumbra sobre os acontecimentos e as razões profundas se tivessem perdido para sempre nalgum recanto escondido do passado.

Um dia, o meu pai ofereceu-me um livro que vira num alfarrabista, uma das suas leituras preferidas de juventude: “O obelisco preto”, de Erich Maria Remarque. Naquelas páginas dobradas, com marcas de outras leituras, descobri Ludwig Bodmer, empregado de uma agência funerária durante o período de hiperinflação da República de Weimar, e o pequeno mundo dos seus colegas, das suas golpadas, dos seus vizinhos de bairro, dos seus amigos e dos seus amores. No final de trezentas páginas de peripécias, de tipos castiços, de historietas do quotidiano carregadas de humor e ternura, tinha compreendido. A questão passara de “como foi possível?” para “isto tinha fatalmente que acontecer”. Ao longo do livro sente-se algo de latente, permeando o dia-a-dia daquela boa gente, algo que se vai adensando como uma névoa de início de noite, como um espectro que absorve a energia de que necessita das dificuldades, das pequenas frustrações, das incompreensões, das invejas, até das alegrias, das personagens, sugando-lhes a vida aos poucos, ganhando volume, aparecendo a espaços, preparando-se para se materializar na sua forma acabada: o nazismo. Este não surgiu pois do nada, misteriosamente. Cresceu no meio de todos sem se fazer notar e alimentou-se do pior que cada um tinha para lhe oferecer: o ressentimento, a cupidez, a brutalidade, a ignorância, a cobardia ou, meramente, a indiferença. Tudo características daninhas que continuam vivas e aos pulos no seio da humanidade, nos bairros como nas chancelarias. Por isso seria tonto cometer a imprudência de afirmar que o nazismo foi coisa de malucos dos anos trinta, que foi um acidente, que não volta a acontecer. Nada disso, como aliás a recente guerra da Jugoslávia o demonstrou. O nevoeiro continua por aí, convém estar atento.

A leitura certa pode funcionar como um muito poderoso indutor do conhecimento, que valha por longas horas de reflexão honesta ou de argumentação empenhada. Escrevi recentemente um “post” sobre a presunção de inocência. Melhor teria feito em recomendar a leitura de “Uma confidência de Maigret”, no qual o meu detective favorito relembra com amargura um caso que terminou na execução de um condenado de cuja culpa Maigret nunca esteve convencido. Para que se entenda a iniquidade da pena de morte, leia-se “O último dia de um condenado”, de Vítor Hugo. O melhor que há nas pessoas, podemos aprendê-lo na cena da noite na Ilha do Pico, após a caça ao cachalote, que Vitorino Nemésio nos deixou no “Mau tempo no canal”. O porquê de valer a pena, em “A Peste” de Camus. O ser português, em “A ilustre casa de Ramires”, do Eça. And so on…

Para terminar, como novo exemplo, transcrevo a seguinte passagem de “O hóspede de Job”, do José Cardoso Pires. Passa-se durante o Estado Novo, no Alentejo, e narra o momento em que uma velhota analfabeta, a Casimira Sota, desce da sua aldeia de Cimadas à vila para tentar ver a neta Floripes (a quem ela chama Nina), que a polícia levara presa por não querer delatar uns vizinhos:

“Misérias”, resumia a Casimira Sota, e perguntava lá no íntimo o que faria a sua neta entre tanto desgraçado.
Corria na vila que em breve a haviam de mudar para Lisboa, como aconteceu a Aleixo Serrador e outros, depois do levantamento de Ferreira.
“A Casimira das Cimadas bem pode dizer adeus à neta”, sentenciavam alguns.
“Ela que crie as mais novas, que aquela já não a vê criada”, entendiam outros.
A vila discutia e pasmava. “Jesus, Jesus”, murmurava a velha de Cimadas.
Agarrada à cesta da roupa e à bolsa das maçãs, ela vai agora pelo meio da praça, direita à cadeia. Vem gente às portas do comércio, os miúdos ficam quedos, muito atentos. Cala-se tudo a vê-la avançar. E ela, como se estivesse sozinha em plena praça, pousa a cesta no chão e segreda forte:
“Nina. Ó Nina.”
Ninguém. Insiste:
“Nina.”
Então faz-se o sol de repente. Floripes aparece às grades e, com ela, outros dois presos.
“Nina!”, grita a velha num salto de alegria.
Floripes sorri-lhe. E toda a praça, em silêncio, assiste à velha, cá em baixo, revolvida pelo choro, a sorrir e a acenar com a saquinha das maçãs.
“Ó Nina. Ó Nina. Ó Nina.”

Esta figura de velhinha que chora no meio da praça de simples amor pela sua neta, com a sacola das maçãs, sem entender bem o que se passa, sem se pronunciar sequer sobre a injustiça, indiferente aos olhares dos outros, diz mais sobre a miséria moral e o obscurantismo do salazarismo do que qualquer ensaio ou tese. Destrói mais a pequenez do cabrãozão do Salazar (com perdão da má palavra, mas há que usar de rigor) do que os mais inflamados panfletos escritos pelos mais encarniçados dos seus opositores. Portanto, uma excelente leitura para o nosso actual primeiro, que anda distraído, a ver se enxota a moscaria que lhe vareja à volta.

6 comentários:

NunoF disse...

Excelente post.

Gostei especialmente da última parte.
Só quem nunca sentiu na pele o desespero daquela velhota é que pode dizer que o Salazar e o Estado Novo não era assim tão mau.

Felizmente para mim, essa memória é inexistente, nasci já no último estertor da Besta, e as poucas recordações dessa altura são episódios fugazes de infância feliz e pouco mais, graças aos meus pais.

Mas felizmente foi-me transmitido o que era viver sob o peso da opressão, para quem não era privilegiado, para quem não compreendia porque é que lhes levavam os fihos e os netos, para quem não compreendia porque alguns tinham tanto e outros tinham tão pouco ou nada.

Por isso gostei do post que me fez lembrar um autor que há muito não lia, e me fez lembrar de o reler, e de procurar outros da mesma geração ou de gerações anteriores - Jorge de Sena, Fernando Namora, etc - que tão bem descreveram o terror que era viver em Portugal na maior parte do século passado.

Porque tens razão, é preciso não esquecer, é preciso não branquear usando a desculpa do politicamente correcto, ou dizendo que é coisa de comunas. Porque existiu. Porque importa estar atento para que não volte a existir novamente.

NunoF disse...

Interessante como o Eric h Maria Remarque escreveu o Obelisco Negro já em 1956. Daí talvez o sentido de algo a pairar sobre a Alemanha... em 56, Remarque - que foi perseguido pelos nazis - sabia muito bem o que o futuro reservava para os seus protagonistas.

PW$$$ disse...

Havia um obelisco negro numa outra história, de ficção científica ou talvez não.
À sua volta dançavam protohomens ao som do Zaratustra.

A primeira ideia que o obelisco lhes deu foi pegar num osso para partir outro osso.

Há quem diga que a História se move em círculos. Talvez ao som do Danúbio Azul...

CMata disse...

Obrigado aos leitores pelos comentários. Uma pequena correcção geométrica, caro pw$$$: a secção de um obelisco estreita da base para o topo. No 2001, a macacada agita-se à volta de um paralelipípedo. O que não afecta a pertinência do comentário.

PW$$$ disse...

Vejo que andas a levar a sério o tema do post (rigor no texto).
Correcção aceite, estava a pensar em monólito em vez de obelisco.

Cristina Rodo disse...

Buuuuuu!
A grunha do costume, a inculta, a apolítica, não gostou puto deste post e passa a explicar porquê:
1º - (e sobretudo...)Está outra vez escrito em "Mata Antigo". Tive de (franzindo o sobrolho por causa da côr da letra)ler e reler os parágrafos para tentar perceber alguma coisa do que estavas a dizer. Confesso que nem sempre com sucesso.
2º - Chama-me estúpida mas não percebi (depois de chegar ao fim, exausta e de olhos vesgos) que raio tem o post a ver com o seu título.
3º - Misturas física, medicina, nazismo, salazarismo e batota, tipo batido tuti-fruti o que me baralhou bastante. But then again, assumo-me como imbecil e estou só a dar a minha opinião pessoal

Gostei bastante no entanto, vá-se lá saber porquê, do breve "capítulo" sobre a batota (se bem que, como diz a minha tia, "colegas são as putas"... LOL)

Costumo vir comentar os teus posts para saberes que os li. Vou passar a abster-me de comentar os deste género para não ficar mal vista... LOLOLOLOLOLOLOL

Bjs mil

PS: "Escrevi recentemente um “post” sobre a presunção de inocência" ?! Qual?