sábado, julho 14, 2007

Cenas ridículas (II): o canal noventa e tal

Imaginem que um realizador de cinema se propunha fazer um filme sobre um jogo de futebol. Que para actores seleccionava apenas russos de boa pinta e negros espadaúdos, algo diferentes dos futebolistas do nosso campeonato, estes mais do tipo morcão de Massarelos, de patilha graúda, ou favelado brasileiro, com fácies de assalto à mão armada. Que os perseguia pelo relvado com a câmara, dando-lhes instruções do tipo “chuta com força mas levanta bem a perna”, “finge que o derrubas”, “protesta com o árbitro e faz cara de gandulo”. Que, na proximidade da baliza, ordenava ao guarda-redes que se estirasse pelo chão mas de modo a não defender a bola, recomendando um esgar de frustração pelo tento sofrido. Que instruía os jogadores para se abraçarem a festejar o golo, repetindo três vezes a cena até o entusiasmo lhe parecer algo convincente.

Imaginem tal coisa e respondam: isto parecia-vos futebol? Não. Nada que tenha a ver com o Maradona, do baixo da sua barriguinha, a driblar seis talegas inglesas numa Aljubarrota de calções, para enfiar por uma nesga, em queda, o golo do século. Ou com a guarda angélica de um Maldini filho a segurar um zero-a-zero contra o escrete, em cinquenta cortes de carrinho sem uma única falta. Nada que se compare ao nervo miúdo de um “derby” em que o que se disputa é meramente o troféu do puro gozo da vitória sobre o adversário, inútil mas sublime. O futebol faz-se desta amálgama de arte e emoção. O tal filme meramente macaquearia algo na sua essência irreproduzível.

Vem isto a propósito da amável oferta promocional da TV Cabo, que com a nova “Power Box” me proporcionou o acesso nas noites de fim-de-semana a um canal noventa e tal que passa “hard porno”. Zapei e espreitei, me confesso, e o que vi está para “the real thing” como o filme que eu anedoticamente descrevi está para um Argentina-Holanda: não há comparação possível.



Nunca fui fã do género. Mesmo na puberdade, uma boa revista da especialidade talvez me induzisse mais sentimentos nobres que o visionamento duma película pornográfica. A única vez que paguei para ver na tela ocorreu durante uma visita de estudo “ad hoc” da secção masculina da minha aula do quarto ano do liceu, a qual decidiu por sua alta iniciativa completar o programa escolar de biologia, excessivamente enfocado na reprodução do pinheiro-bravo, com uma sessão contínua no cinema Olímpia, ali aos Restauradores.

Recordo que entrámos a meio do filme, assistimos ao “the end”, ao genérico de entrada e decidimos sair quando nos pareceu que já tínhamos visto aquela mesma parte, embora não tivéssemos a certeza. Durante todo o tempo, perto de nós, um velhote aparentemente fugido de um sarcófago varejava o ar com a bengala, incentivando com voz rouca e frases boçais os actores a aplicar-se com mais empenho sobre as actrizes, como se a cobóiada que fervia na tela lhe parecesse insuficiente. Saímos algo angustiados com o facto de a garantia de continuidade da espécie implicar aquelas habilidades um pouco circenses e algo patetas, nas quais não nos imaginávamos lá muito bem, mas ainda assim entusiasmados pelo facto de termos conseguido entrar numa sala de espectáculos para a qual tínhamos setenta por cento da idade necessária por lei.

Hoje, já tendo feito o meu número de pista para a continuidade da espécie, mais uns ensaios e ameaços, quando vejo o novo canal noventa e tal continuo a achar algo pateta, e explico porquê.

A) O enredo

O enredo base do filme “porno” compara em complexidade com o jogo do galo: senhora jeitosona, de saia curta e galochas de salto alto, troca olhar com cavalheiro musculado, funciona a química, chega ao pé, toca um solo de trompete remirando com olhar guloso e passam à continuidade da acção, normalmente em posição acrobática em cima de um balcão, de uma mesa de cozinha ou de outro lugar desconfortável que esteja à mão de semear.

Na maioria das vezes, por um azar dos Távoras, são surpreendidos em flagrante movimento harmónico simples por um amigo/amiga. Quando amigo, este, em vez de se retirar discretamente, junta-se à festa como quem quer a coisa, dando assim pleno cabimento à regra máxima do cinema pornográfico, que é a de que três é a conta que Deus fez. Quando amiga, esta finge que se vai embora escandalizada, mas não o suficientemente depressa para não ser convencida a ficar depois de reticências menores e duas ou três olhadelas furtivas para o equipamento do senhor.

Existem depois variantes, com marcianos, espiões, enfermeiras ou caixeiros-viajantes, mas basicamente não passa disto.

B) Os diálogos

Os diálogos lembram o monólogo do burro ibérico com fome, só que a duas vozes:

Ela: - Hin!
Ele: - Hon!
Ela: - Hiin!
Ele: - Hoon!
Ela: - Hiiin!
Ele: - Hooon!

E assim sucessivamente, em ritmo progressivamente acelerado. Até a cena inicial do “2001-odisseia no espaço” tem conversa de maior conteúdo.

C) Os actores

Pelo arzinho dos actores, os “castings” devem ser subcontratados à Carris, que angaria os artistas entre os passageiros da carreira nocturna 40 (Picheleira – Cais do Sodré). Em geral, o critério de selecção será a metragem, neles, e a volumetria, nelas. De molde a realçar os seus dotes de representação, passam todos com a “Epilady” dos pés até ao pescoço. Usam por norma pseudónimos inacreditáveis como “Ted Missile” ou “Mae Boobs”.


D) Os truques de realização

Todo o género tem os seus “clichés” e o porno não foge à regra. Um deles tenta atalhar uma dificuldade técnica básica: como filmar a ejaculação, cereja em cima do bolo de todo o processo? Porque neste caso, a cereja acontece dentro do bolo… Uma possibilidade passaria por usar uma fibra óptica, tipo canal Discovery, que descesse aos abismos para registar “in loco” tão espástico momento. Talvez fosse um pouco incómodo para os artistas.

Os realizadores resolveram o problema de outra maneira. Quando aquilo está quase-quase-quase, o mancebo retira-se de súbito e entra em modo manual, espalhando “urbi et orbi” a boa semente, muitas vezes também na fronha da parceira. Voltando à comparação com o futebol, seria como se, no culminar de uma grande jogada, com a baliza à mercê para o golo que vai fazer explodir cinquenta mil adrenalinas no estádio, o avançado estacasse de repente e se pusesse a dar toquezinhos sem deixar cair a bola no chão. Anti-clímax total…

Outro “cliché” curioso ocorreu após o advento da SIDA. Os grandes planos às partes móveis dos artistas passaram a mostrar à evidência o uso do profilático, não fosse haver algum azar mau grado a sólida formação moral dos actores. Esse preservativo desaparece normalmente antes da cena final, deixando o espectador na dúvida se houve um erro de montagem ou se se consumiu com a fricção (durante a montagem, diria eu).

E) Os realizadores

Se ouvirem uma entrevista a um realizador destas películas, irão constatar que ele acha que produz sétima arte, discursando sobre o “Branca de Neve e os sete matulões” como se de o “Couraçado Potemkine” se tratasse. Mas tal é a natureza humana. A Margarida Rebelo Pinto também pensa que os seus livros são parecidos com os do Tolstoi, só porque ambos são de papel com letras impressas e uma capa à volta.


Em suma, para quem se lembrar da física de liceu tem no “porno” uma aplicação típica do princípio de Heisenberg: a observação do fenómeno altera o próprio fenómeno. Tenta-se filmar sexo e a imagem que a câmara capta já não tem nada a ver com sexo, mas mais com uns pantomineiros aos pinotes.

Heisenberg pensava que o seu princípio só se aplicava a objectos muitíssimo pequenos, mas pelos vistos também funciona com outros razoavelmente grandes.

2 comentários:

Unknown disse...

HAHAHAHAHAHA!
Os "Hin! Hon! Hin! Hon!" foram uma analogia subtil aos asnos que eles são?

©

Cristina Rodo disse...

Querido Carlinhos, como dizes que nunca apreciaste o género suponho que também não tenhas visto muito...
Não existe "sexo"...Existe sexo tímido com a namorada virgem, sexo escaldante com o engate adolescente, sexo calmo com a esposa, etc, etc, etc... e nota que o calmo não é obrigatoriamente com a esposa ou o tímido com a virgem, troca tudo se quiseres, são só exemplos...
A pornografia serve para estimular um certo tipo de sexo, que não é melhor nem pior do que os outros, é simplesmente diferente.
Como tudo, existe em várias qualidades e visivelmente só tens visto o piorio.
Há filmes porno com história (quer dizer, mais ou menos... LOL), com sentido de humor, com preocupações estéticas, com bom guarda roupa, de época, com actores e actrizes bonitos e atraentes...
Não chamaria "arte" a nenhum deles, sem dúvida, mas servem o seu propósito sem terem obrigatoriamente de ser a novela Mexicana que descreves.
Não estou a fazer uma apologia da pornografia, hoje em dia já nem me diz nada, mas tempos ouve em que "consumi", e sei portanto do que falo.
Depois dou-te uma listinha... ; )