terça-feira, novembro 01, 2016

A cidade com alma




"Every time I close my eyes blowing that trumpet of mine, I look right in the heart of good old New Orleans...It has given me something to live for."
Louis Armstrong


Na esquina de Bourbon Street com Canal Street, à porta do Bairro Francês, por acaso a esquina mais importante da cidade de Nova Orleães, um homem nos seus trinta anos espera um oponente, um pouco como Clint Eastwood no “Era uma vez no Oeste”. De um negrume congolês, quase não se lhe vê a camisa de alças pretas, nem os óculos escuros vagamente manfios, nem os “dreadlocks” curtos no alto do coco, mas vêem-se bem as calças de um verde atómico e as pulseiras de um dourado gratuito. Está sentado na sua cadeira, acotovelado à mesa e vai sair com as brancas: olha com ar compenetrado, talvez hesitando entre o tradicional peão de rei ou uma abertura menos convencional. A mesa tem o tabuleiro estampado e as pernas fixas ao passeio. As trinta e duas peças faíscam ao sol da tarde, aguardando as mãos que as movam e os espíritos que as pensem. Deliciado com o desmoronar de mais um meu preconceito, que me dizia que só velhos russos jogavam xadrez no meio da rua, entro por Bourbon Street adentro.


A rua é de largura modesta, e a perder de vista: um “canyon” de três andares, com o primeiro e o segundo debruados a ferro forjado. Dados poucos passos, assalta-nos um leve cheiro a águas mal escoadas, proveniente das sarjetas e de poças suspeitas. Quando regressar à noite, irei reparar que um odor mescla de gente, álcool, ganza e comida se sobreporá ao cheiro de esgoto, numa mistura que um americano de Washington que conheci no jantar da conferência me garante ser uma sensação típica do Bairro Francês. Por ora é mesmo a águas paradas mas passados dois quarteirões já me habituei.

A imagem preconcebida que tinha sobre Bourbon Street era a de algo castiço e perdido no tempo, com clubes de jazz, negros velhos ao piano e a ocasional marcha pela rua de uma banda, talvez os célebres Saints. Totalmente falso: vejo casais americanos de idade, rosados, de bermudas e boné turista, grupos de amigas cinquentonas esféricas em grande risota, negras de perna à mostra à porta de casas de “strip”, polícias a cada esquina comendo o mega-hamburguer, grupos de adolescentes alfinetados por tudo quanto é parte, outros com ar “Ivy League”, vagos pedintes empurrando um carrinho de compras com os seus pertences, louras pernaltas no melhor dos apinocanços, velhos “rockers” de rabito de cavalo grisalho escutando música à borla nas janelas dos bares, latinos de fraque angariando para restaurantes de razoável pinta ou clubes de onda suspeita. Mas nada de Saints a marchar.


Toda a rua está dedicada ao comércio e não creio que alguém lá more mesmo, a menos que seja maluco, ou surdo, porque a animação é até às tantas. Há hotéis, incluindo um Sheraton, impecáveis no respeito pela traça. Há restaurantes e balcões de comida rápida que prometem a cerveja mais gelada, o hamburguer mais bojudo, o melhor daiquiri. Há casas de “souvenirs” cheias de parafernália vudu, “tee-shirts” humorísticas, caveiras de jacaré e colares de contas para o “Mardi Gras” de Fevereiro (a tradição manda dar um destes colares a uma senhora que levante a roupa e exiba os seios – e há sexagenárias que saem do carnaval vergadas ao peso de tanta conta). Há misteriosas lojitas de videntes, prometendo acertar no futuro por vários métodos: numa das que vi, palma da mão, “tarot”, pura intuição ou “angel”. Não consegui saber o que é “angel”. A “wikipedia” informa-me que os videntes usam astrologia, leitura de auras, cartomancia, cleromancia (lançamento de pequenos objectos), percepção remota, litomancia e a provavelmente mais cara cristalomancia (com pedras e pedras preciosas, respectivamente), numerologia, leitura da palma das mãos, psicometria (contacto com os objectos pessoais do cliente), runas e “tarot”, mas nada de “angel”.  Por um cartaz intuo que terá a ver com a observação de folhas de árvores. Em todo o caso, o Bairro Francês possui um arsenal preditivo de primeira grandeza, que muito jeito daria ao nosso ministro das Finanças, para ver se acertava no valor do défice.


Continuando, há sobretudo bares onde se ouve música ao vivo. Não só de jazz, mas de todos os tipos, consoante as portas: aqui jazz, ali country, mais à frente rock, logo disco, hard rock, gospel, house, o que quiserem. Com o calor quase tropical, as janelas e portas estão sempre abertas e os sons misturam-se pela rua, amalgamando-se com os odores e com as cores dos neóns que fluorescem por todo o lado. De repente oiço à distância o Richie Blackmore a solar na sua guitarra o “Highway Star” – só pode ser ele – acompanhado pelos restantes Deep Purple, incluindo o falecido Jon Lord, o que poderá ser explicado por algum fenómeno vudu, como vimos especialidade da zona tão disseminada como o guisado Gumbo ou o croquete de “aligator”. Aproximo-me da fonte sonora e espreito pela janela de um bar: nem Blackmore, nem a alma penada do Lord, nem nada. Vejo um grupo de septuagenários montados num pequeno palco, os cabelos brancos escorrendo suor debaixo dos focos vermelhos, esforçando-se para meia dúzia de gatos pingados que bebericam uma imperial enquanto gritam aos ouvidos uns dos outros. Já me dizia o tal americano que o que surpreende em Bourbon Street, quando se entra num bar e se bebe um copo e se olha para os músicos, é o que é que eles estão ali a fazer: porque é que estão enfiados naquele buraco e não numa carreira internacional. É que por regra são todos muito mas muito bons (e na realidade alguns saíram de Bourbon Street: Sidney Bechet, Mahalia Jackson, Fats Domino, Dr. John ou Wynton Marsalis  tocaram ou cantaram por aqui).


Dizem-me americanos que é única nos Estados Unidos esta rua que tomou nome nos mesmos Bourbons avoengos do nosso vizinho Felipe marido da Letícia: “there’s nothing like it in the USA”. Eu acrescentaria com segurança, apesar de não conhecer o mundo todo: “neither in the all world”. Porque de facto é única aquela mistura de genuinidade e falsidade, de riqueza e miséria, de locais e turistas, de vício e virtude, de novos e velhos, de todos os estilos de música, iluminada por néon e regada com cerveja para amainar o calor exasperante do dia-a-dia. E com o seu lado tenebroso, de perversão oculta, de risco iminente, de estupro por acontecer que Sting tão bem apanhou no seu “Moon over Bourbon street”. De tudo isso se faz a alma da rua Bourbon, que é a alma do Bairro Francês que é por sua vez a alma de Nova Orleães, seja lá o que a alma de uma cidade fôr: uma memória incontornável que emana das pedras, uma vibração harmónica nas pessoas, a coerência de um todo na excitação da variedade. E isto de nos Estados Unidos uma cidade ter alma não é coisa pequena pela amostra que conheço. Nova Iorque tem certamente, mas Houston nem um farrapo, Boston, Washington e Miami muito pouco.


O lado melhor da alma de Nova Orleães vive no humor dos seus habitantes, na omnipresença da música e do talento, da boa comida (é uma zona com óptima culinária própria), da sensualidade das mulheres vestidas para o calor asfixiante de um dia que pede o consolo da noite, das cores fortes que os artistas locais exibem nas galerias que polvilham as restantes ruas do Bairro Francês. Podemos reconhecer esta alma, na sua forma mais pura, na ladinice de Louis Armstrong, filho da terra fugido para o frio de Chicago, quando pisca um olho cantado a Ella Fitzgerald no fabuloso dueto “Can’t we be friends”, música que em Bourbon St. nos arriscamos a ouvir de uma janela numa versão quase tão boa como a original. Note-se o quase, porque mesmo para os mestres do vudu há milagres fora do alcance... 


Apesar de toda esta alma, ou talvez pelos pecados que carrega, tal como qualquer alma, até ao dia do perdão, há na Bourbon St. uma costela decadente indiscutível, na fauna que se acotovela à noite e que resiste de dia, nas actividades que por lá se levam. E se distraídos andássemos, um esqueleto na vitrina de uma loja de bugiganga, rico em costelas, relembra-nos, de lenço no crânio e órbitas esbugalhadas, a frase de Horácio que lamenta como voam os fugazes anos das nossas vidas: “Eheu, fugaces labuntur anni”.  Ou pelo menos os anos da parte terrena das mesmas, que depois é até ao infinito, ou mesmo mais além.


Nestas cogitações chego ao fim da rua, inverto marcha e percorro-a em sentido contrário até Canal St. Na esquina, o oponente já chegou e já se joga xadrez. Pela mão esguia do negro de calças verdes, as brancas atacam o centro do tabuleiro e parecem levar vantagem.
 

 No dia seguinte levaram-nos em passeio de eléctrico. Os eléctricos são um ícone de Nova Orleães e fazem as vezes de metropolitano numa terra plana e alagadiça em que qualquer escavação deve ser um pesadelo de drenagem. Temos direito a um guia, um velhote “wasp” reformado que, sem microfone, luta a armas desiguais com o cagarim de choque de metais e o alívio de pneumáticos da carruagem para se fazer ouvir. Vamos para zonas mais pinocas da cidade. Começamos pelo “Wharehouse district”, que de zona de armazéns da velha cidade se tornou área de condomínios finos. “For dinks”, esclarece o nosso guia. “Dinks” quer dizer “double income no kids”, casais de jovens com bons empregos que optam por atrasar os filhos de modo a melhor gozar os duplos rendimentos. Passada a rotunda onde se homenageia o derrotado general Lee, herói do sul “dixie”, entramos na St. Charles Avenue, longa de cinco quilómetros e ladeada por moradias individuais de grande porte, muitas de tipo colonial, brancas, dois e três pisos de muito pé-direito, colunadas de ordem dórica ou jónica, bons relvados à volta. Muitas estão à venda ou em remodelação, revelando que com facilidade se entra mas também se sai desta vida mais exclusiva. Nesta longa avenida encontramos serviços para os que os podem pagar: colégios femininos de freiras, o parque Audubon com o seu golfe, a universidade Loyola, restritos clubes de tipo inglês para homens ou para senhoras. Os sucessivos quarteirões chamam-se “faubourgs”, piscando o olho à herança francesa, que lhes dá os nomes: Lafayette, Livaudais, Delassize.



Viramos à direita em Carrolton Avenue, afastando-nos do dique que nos protege das cheias do Mississipi. Chegamos ao terminal e retomamos viagem em sentido inverso. O eléctrico não dá a volta, damos nós: levantamo-nos, deslocamos as costas dos bancos, que são de madeira da mais confortável, e sentamo-nos ao contrário enquanto o condutor atravessa o carro para os comandos do lado oposto. Voltamos a ver as mesmas casas que à ida. Apesar de Outubro não estar a meio, muitas casas já estão decoradas a rigor para o “Halloween”, com teias de aranha de alto a baixo, esqueletos a mandar-se das varandas, aracnídeos gigantes no telhado e lápides de cartão nos jardins. Quase tão tenebroso, um jovem casal espera num cruzamento que passe o eléctrico dentro de um Nissan decorado com “graffittis” azul-bébé e cor-de-rosa e para-choques desta mesma côr. Apesar do cromatismo aberrante do carro, têm idade para terem nascido já depois do LSD passar de moda e não me parece que vão à garagem para lhes pintarem a viatura após um vandalismo nocturno. Aquilo é mesmo assim e eles têm um ar normal e feliz. Afinal, estamos nos Estados Unidos da América. Mais adiante, somos alertados para uma casa de pedra para aí com o tamanho do castelo de Évoramonte. É a maior casa particular de Nova Orleães e pertence a um cirurgião plástico. “Muito botox teve que injectar este homem!”, exclama com alguma filosofia o nosso guia.


Nova Orleães é uma cidade limpinha e bem cuidada, pelo menos nas zonas por onde passei. Custa a crer que há onze anos tenha ficado severamente destruída pelo furacão Katrina, que causou para cima de mil e quinhentos mortos na Louisiana e um total de mais de cem mil milhões de dólares de estragos materiais. Numa década, aparentemente a cidade sarou essas feridas e disfarçou as suas cicatrizes. Mas outras chagas subsistem: à noite os recessos das portas dos comércios enchem-se de sem-abrigos, às vezes visíveis, às vezes apenas um volume oculto por camadas de cobertores andrajosos. Vi a uns metros da porta do Brennan’s, um dos mais caros restaurantes da cidade, à porta de uma loja, uma senhora preparar-se para uma noite ao relento. Tinha um ar cansado, mas muito arranjado, enfiara as pernas num saco-cama e sentada no chão estava a ler um livro à luz da rua com o seu ar mais compenetrado, como se quando viesse o sono fosse pousar o livro na mesinha de cabeceira e desligar a luz do candeeiro, luxo nosso diário que ela não se podia oferecer. Aquela senhora não parecia estar nos abismos do álcool ou da droga que a “vox populi” e alguma estatística costumam associar à condição de sem-abrigo. Era uma pessoa como qualquer outra, que possivelmente tivera uns azares, perdera a casa, perdera o pé e escorregara pela ladeira social abaixo. Os Estados Unidos são muito isto, também. A terra onde, contrariamente à Europa, um negro pode chegar à presidência da república e adolescentes podem criar multinacionais em meia-dúzia de anos, mas também onde a vida é um jogo sem rede e quem cai não tem mão que a agarre.


No regresso, no táxi que me leva ao aeroporto, mais um pouco da alma nova-orleanesa. O taxista é uma simpatia, um senhor negro encorpado, já nos sessenta, com um voz de música e mel, recomenda-me com entusiasmo que volte na altura de um grande festival que há em Abril, o “New Orleans Jazz and Heritage Festival”. São onze palcos em simultâneo, vinte horas por dia durante oito dias, com centenas de bandas, muitas delas locais mas também grandes nomes da música americana ou britânica. Em 2017 virão Paul Simon, Van Morrison, Pearl Jam, Red Hot Chilli Peppers, Herbie Hancock, Wayne Shorter, Stevie Wonder, Snoop Dog, Elvis Costello, John Mayall, Beck, Dr. John, Buddy Guy e até o projecto musical do Liceu Francês de Nova Orleães! Ele garante-me que vai, das onze da manhã às sete da tarde, porque tem que pegar no táxi a essa hora. Reforça que a música é boa e a comida também (“good gumbo”), duas coisas de que ele gosta – sendo que esta última se nota bastante que gosta. Por baixo do retrovisor tem três fotografias: uma com ele e a mulher e duas quarentonas gorduchas que ele informa serem as filhas; outra com uma garota de quatro anos com laçarotes amarelos nas tranças, a única neta; e a terceira com o Obama. Diz-me com uma lágrima na voz que uma das filhas é advogada e a outra professora. Merece esse orgulho. Se lá o cirurgião plástico meteu muito “botox” para ter o casarão, este taxista deve ter guiado muita noite para dar melhor vida à descendência. Mais discreto, mas mais bonito.


Comento-lhe a fotografia do Obama e relembro-lhe que dentro de horas há o segundo debate entre Clinton e Trump, pensando que me vai responder com um indefectível apoio a Hillary, dado ser negro e votante democrata. Mas não: sem revelar quem apoia, diz-me que vai lá no dia oito de Novembro mas vai tapar os olhos com a mão na hora de votar. Para exemplificar tapa mesmo os olhos o que, dado que vamos num carro numa autoestrada, não me conforta particularmente. Para o fazer olhar em frente digo-lhe que em Portugal o que ele vai fazer chama-se engolir um sapo. Ri-se muito e parece céptico: “Swallow a toad! Really? No way!”. Chegados ao Louis Armstrong New Orleans International Airport, trocamos um bacalhau e ele dá-me um cartão para que me vá buscar quando eu regressar. Deve-se ver na minha cara que fiquei com vontade de voltar.